16 de setembro de 2004
O triunfo da utipag
1 "Arnaldo anda apoquentado com o peso. Não por razões de ordem estética, mas económica. É que cada quilo-minuto de utilização de partes comuns do seu prédio custa 0,075 euros. Desde que o princípio do utilizador-pagador se generalizou, muitos condomínios instalaram mecanismos inteligentes para detecção da frequência e da carga de uso, por habitante, dos elevadores, das escadas, das garagens, das arrecadações e outras áreas comuns. O minuto e o quilograma por centímetro quadrado foram as unidades de medida identificadas como relevantes por uma empresa de consultoria especializada em gestão eficiente e democrática de condomínios. O sistema não admite falhas nem excepções porque é suportado como um add-on pelo cartão do cidadão-utilizador (vulgo CCU), de porte obrigatório.
Ao princípio, Arnaldo e a maioria dos seus vizinhos eram fervorosos entusiastas da corrente utipag (como veio a ser popularizada), essa nova vaga libertadora das velhas contradições. A sua aplicação às questões do condomínio tinha sido decidida, há uns anos atrás, em plena onda de entusiasmo doutrinário. Alguns haviam mesmo defendido a sua extensão às questões do ruído e da produção de lixos domésticos, mas a tecnologia disponível à época não permitia ainda uma quantificação rigorosa e a ideia acabou por cair. Hoje, só os mais fundamentalistas parecem dispostos a recuperá-la.
Na rua, o uso da calçada é pago, nuns casos à câmara, noutros a entidades concessionárias de espaços públicos, ao quilo-minuto. O mesmo princípio se aplica à malha viária, com um amplo leque de escolhas ao dispor do cliente-cidadão. As tecnologias wireless e o CCU resolveram todos os problemas de identificação, medição e débito em conta pela utilização individual do território. O CCU revelou-se, aliás, um caso de sucesso mundial. Inspirado na velha ideia dos pré-pagos do tempo da telefonia GSM e na boa memória da Via Verde, o seu criador introduziu-lhe uma vasta gama de produtos, serviços e modalidades de pagamento. É possível carregar duzentos, quinhentos ou mil euros de serviços públicos fixos no CCU e vê-los consumirem-se, de modo transparente, em cada milímetro de espaço percorrido.
Os serviços públicos móveis - educação, saúde, justiça, segurança e outros - também se suportam no CCU, embora o algoritmo de cálculo dos consumos e os critérios de facturação sejam diferentes. Por exemplo, o uso de polícias é facturado ao minuto, com diferentes modalidades de serviço por patente e corporação. Um sargento da PSP é mais caro do que um tenente da GNR, um fiscal da câmara de Lisboa é mais caro do que um outro de Mirandela, e assim por diante. Na educação e na saúde, todos os serviços se tornaram tendencialmente pagos, tal era o desígnio da utipag. Hoje, não há penso rápido ou pedaço de giz que escape à facturação democrática. Os tempos em que os ricos gozavam gratuitamente da excelência dos serviços públicos acabaram-se e, assim, os pobres voltaram a encontrar lugares disponíveis nas escolas C+S, nas listas de espera e nas camas dos hospitais públicos. A máquina burocrática do Estado, essa, está reduzida ao super-ministério da Facturação e Controlo, onde se concentra meio milhão de funcionários em tarefas que abrangem toda a cadeia de valor da utipag, incluindo a investigação e a engenharia de produto."
