14 de setembro de 2004
O Fim da Gratuitidade do SNS?
Por Vital Moreira
O projecto de aumento diferenciado das "taxas moderadoras" no serviço nacional de saúde (SNS), em função dos níveis de rendimento dos utentes, anunciado pelo próprio primeiro-ministro, estava naturalmente destinado a levantar a tempestade que imediatamente desencadeou.
O caso não é para menos. Por um lado, porque a gratuitidade do SNS (e o seu consequente financiamento pelo Orçamento do Estado) faz parte, por assim dizer, do seu código genético entre nós, desde a sua criação em 1978, depois de garantido na Constituição de 1976, sendo mesmo um dos mais conhecidos ícones constitucionais. Por outro lado, os cuidados de saúde não são um serviço público como outro qualquer, pois eles não dependem em geral de uma decisão livre dos utentes nem se traduzem numa mais-valia ou acréscimo patrimonial para eles, consistindo antes no tratamento de doenças ou de lesões que afectam a sua saúde e que podem implicar perigo para a própria vida. A ideia básica é a de que o direito à protecção da saúde não deve depender das condições económicas de cada um.
À primeira vista, a ideia de tornar onerosos os cuidados de saúde para quem os pode pagar até pode parecer boa, mesmo em termos de justiça social, além de diminuir os encargos do SNS por via do Orçamento do Estado. Tudo consistiria, afinal, em reservar o financiamento orçamental sobretudo para os que não podem ou podem menos. O resultado seria naturalmente uma menor dependência do SNS em relação aos impostos, permitindo-lhe dispor também de maior autonomia financeira, bem como, eventualmente, de recursos financeiros adicionais para melhorar os cuidados prestados a todos.
Mas há boas razões para pensar que se trata de uma falsa boa ideia, sem bases sustentáveis. Para além de questões de filosofia do SNS, essa proposta defronta pelo menos duas dificuldades sérias: (i) primeiro, ela não parece ser compatível com a Constituição, que estipula que o SNS é "tendencialmente gratuito", o que não deixa grande margem para contrapartidas financeiramente significativas; (ii) segundo, com a opacidade e iniquidade do sistema fiscal que temos, dada a enorme evasão fiscal existente, a pretensa justiça social poderia redundar em enormes injustiças relativas, susceptíveis de gerar um elevado contencioso social e de descredibilizar rapidamente a solução.
É certo que a absoluta gratuitidade inicial do SNS já tinha sido atenuada com a criação das "taxas moderadoras", nos anos 80, que o Tribunal Constitucional não considerou ilegítimas (numa decisão aliás pouco pacífica) e que foram posteriormente "ratificadas" na revisão constitucional de 1989, que introduziu a expressão acima referida ("tendencialmente gratuito"). Mas, como indica o seu próprio nome, a função das taxas moderadoras não é propriamente financiar o SNS (esse é quando muito um efeito colateral, aliás pouco relevante quantitativamente), mas sim desincentivar a procura redundante de cuidados de saúde. Do que se trata é de poupar meios e prevenir gastos supérfluos, mais do que fazer pagar uma parte das respectivas despesas. Ora, a proposta agora feita obedece a outra racionalidade fundamentalmente distinta, colocando a cargo dos utentes o pagamento de uma parte dos custos dos cuidados recebidos. Por isso não se afigura que uma tal alteração possa ser feita sem prévia mudança constitucional.
Nem se invoque o caso das propinas do ensino superior, recentemente aumentadas. Por um lado, as propinas sempre foram entendidas como um pagamento parcial do serviço recebido pelos beneficiários, e não como taxa dissuasora de consumos redundantes; por outro lado, a situação de partida é totalmente distinta, porquanto no caso das propinas se tratou de actualização do seu valor inicial (pré-constitucional), sem aumento em termos reais (de outro modo seriam inconstitucionais), enquanto as novas taxas do SNS implicarão obviamente aumentos reais, porventura substanciais (sem o que seria negligenciável a sua contribuição para o seu financiamento).
Se a criação de verdadeiras taxas de retribuição dos cuidados de saúde enfrenta, à partida, um sério obstáculo constitucional, a sua indexação de acordo com os rendimentos dos utentes depara com a incontornável falta de critério fiável para a sua determinação. A declaração do IRS, que deveria ser um retrato fiel do nível de rendimentos de cada pessoa (ou de cada família), torna-se imprestável como critério diferenciador minimamente credível, dados os conhecidos níveis de isenção ou de evasão fiscal na tributação dos rendimentos de capital, dos empresários e profissionais liberais. Tudo indica que o resultado seria altamente injusto em termos de equidade, fazendo pagar mais aos titulares de rendimentos médios ou elevados por conta de outrem, que já são quem paga proporcionalmente mais impostos. Além de uma revisão constitucional, seria necessária portanto também uma revolução fiscal.
