28 de setembro de 2004
O Princípio de Sócrates
Por Vital Moreira
Antes de mais, independentemente do seu vencedor, as eleições para secretário-geral do PS constituíram um enorme triunfo para o próprio partido. Mobilizar dezenas de milhares de militantes para umas eleições internas; manter uma disputa entre três candidaturas, que, apesar de algumas picardias pessoais entre apoiantes, se manteve em geral dentro de parâmetros civilizados; projectar o processo para o exterior, incluindo debates nos 'media', interessando a opinião pública em geral -, eis os factores que tornaram estas eleições um fenómeno porventura irrepetível noutro partido e que mostraram um partido democrático, plural e transparente, que é uma mais-valia na relação de confiança política com os cidadãos. Em tempos de generalizada desafeição em relação à política, eis aqui uma invejável prova de vitalidade política!
Em segundo lugar, a eleição directa do líder do partido, sobretudo quando disputada, como agora, tem um evidente impacto na configuração do poder interno no partido. Faz prevalecer o factor pessoal e comunicacional dos candidatos em prejuízo das moções políticas em confronto; favorece uma espécie de regime presidencialista, que reforça a legitimidade própria do líder e a sua posição perante os órgãos colegiais representativos; e por último tende a transformar as eleições partidárias numas eleições primárias do candidato ao cargo de primeiro-ministro. Surpreendentemente, tendo em conta a tradição organizatória dos partidos socialistas, o PS é entre nós o partido que mais se apropria do modelo norte-americano de acção política, explorando a personalização da luta política, mediatizando as eleições internas e interessando nelas os cidadãos em geral e finalmente fazendo depender a selecção do líder partidário das suas capacidades para disputar a chefia do governo.
Por último, no caso concreto a grande vitória alcançada pelo vencedor dá-lhe excepcionais condições para conduzir uma forte oposição ao Governo (cujo primeiro-ministro não passou por eleições internas nem externas...), para construir uma alternativa política e para travar com êxito as batalhas eleitorais que vão ocorrer nos próximos dois anos, culminando com as eleições parlamentares de 2006 (se o actual governo aguentar até lá...). Primeiro, a sua autoridade no partido não podia ser mais robusta, sem margem para contestação dos seus opositores nestas eleições (mesmo que os não possa nem deva ignorar nem marginalizar); segundo, ele vai sair do Congresso com um esmagador apoio nos órgãos colegiais, dispondo de mão livre quanto à sua composição; terceiro, é de admitir que o apoio que Sócrates obteve dentro do partido possa ser replicado na esfera dos simpatizantes e dos votantes do PS (embora podendo não contar com os independentes mais à esquerda...).
Parece incontestável que o triunfo de Sócrates representa a vitória de uma visão mais moderada (ou mais "centrista"), menos ideológica (ou mais "pragmática") e mais liberal (em termos económicos) do PS e uma derrota de uma concepção mais fiel aos valores tradicionais da esquerda socialista, que Manuel Alegre tão bem representou, centrada sobre a igualdade, os direitos dos trabalhadores, as políticas sociais e o papel do Estado, bem como sobre uma solidariedade de fundo com os demais partidos da esquerda. Neste aspecto estas eleições, pelo desequilíbrio dos resultados apurados, marcam o início de uma nova era do PS, em que o partido vai provavelmente demarcar-se também à sua esquerda, assumindo-se deliberadamente como partido "responsável" e "moderado" (e não "radical"), como partido de alternativa de governo (e menos de contestação), enfim como partido de poder (e menos de contrapoder). Correspondentemente, o PS vai apresentar-se crescentemente como partido "de toda a gente" - a começar pelas famosas "classes médias" -, abandonando em geral a autocaracterização sociológica tradicional como partido das "classes trabalhadoras" ou das "classes populares".
Isto não quer dizer que o partido vá abandonar os objectivos e valores tradicionais do socialismo europeu, desde os direitos sociais à igualdade de sexos, havendo aliás vários aspectos em Sócrates está à esquerda de Guterres (por exemplo, a laicidade do Estado). Mas é evidente que, a par desses, serão privilegiadas políticas sociologicamente transversais ou mesmo "universais" (como o ambiente, os direitos dos consumidores ou a qualidade de vida urbana) e que, mesmo em relação às políticas tradicionais, as prioridades e os meios podem ser diferentes. A despenalização do aborto terá de passar por um novo referendo; os serviços públicos, incluindo o SNS, podem ser objecto de reformas visando maior eficiência e sustentabilidade financeira; as políticas sociais dependerão de uma política económica de crescimento e de criação de emprego; será dada maior ênfase à competência na gestão pública, ao bom governo da economia e ao rigor das finanças públicas, três aspectos em que os governos socialistas em geral e o último deles em especial não deixaram boas recordações, e que são essenciais para credibilizar o PS como alternativa de governo.
