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16 de setembro de 2004

Utilizador-pagador  

Por Vital Moreira

A regra do utilizador-pagador vigora desde sempre como princípio de financiamento dos serviços públicos que se traduzem em prestações individuais, quer nas tradicionais "utilities" -- como a água, a electricidade, as telecomunicações, os transportes públicos, os serviços postais --, quer noutros serviços, como a justiça e os serviços notariais, entre outros.

No entanto, essa regra não tem aplicação universal, havendo razões substanciais para isentar de pagamento pelos utentes vários serviços públicos, bastando referir os de natureza obrigatória, como o ensino básico (que a própria Constituição determina que seja gratuito), bem como os casos em que o sistema de cobrança seria impossível ou muito dispendioso (por exemplo, o uso das ruas ou da generalidade das estradas).

Por isso, além de haver muitos serviços públicos pagos pelos utentes no acto de uso ou consumo (ainda que com isenções ou reduções parciais, de acordo com a capacidade financeira dos utentes), há os que são financiados por seguros obrigatórios ou contribuições especiais (segurança social, por exemplo) ou pelos impostos gerais, sendo gratuito o seu consumo ou uso individual (caso da saúde, até agora) e ainda outros que obedecem a um "mix", sendo em parte suportados pelo orçamento e noutra pagos pelos interessados (caso do ensino superior, entre outros).

Não existe portanto nenhuma regra absoluta nesta matéria, dependendo as soluções de muitos factores, entre eles o facto de muitos serviços públicos produzirem não somente benefícios individuais para os utentes mas também "externalidades positivas" para a sociedade (caso da educação, da saúde, etc.), as quais devem ser compensadas por via dos impostos de todos e não pelos utentes individuais. Não se justifica, por isso, meter no mesmo saco por exemplo as auto-estradas e os cuidados de saúde, como neste momento ocorre entre nós. Trata-se de situações completamente distintas, mesmo deixando de lado a diferença de tratamento constitucional, visto que a Lei Fundamental garante o SNS como serviço público "tendencialmente gratuito", enquanto que em relação às auto-estradas se trata de uma questão puramente política, que qualquer governo é livre de solucionar como quiser.

No caso das auto-estradas SCUT, elas são desde logo uma excepção em relação à generalidade das auto-estradas entre nós, que são portajadas; depois, elas constituem uma mais-valia adicional facultativa para quem as usa, pois existe sempre uma alternativa rodoviária em todos os itinerários; terceiro, elas estão longe de beneficiar todos, desde logo porque existe muita gente sem automóvel, que portanto nunca as usa e que as paga pelos impostos, se elas não forem pagas pelos utentes (o que se afigura de todo injusto); por último, a par do seu contributo para o desenvolvimento económico, as auto-estradas têm também enormes ?externalidades negativas?, sobretudo em termos ambientais. Aqui faz todo o sentido aplicar em toda a linha o princípio do utilizador-pagador, até porque é relativamente pouco dispendioso instalar um sistema de cobrança.

Nada disso sucede no caso dos cuidados de saúde. Eles visam satisfazer o direito universal à saúde, pelo que não devem depender da capacidade económica para os pagar, sob pena de negá-lo aos que o não podem fazer; o seu "consumo" não depende de uma decisão livre dos beneficiários; não têm alternativa; geram enormes "externalidades positivas" (em termos de bem-estar económico e social colectivo); além disso, estando obviamente excluído o pagamento "à cabeça", seria muito dispendioso montar um sistema eficaz de cobrança (como mostra, aliás, o caso das próprias taxas moderadoras), sobretudo tendo de diferenciar as taxas de acordo com os níveis de rendimento dos utentes. É por isso que os cuidados de saúde são assaz inapropriados para a aplicação do princípio utilizador-pagador, sendo socialmente mais justo o seu financiamento pelos impostos.

As vantagens apontadas ao princípio do utilizador-pagador são evidentes (alívio da pressão fiscal, racionalização do consumo dos serviços, possibilidade de empresarialização e concessão a entidades privadas, etc.). Mas, além de que hoje existem técnicas que permitem empresarializar e concessionar serviços públicos sem pagamento pelos utentes (os hospitais SA e as próprias SCUT são disso exemplo), há também exigências de equidade social, de garantia de acesso universal e mesmo de eficácia (dado o avultado custo da montagem dos sistemas de cobrança) que só podem ser satisfeitas mediante a sua gratuitidade e o seu financiamento por via do orçamento do Estado.

(Diário Económico, 16 de Setembro de 2004)

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