Mas o argumento porventura mais poderoso contra o pagamento individual, ainda que parcial, dos cuidados de saúde por quem deles necessita tem a ver com a aleatoriedade dos factores que os tornam necessários (doenças e acidentes) e com a insegurança e a desigualdade que a onerosidade instalaria nas pessoas e na sociedade em geral. As pessoas saudáveis e que não fossem vítimas de acidentes ficariam isentas; as pessoas doentes ou acidentadas, além dos custos pessoais dessa condição, ver-se-iam ainda forçadas a consumir em cuidados de saúde uma parte considerável do seu rendimento, podendo por isso ter de prescindir deles para não ter de os pagar. É por isso que a alternativa ao sistema de financiamento dos serviços públicos de saúde por via dos impostos e do Orçamento do Estado (em que se integra o SNS nacional) é o sistema do seguro de saúde geral e obrigatório, que tem de comum com aquele a eliminação do pagamento individual dos cuidados de saúde por cada prestação recebida e a solidariedade colectiva de todos pelos cuidados de saúde prestados aos que deles necessitam, afastando por isso os referidos factores de risco e de desigualdade.
Se se quer mudar o sistema de financiamento do SNS, criando uma fonte de receitas "endógena", em alternativa aos impostos gerais e ao Orçamento do Estado, então mais vale ter a coragem de assumir expressamente uma mudança de paradigma em toda a linha. Seria mais transparente, mais coerente e, se calhar, menos problemático.
Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)
1. A polémica surda gerada pela realização de exéquias fúnebres do falecido presidente no Tribunal Constitucional na Basílica da Estrela (aparentemente transformada em "basílica do Estado"), quando era conhecida a sua filiação maçónica, põe em relevo mais uma vez a falta entre nós de espaços civis condignos para esse efeito. Se as exéquias religiosas fazem parte da liberdade religiosa dos crentes, em contrapartida os não crentes têm direito a exéquias não religiosas em espaços civis. O exemplo francês, onde existem serviços públicos funerários a cargo dos municípios, ilustra um exemplo de civilidade laica, onde os não crentes não têm de recorrer forçadamente às capelas funerárias das igrejas e à liberal generosidade da Igreja Católica (aliás, louvável), como sucede entre nós.
2. Quem julgou que a excepção legalmente estabelecida para os "touros de morte" de Barrancos acabaria com essa questão em Portugal enganou-se redondamente (como era de esperar, infelizmente). Agora foi a vez de Monsaraz, de novo invocando uma "tradição popular". Só é de esperar que o precedente de Barrancos não se repita: primeiro, a impunidade para os infractores; depois, a reiteração da cena nos próximos anos; e finalmente a intervenção do Presidente da República a sugerir o alargamento da excepção. De excepção em excepção, não tardaria a legalização geral da barbárie do touricídio público para gáudio da plebe. Dá vontade de fugir!
(Publico, Terça-feira, 14 de Setembro de 2004)
O projecto de aumento diferenciado das "taxas moderadoras" no serviço nacional de saúde (SNS), em função dos níveis de rendimento dos utentes, anunciado pelo próprio primeiro-ministro, estava naturalmente destinado a levantar a tempestade que imediatamente desencadeou.
O caso não é para menos. Por um lado, porque a gratuitidade do SNS (e o seu consequente financiamento pelo Orçamento do Estado) faz parte, por assim dizer, do seu código genético entre nós, desde a sua criação em 1978, depois de garantido na Constituição de 1976, sendo mesmo um dos mais conhecidos ícones constitucionais. Por outro lado, os cuidados de saúde não são um serviço público como outro qualquer, pois eles não dependem em geral de uma decisão livre dos utentes nem se traduzem numa mais-valia ou acréscimo patrimonial para eles, consistindo antes no tratamento de doenças ou de lesões que afectam a sua saúde e que podem implicar perigo para a própria vida. A ideia básica é a de que o direito à protecção da saúde não deve depender das condições económicas de cada um.
À primeira vista, a ideia de tornar onerosos os cuidados de saúde para quem os pode pagar até pode parecer boa, mesmo em termos de justiça social, além de diminuir os encargos do SNS por via do Orçamento do Estado. Tudo consistiria, afinal, em reservar o financiamento orçamental sobretudo para os que não podem ou podem menos. O resultado seria naturalmente uma menor dependência do SNS em relação aos impostos, permitindo-lhe dispor também de maior autonomia financeira, bem como, eventualmente, de recursos financeiros adicionais para melhorar os cuidados prestados a todos.
Mas há boas razões para pensar que se trata de uma falsa boa ideia, sem bases sustentáveis. Para além de questões de filosofia do SNS, essa proposta defronta pelo menos duas dificuldades sérias: (i) primeiro, ela não parece ser compatível com a Constituição, que estipula que o SNS é "tendencialmente gratuito", o que não deixa grande margem para contrapartidas financeiramente significativas; (ii) segundo, com a opacidade e iniquidade do sistema fiscal que temos, dada a enorme evasão fiscal existente, a pretensa justiça social poderia redundar em enormes injustiças relativas, susceptíveis de gerar um elevado contencioso social e de descredibilizar rapidamente a solução.