2 A história de Arnaldo é a de um mundo onde nos arriscaríamos a viver se a utipag não passasse de uma moda. E porque de moda se trata, o nosso primeiro-ministro adere, de peito aberto e sem fitas, à ideia do utilizador-pagador. Fácil e pop. Começa a ser um hábito preocupante, o de Santana Lopes tratar os assuntos do Estado com a mesma ligeireza com que se acostumou a tratar dos dossiês municipais. A propósito da intenção de cobrar os serviços de saúde por níveis de rendimentos, afirmou sem pestanejar: "se quem pagasse impostos não fossem principalmente aqueles que vivem do seu trabalho, aí teríamos as desigualdades corrigidas; mas como o nosso sistema não é perfeito, temos de introduzir estas correcções para corrigir as desigualdades". O absurdo do juízo dispensa comentários. Numa perspectiva lúdica, é preferível deitarmo-nos a adivinhar o que quer o primeiro-ministro dizer com cenários de "competição suspensiva" a propósito das negociações salariais com a função pública.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 16 de Setembro de 2004
Ao princípio, Arnaldo e a maioria dos seus vizinhos eram fervorosos entusiastas da corrente utipag (como veio a ser popularizada), essa nova vaga libertadora das velhas contradições. A sua aplicação às questões do condomínio tinha sido decidida, há uns anos atrás, em plena onda de entusiasmo doutrinário. Alguns haviam mesmo defendido a sua extensão às questões do ruído e da produção de lixos domésticos, mas a tecnologia disponível à época não permitia ainda uma quantificação rigorosa e a ideia acabou por cair. Hoje, só os mais fundamentalistas parecem dispostos a recuperá-la.
Na rua, o uso da calçada é pago, nuns casos à câmara, noutros a entidades concessionárias de espaços públicos, ao quilo-minuto. O mesmo princípio se aplica à malha viária, com um amplo leque de escolhas ao dispor do cliente-cidadão. As tecnologias wireless e o CCU resolveram todos os problemas de identificação, medição e débito em conta pela utilização individual do território. O CCU revelou-se, aliás, um caso de sucesso mundial. Inspirado na velha ideia dos pré-pagos do tempo da telefonia GSM e na boa memória da Via Verde, o seu criador introduziu-lhe uma vasta gama de produtos, serviços e modalidades de pagamento. É possível carregar duzentos, quinhentos ou mil euros de serviços públicos fixos no CCU e vê-los consumirem-se, de modo transparente, em cada milímetro de espaço percorrido.
Os serviços públicos móveis - educação, saúde, justiça, segurança e outros - também se suportam no CCU, embora o algoritmo de cálculo dos consumos e os critérios de facturação sejam diferentes. Por exemplo, o uso de polícias é facturado ao minuto, com diferentes modalidades de serviço por patente e corporação. Um sargento da PSP é mais caro do que um tenente da GNR, um fiscal da câmara de Lisboa é mais caro do que um outro de Mirandela, e assim por diante. Na educação e na saúde, todos os serviços se tornaram tendencialmente pagos, tal era o desígnio da utipag. Hoje, não há penso rápido ou pedaço de giz que escape à facturação democrática. Os tempos em que os ricos gozavam gratuitamente da excelência dos serviços públicos acabaram-se e, assim, os pobres voltaram a encontrar lugares disponíveis nas escolas C+S, nas listas de espera e nas camas dos hospitais públicos. A máquina burocrática do Estado, essa, está reduzida ao super-ministério da Facturação e Controlo, onde se concentra meio milhão de funcionários em tarefas que abrangem toda a cadeia de valor da utipag, incluindo a investigação e a engenharia de produto."
2 A história de Arnaldo é a de um mundo onde nos arriscaríamos a viver se a utipag não passasse de uma moda. E porque de moda se trata, o nosso primeiro-ministro adere, de peito aberto e sem fitas, à ideia do utilizador-pagador. Fácil e pop. Começa a ser um hábito preocupante, o de Santana Lopes tratar os assuntos do Estado com a mesma ligeireza com que se acostumou a tratar dos dossiês municipais. A propósito da intenção de cobrar os serviços de saúde por níveis de rendimentos, afirmou sem pestanejar: "se quem pagasse impostos não fossem principalmente aqueles que vivem do seu trabalho, aí teríamos as desigualdades corrigidas; mas como o nosso sistema não é perfeito, temos de introduzir estas correcções para corrigir as desigualdades". O absurdo do juízo dispensa comentários. Numa perspectiva lúdica, é preferível deitarmo-nos a adivinhar o que quer o primeiro-ministro dizer com cenários de "competição suspensiva" a propósito das negociações salariais com a função pública.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 16 de Setembro de 2004