21 de setembro de 2004
Transparência e Imparcialidade Eleitoral
Por Vital Morira
Na sequência de mais um furioso ataque de Alberto João Jardim à Comissão Nacional de Eleições (CNE), por causa das eleições regionais da Madeira, o líder parlamentar do PSD na Assembleia da República (AR), Guilherme Silva, veio defender a inutilidade de tal organismo, preconizando nada menos do que a sua extinção. Essa posição já não é inédita, mas a insistência nela, nas condições em que tem lugar, não deve ser desvalorizada como mais uma "jardinice" entre outras.
Não se sabe se o deputado da Madeira falou em nome do seu chefe regional ou em nome do grupo parlamentar do PSD nacional e se as suas palavras vão ter alguma sequência numa iniciativa legislativa, ou se se trata somente de uma peça na guerra de pressão do líder regional contra a CNE neste período eleitoral. Seja como for, estamos perante uma enorme irresponsabilidade política e uma prova lamentável da ligeireza com que se tratam as questões institucionais entre nós, mesmo quando estão em causa mecanismos reguladores das eleições, que são o cerne da democracia representativa.
A CNE existe entre nós desde a fundação do regime democrático, tendo sido criada logo em 1974, com vista às eleições da Assembleia Constituinte, realizadas em 1975, sendo posteriormente estabelecida como órgão permanente do sistema eleitoral português, cabendo-lhe disciplinar e fiscalizar todos os actos de recenseamento e operações eleitorais para órgãos electivos de soberania, das regiões autónomas e do poder local e para o Parlamento Europeu, bem como no âmbito dos referendos. A CNE é um órgão independente e funciona junto da AR, sublinhando assim a sua autonomia em relação à administração comum, dependente do Governo.
A sua composição conta com um juiz do Supremo Tribunal de Justiça, a designar pelo Conselho Superior de Magistratura, que será o presidente; vários membros a designar pela Assembleia da República, sob proposta de cada grupo parlamentar; e vários técnicos designados pelos departamentos governamentais que têm mais a ver com o processo eleitoral. A composição da CNE é renovada com o início de cada legislatura, pelo que o seu mandato tem duração variável, mas não superior a quatro anos.
Entre as suas competências, contam-se designadamente: promover o esclarecimento dos cidadãos acerca dos actos eleitorais; assegurar a igualdade de tratamento dos cidadãos, bem como a igualdade de oportunidades de acção e propaganda das candidaturas durante as campanhas eleitorais; registar a posição dos órgãos de comunicação perante as campanhas eleitorais; proceder à distribuição dos tempos de antena na rádio e na televisão; decidir os recursos interpostos das decisões das entidades competentes relativas à utilização das salas de espectáculos e dos recintos públicos; apreciar a regularidade das receitas e despesas eleitorais; elaborar o mapa dos resultados nacionais das eleições.
Os poderes da CNE revestem uma natureza variada. Por um lado, ela tem poderes de autoridade vinculativos, quer na prática de actos próprios (por exemplo, distribuição de tempos de antena), quer na decisão de recursos das autoridades administrativas com funções de administração eleitoral (como os governadores civis). Por outro lado, a CNE dispõe de poderes não vinculantes, que assumem a forma de recomendações, pareceres ou informações.
A CNE está longe de ser uma instituição exclusiva de Portugal. Existem comissões nacionais eleitorais, como funções semelhantes ou próximas, em muitos países, de vários continentes, dos Estados Unidos à Nigéria, do Reino Unido à Índia, da Polónia à Malásia. Por exemplo, a Federal Election Commission dos Estados Unidos, criada em 1975, por isso contemporânea da nossa, é uma "comissão reguladora independente", tendo por função essencial a implementação da lei sobre os financiamentos das campanhas eleitorais federais. É composta por seis membros, designados pelo Presidente e confirmados pelo Senado, com um mandato de seis anos, sendo inamovíveis durante o mandato. A comissão é renovada cada dois anos em relação a dois dos seus membros. A presidência é rotativa, anualmente.
A existência de uma comissão eleitoral nacional independente da administração governamental é de considerar como uma garantia fundamental da transparência e da igualdade dos processos eleitorais e equiparados. Se existe algum domínio onde se justifica e existência de "entidades administrativas independentes" - figura expressamente prevista na nossa Constituição -, esse é seguramente o das questões eleitorais, de modo a fomentar a confiança dos cidadãos na imparcialidade da administração eleitoral. Já se imaginou, por exemplo, o potencial de desconfiança e de conflito, se a repartição dos tempos de antena entre as diversas candidaturas fosse efectuado por um membro do Governo ou por um director-geral ou pela administração dos órgãos de comunicação obrigados a tempo de antena?