A amplíssima vitória de Sócrates revelou um PS mais sensível às questões de poder do que às de natureza ideológica. Assim, terá pesado mais a prefiguração de um forte candidato a primeiro-ministro (papel no qual nem Soares nem Alegre eram alternativa) do que a rejeição do discurso ideologicamente mais elaborado e mais comprometido de Manuel Alegre. Do mesmo modo, não se pode desvalorizar a sugestão insinuada pelo novo líder de que com ele o PS pode ter em Guterres um candidato vencedor das eleições presidenciais, uma questão crucial para a qual os outros candidatos não ofereceram resposta. E por último, não foi menos importante a insistência quase obsessiva no objectivo de uma maioria absoluta, que finalmente proporcione ao PS a possibilidade de governar sem ter de optar entre a fragilidade dos governos minoritários e uma aliança contrafeita com o PCP e/ou o BE (supondo excluída à partida uma coligação de "bloco central").
Por isso, paradoxalmente, a ostensiva recusa de responder à questão das alianças de governo funcionou a favor de Sócrates. Independentemente do sentimento do PS em relação aos partidos à sua esquerda (marcado pelo menos pela desconfiança), ele está farto de ter de governar na "corda bamba" e julga ter o direito de, por uma vez, governar sozinho. Um dos pontos fortes do vencedor foi justamente explorar o sentimento difuso de que a admissão antecipada de coligações à esquerda enfraquecia a aposta na maioria absoluta, sendo portanto uma "liability" e não um "asset" político. O princípio de Sócrates é que as eleições se ganham ao centro e que aí não se morre de amores por coligações de esquerda...
(Público, Terça-feira, 28 de Setembro de 2004)
Antes de mais, independentemente do seu vencedor, as eleições para secretário-geral do PS constituíram um enorme triunfo para o próprio partido. Mobilizar dezenas de milhares de militantes para umas eleições internas; manter uma disputa entre três candidaturas, que, apesar de algumas picardias pessoais entre apoiantes, se manteve em geral dentro de parâmetros civilizados; projectar o processo para o exterior, incluindo debates nos 'media', interessando a opinião pública em geral -, eis os factores que tornaram estas eleições um fenómeno porventura irrepetível noutro partido e que mostraram um partido democrático, plural e transparente, que é uma mais-valia na relação de confiança política com os cidadãos. Em tempos de generalizada desafeição em relação à política, eis aqui uma invejável prova de vitalidade política!
Em segundo lugar, a eleição directa do líder do partido, sobretudo quando disputada, como agora, tem um evidente impacto na configuração do poder interno no partido. Faz prevalecer o factor pessoal e comunicacional dos candidatos em prejuízo das moções políticas em confronto; favorece uma espécie de regime presidencialista, que reforça a legitimidade própria do líder e a sua posição perante os órgãos colegiais representativos; e por último tende a transformar as eleições partidárias numas eleições primárias do candidato ao cargo de primeiro-ministro. Surpreendentemente, tendo em conta a tradição organizatória dos partidos socialistas, o PS é entre nós o partido que mais se apropria do modelo norte-americano de acção política, explorando a personalização da luta política, mediatizando as eleições internas e interessando nelas os cidadãos em geral e finalmente fazendo depender a selecção do líder partidário das suas capacidades para disputar a chefia do governo.
Por último, no caso concreto a grande vitória alcançada pelo vencedor dá-lhe excepcionais condições para conduzir uma forte oposição ao Governo (cujo primeiro-ministro não passou por eleições internas nem externas...), para construir uma alternativa política e para travar com êxito as batalhas eleitorais que vão ocorrer nos próximos dois anos, culminando com as eleições parlamentares de 2006 (se o actual governo aguentar até lá...). Primeiro, a sua autoridade no partido não podia ser mais robusta, sem margem para contestação dos seus opositores nestas eleições (mesmo que os não possa nem deva ignorar nem marginalizar); segundo, ele vai sair do Congresso com um esmagador apoio nos órgãos colegiais, dispondo de mão livre quanto à sua composição; terceiro, é de admitir que o apoio que Sócrates obteve dentro do partido possa ser replicado na esfera dos simpatizantes e dos votantes do PS (embora podendo não contar com os independentes mais à esquerda...).