É certo que a absoluta gratuitidade inicial do SNS já tinha sido atenuada com a criação das "taxas moderadoras", nos anos 80, que o Tribunal Constitucional não considerou ilegítimas (numa decisão aliás pouco pacífica) e que foram posteriormente "ratificadas" na revisão constitucional de 1989, que introduziu a expressão acima referida ("tendencialmente gratuito"). Mas, como indica o seu próprio nome, a função das taxas moderadoras não é propriamente financiar o SNS (esse é quando muito um efeito colateral, aliás pouco relevante quantitativamente), mas sim desincentivar a procura redundante de cuidados de saúde. Do que se trata é de poupar meios e prevenir gastos supérfluos, mais do que fazer pagar uma parte das respectivas despesas. Ora, a proposta agora feita obedece a outra racionalidade fundamentalmente distinta, colocando a cargo dos utentes o pagamento de uma parte dos custos dos cuidados recebidos. Por isso não se afigura que uma tal alteração possa ser feita sem prévia mudança constitucional.
Nem se invoque o caso das propinas do ensino superior, recentemente aumentadas. Por um lado, as propinas sempre foram entendidas como um pagamento parcial do serviço recebido pelos beneficiários, e não como taxa dissuasora de consumos redundantes; por outro lado, a situação de partida é totalmente distinta, porquanto no caso das propinas se tratou de actualização do seu valor inicial (pré-constitucional), sem aumento em termos reais (de outro modo seriam inconstitucionais), enquanto as novas taxas do SNS implicarão obviamente aumentos reais, porventura substanciais (sem o que seria negligenciável a sua contribuição para o seu financiamento).
Se a criação de verdadeiras taxas de retribuição dos cuidados de saúde enfrenta, à partida, um sério obstáculo constitucional, a sua indexação de acordo com os rendimentos dos utentes depara com a incontornável falta de critério fiável para a sua determinação. A declaração do IRS, que deveria ser um retrato fiel do nível de rendimentos de cada pessoa (ou de cada família), torna-se imprestável como critério diferenciador minimamente credível, dados os conhecidos níveis de isenção ou de evasão fiscal na tributação dos rendimentos de capital, dos empresários e profissionais liberais. Tudo indica que o resultado seria altamente injusto em termos de equidade, fazendo pagar mais aos titulares de rendimentos médios ou elevados por conta de outrem, que já são quem paga proporcionalmente mais impostos. Além de uma revisão constitucional, seria necessária portanto também uma revolução fiscal.
Mas o argumento porventura mais poderoso contra o pagamento individual, ainda que parcial, dos cuidados de saúde por quem deles necessita tem a ver com a aleatoriedade dos factores que os tornam necessários (doenças e acidentes) e com a insegurança e a desigualdade que a onerosidade instalaria nas pessoas e na sociedade em geral. As pessoas saudáveis e que não fossem vítimas de acidentes ficariam isentas; as pessoas doentes ou acidentadas, além dos custos pessoais dessa condição, ver-se-iam ainda forçadas a consumir em cuidados de saúde uma parte considerável do seu rendimento, podendo por isso ter de prescindir deles para não ter de os pagar. É por isso que a alternativa ao sistema de financiamento dos serviços públicos de saúde por via dos impostos e do Orçamento do Estado (em que se integra o SNS nacional) é o sistema do seguro de saúde geral e obrigatório, que tem de comum com aquele a eliminação do pagamento individual dos cuidados de saúde por cada prestação recebida e a solidariedade colectiva de todos pelos cuidados de saúde prestados aos que deles necessitam, afastando por isso os referidos factores de risco e de desigualdade.
Se se quer mudar o sistema de financiamento do SNS, criando uma fonte de receitas "endógena", em alternativa aos impostos gerais e ao Orçamento do Estado, então mais vale ter a coragem de assumir expressamente uma mudança de paradigma em toda a linha. Seria mais transparente, mais coerente e, se calhar, menos problemático.
Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)
1. A polémica surda gerada pela realização de exéquias fúnebres do falecido presidente no Tribunal Constitucional na Basílica da Estrela (aparentemente transformada em "basílica do Estado"), quando era conhecida a sua filiação maçónica, põe em relevo mais uma vez a falta entre nós de espaços civis condignos para esse efeito. Se as exéquias religiosas fazem parte da liberdade religiosa dos crentes, em contrapartida os não crentes têm direito a exéquias não religiosas em espaços civis. O exemplo francês, onde existem serviços públicos funerários a cargo dos municípios, ilustra um exemplo de civilidade laica, onde os não crentes não têm de recorrer forçadamente às capelas funerárias das igrejas e à liberal generosidade da Igreja Católica (aliás, louvável), como sucede entre nós.
2. Quem julgou que a excepção legalmente estabelecida para os "touros de morte" de Barrancos acabaria com essa questão em Portugal enganou-se redondamente (como era de esperar, infelizmente). Agora foi a vez de Monsaraz, de novo invocando uma "tradição popular". Só é de esperar que o precedente de Barrancos não se repita: primeiro, a impunidade para os infractores; depois, a reiteração da cena nos próximos anos; e finalmente a intervenção do Presidente da República a sugerir o alargamento da excepção. De excepção em excepção, não tardaria a legalização geral da barbárie do touricídio público para gáudio da plebe. Dá vontade de fugir!
(Publico, Terça-feira, 14 de Setembro de 2004)