Nem se diga que as funções da CNE poderiam ser desempenhadas pelos tribunais, nomeadamente pelo Tribunal Constitucional. A CNE é um órgão administrativo, sendo administrativas, e não judiciais, as suas atribuições, mesmo quando decide recursos de outras entidades administrativas. Não teria sentido judicializar essas funções, desde as de esclarecimentos eleitorais até às de administração efectiva. É evidente que as decisões administrativas da CNE são judicialmente recorríveis, como é próprio de um Estado de direito (e é exigência constitucional). Entre nós, esse controlo judicial da administração eleitoral, incluindo das decisões administrativas da CNE, cabe ao Tribunal Constitucional, que é tribunal superior não somente da justiça constitucional mas também da justiça eleitoral.
Defender a existência da CNE não significa porém defender todo o seu actual regime. No que respeita, por exemplo, à sua composição, se parece razoável a presidência por um magistrado e a representação parlamentar dos partidos políticos, já é menos defensável a indicação governamental dos elementos técnicos, podendo haver o risco de enviesamento político da composição da Comissão. O que não tem sentido, em todo o caso, é a necessidade de renovação da composição no seguimento de cada eleição legislativa. Salvo os membros indicados pelos partidos - que dependem da composição parlamentar -, os demais deveriam ter um mandato de duração fixa e mais longa (por exemplo, seis anos), para manter a estabilidade e continuidade (e proporcionar maior independência) da CNE. Do mesmo modo, conviria estabelecer as incompatibilidades necessárias para reforçar a independência dos membros.
Em vez de extinção, a CNE deve portanto ser preservada como instituição fundamental do nosso sistema eleitoral. Seria mesmo de pensar em constitucionalizar a sua existência, sendo inconsistente prever na Constituição, e bem, a entidade reguladora independente para a comunicação social e não fazer o mesmo para a comissão nacional de eleições.
(Público, Terça-feira, 21 de Setembro de 2004)
Na sequência de mais um furioso ataque de Alberto João Jardim à Comissão Nacional de Eleições (CNE), por causa das eleições regionais da Madeira, o líder parlamentar do PSD na Assembleia da República (AR), Guilherme Silva, veio defender a inutilidade de tal organismo, preconizando nada menos do que a sua extinção. Essa posição já não é inédita, mas a insistência nela, nas condições em que tem lugar, não deve ser desvalorizada como mais uma "jardinice" entre outras.
Não se sabe se o deputado da Madeira falou em nome do seu chefe regional ou em nome do grupo parlamentar do PSD nacional e se as suas palavras vão ter alguma sequência numa iniciativa legislativa, ou se se trata somente de uma peça na guerra de pressão do líder regional contra a CNE neste período eleitoral. Seja como for, estamos perante uma enorme irresponsabilidade política e uma prova lamentável da ligeireza com que se tratam as questões institucionais entre nós, mesmo quando estão em causa mecanismos reguladores das eleições, que são o cerne da democracia representativa.
A CNE existe entre nós desde a fundação do regime democrático, tendo sido criada logo em 1974, com vista às eleições da Assembleia Constituinte, realizadas em 1975, sendo posteriormente estabelecida como órgão permanente do sistema eleitoral português, cabendo-lhe disciplinar e fiscalizar todos os actos de recenseamento e operações eleitorais para órgãos electivos de soberania, das regiões autónomas e do poder local e para o Parlamento Europeu, bem como no âmbito dos referendos. A CNE é um órgão independente e funciona junto da AR, sublinhando assim a sua autonomia em relação à administração comum, dependente do Governo.
A sua composição conta com um juiz do Supremo Tribunal de Justiça, a designar pelo Conselho Superior de Magistratura, que será o presidente; vários membros a designar pela Assembleia da República, sob proposta de cada grupo parlamentar; e vários técnicos designados pelos departamentos governamentais que têm mais a ver com o processo eleitoral. A composição da CNE é renovada com o início de cada legislatura, pelo que o seu mandato tem duração variável, mas não superior a quatro anos.