Parece incontestável que o triunfo de Sócrates representa a vitória de uma visão mais moderada (ou mais "centrista"), menos ideológica (ou mais "pragmática") e mais liberal (em termos económicos) do PS e uma derrota de uma concepção mais fiel aos valores tradicionais da esquerda socialista, que Manuel Alegre tão bem representou, centrada sobre a igualdade, os direitos dos trabalhadores, as políticas sociais e o papel do Estado, bem como sobre uma solidariedade de fundo com os demais partidos da esquerda. Neste aspecto estas eleições, pelo desequilíbrio dos resultados apurados, marcam o início de uma nova era do PS, em que o partido vai provavelmente demarcar-se também à sua esquerda, assumindo-se deliberadamente como partido "responsável" e "moderado" (e não "radical"), como partido de alternativa de governo (e menos de contestação), enfim como partido de poder (e menos de contrapoder). Correspondentemente, o PS vai apresentar-se crescentemente como partido "de toda a gente" - a começar pelas famosas "classes médias" -, abandonando em geral a autocaracterização sociológica tradicional como partido das "classes trabalhadoras" ou das "classes populares".
Isto não quer dizer que o partido vá abandonar os objectivos e valores tradicionais do socialismo europeu, desde os direitos sociais à igualdade de sexos, havendo aliás vários aspectos em Sócrates está à esquerda de Guterres (por exemplo, a laicidade do Estado). Mas é evidente que, a par desses, serão privilegiadas políticas sociologicamente transversais ou mesmo "universais" (como o ambiente, os direitos dos consumidores ou a qualidade de vida urbana) e que, mesmo em relação às políticas tradicionais, as prioridades e os meios podem ser diferentes. A despenalização do aborto terá de passar por um novo referendo; os serviços públicos, incluindo o SNS, podem ser objecto de reformas visando maior eficiência e sustentabilidade financeira; as políticas sociais dependerão de uma política económica de crescimento e de criação de emprego; será dada maior ênfase à competência na gestão pública, ao bom governo da economia e ao rigor das finanças públicas, três aspectos em que os governos socialistas em geral e o último deles em especial não deixaram boas recordações, e que são essenciais para credibilizar o PS como alternativa de governo.
A amplíssima vitória de Sócrates revelou um PS mais sensível às questões de poder do que às de natureza ideológica. Assim, terá pesado mais a prefiguração de um forte candidato a primeiro-ministro (papel no qual nem Soares nem Alegre eram alternativa) do que a rejeição do discurso ideologicamente mais elaborado e mais comprometido de Manuel Alegre. Do mesmo modo, não se pode desvalorizar a sugestão insinuada pelo novo líder de que com ele o PS pode ter em Guterres um candidato vencedor das eleições presidenciais, uma questão crucial para a qual os outros candidatos não ofereceram resposta. E por último, não foi menos importante a insistência quase obsessiva no objectivo de uma maioria absoluta, que finalmente proporcione ao PS a possibilidade de governar sem ter de optar entre a fragilidade dos governos minoritários e uma aliança contrafeita com o PCP e/ou o BE (supondo excluída à partida uma coligação de "bloco central").
Por isso, paradoxalmente, a ostensiva recusa de responder à questão das alianças de governo funcionou a favor de Sócrates. Independentemente do sentimento do PS em relação aos partidos à sua esquerda (marcado pelo menos pela desconfiança), ele está farto de ter de governar na "corda bamba" e julga ter o direito de, por uma vez, governar sozinho. Um dos pontos fortes do vencedor foi justamente explorar o sentimento difuso de que a admissão antecipada de coligações à esquerda enfraquecia a aposta na maioria absoluta, sendo portanto uma "liability" e não um "asset" político. O princípio de Sócrates é que as eleições se ganham ao centro e que aí não se morre de amores por coligações de esquerda...
(Público, Terça-feira, 28 de Setembro de 2004)