Entre as suas competências, contam-se designadamente: promover o esclarecimento dos cidadãos acerca dos actos eleitorais; assegurar a igualdade de tratamento dos cidadãos, bem como a igualdade de oportunidades de acção e propaganda das candidaturas durante as campanhas eleitorais; registar a posição dos órgãos de comunicação perante as campanhas eleitorais; proceder à distribuição dos tempos de antena na rádio e na televisão; decidir os recursos interpostos das decisões das entidades competentes relativas à utilização das salas de espectáculos e dos recintos públicos; apreciar a regularidade das receitas e despesas eleitorais; elaborar o mapa dos resultados nacionais das eleições.
Os poderes da CNE revestem uma natureza variada. Por um lado, ela tem poderes de autoridade vinculativos, quer na prática de actos próprios (por exemplo, distribuição de tempos de antena), quer na decisão de recursos das autoridades administrativas com funções de administração eleitoral (como os governadores civis). Por outro lado, a CNE dispõe de poderes não vinculantes, que assumem a forma de recomendações, pareceres ou informações.
A CNE está longe de ser uma instituição exclusiva de Portugal. Existem comissões nacionais eleitorais, como funções semelhantes ou próximas, em muitos países, de vários continentes, dos Estados Unidos à Nigéria, do Reino Unido à Índia, da Polónia à Malásia. Por exemplo, a Federal Election Commission dos Estados Unidos, criada em 1975, por isso contemporânea da nossa, é uma "comissão reguladora independente", tendo por função essencial a implementação da lei sobre os financiamentos das campanhas eleitorais federais. É composta por seis membros, designados pelo Presidente e confirmados pelo Senado, com um mandato de seis anos, sendo inamovíveis durante o mandato. A comissão é renovada cada dois anos em relação a dois dos seus membros. A presidência é rotativa, anualmente.
A existência de uma comissão eleitoral nacional independente da administração governamental é de considerar como uma garantia fundamental da transparência e da igualdade dos processos eleitorais e equiparados. Se existe algum domínio onde se justifica e existência de "entidades administrativas independentes" - figura expressamente prevista na nossa Constituição -, esse é seguramente o das questões eleitorais, de modo a fomentar a confiança dos cidadãos na imparcialidade da administração eleitoral. Já se imaginou, por exemplo, o potencial de desconfiança e de conflito, se a repartição dos tempos de antena entre as diversas candidaturas fosse efectuado por um membro do Governo ou por um director-geral ou pela administração dos órgãos de comunicação obrigados a tempo de antena?
Nem se diga que as funções da CNE poderiam ser desempenhadas pelos tribunais, nomeadamente pelo Tribunal Constitucional. A CNE é um órgão administrativo, sendo administrativas, e não judiciais, as suas atribuições, mesmo quando decide recursos de outras entidades administrativas. Não teria sentido judicializar essas funções, desde as de esclarecimentos eleitorais até às de administração efectiva. É evidente que as decisões administrativas da CNE são judicialmente recorríveis, como é próprio de um Estado de direito (e é exigência constitucional). Entre nós, esse controlo judicial da administração eleitoral, incluindo das decisões administrativas da CNE, cabe ao Tribunal Constitucional, que é tribunal superior não somente da justiça constitucional mas também da justiça eleitoral.
Defender a existência da CNE não significa porém defender todo o seu actual regime. No que respeita, por exemplo, à sua composição, se parece razoável a presidência por um magistrado e a representação parlamentar dos partidos políticos, já é menos defensável a indicação governamental dos elementos técnicos, podendo haver o risco de enviesamento político da composição da Comissão. O que não tem sentido, em todo o caso, é a necessidade de renovação da composição no seguimento de cada eleição legislativa. Salvo os membros indicados pelos partidos - que dependem da composição parlamentar -, os demais deveriam ter um mandato de duração fixa e mais longa (por exemplo, seis anos), para manter a estabilidade e continuidade (e proporcionar maior independência) da CNE. Do mesmo modo, conviria estabelecer as incompatibilidades necessárias para reforçar a independência dos membros.
Em vez de extinção, a CNE deve portanto ser preservada como instituição fundamental do nosso sistema eleitoral. Seria mesmo de pensar em constitucionalizar a sua existência, sendo inconsistente prever na Constituição, e bem, a entidade reguladora independente para a comunicação social e não fazer o mesmo para a comissão nacional de eleições.
(Público, Terça-feira, 21 de Setembro de 2004)