1 de outubro de 2004
Entre a China e a prisão
Por Luís Nazaré
O que pensar da mais recente onda de deslocalização industrial para os Estados Unidos? Como é possível desviar investimento e emprego da Índia e da Malásia para o Arizona, o Oklahoma ou a Virgínia? Qual é o segredo? Políticas fiscais agressivas, subvenções estatais, mão-de-obra mexicana? Nada disso. A resposta é mão-de-obra prisioneira. Assim mesmo, em sentido literal. Num número crescente de estados da União, os prisioneiros são voluntariamente postos a render a bem do patriotismo económico. De peças de automóveis a call-centers, multiplicam-se as frentes produtivas nas cadeias norte-americanas. Está encontrada uma forma singular de fugir à polémica da deslocalização sem se perderem os benefícios económicos que dela resultariam.
Estima-se que, em 2003, mais de oitenta mil reclusos tenham contribuído para o produto nacional americano. O número é impressionante, sobretudo se pensarmos que o exército carcerário de reserva é de mais de dois milhões de indivíduos. Quanta deslocalização em perspectiva! Na verdade, o negócio é muito atractivo. Por um salário inferior ao de um trabalhador semi-qualificado de um país do terceiro-mundo, obtém-se o concurso de uma alma empenhada e disciplinada, quarenta horas por semana. Acabaram-se os desagradáveis e custosos problemas de rotação do pessoal, tão comuns nas empresas de telemarketing, já que as equipas de presidiários são invulgarmente estáveis.
O que este fenómeno norte-americano evidencia é a angústia laboral das economias ocidentais face à mundialização dos negócios. Com mercados de trabalho globais, o capital desloca-se para onde for mais barato produzir. O resultado é o desemprego e a degradação das condições de vida na Europa, nos Estados Unidos e no Japão. A menos que aceitemos trabalhar mais, ganhar menos e sacrificar benefícios sociais, não teremos futuro. É esta a mensagem chantagista do capital, hoje liberto dos constrangimentos proteccionistas do passado e da pressão psicológica do muro de Berlim.
Num recente trabalho da revista Newsweek, um alto responsável do grupo Daimler-Benz atirava friamente: "A mundialização tem o claro objectivo de nivelar os salários. Resta saber se são a Índia e a China que vão apanhar o Ocidente ou se é o Ocidente que vai regredir". Após as ilusões bondosas da sociedade de informação, nascidas nos anos oitenta, onde o mundo evoluído julgava ter encontrado uma tábua de salvação para as inquietações emergentes, o novo milénio anuncia-se bem mais cruel do que imagináramos. Hoje, o conhecimento transmite-se em banda larga e em formato aberto, à velocidade da luz, tornando os exercícios voluntaristas de elevação dos padrões produtivos nacionais em aventuras de efeito duvidoso. Vende-se boa engenharia de telecomunicações em Xangai e software barato em Bangalore. De que servem os estados de alma ocidentais quando a General Electric anuncia pomposamente a adopção de um "Plano 70-70-70", em que a empresa prevê subcontratar setenta por cento do trabalho produtivo, setenta por cento dos quais fora do território norte-americano e, destes setenta por cento, igual percentagem na Índia?
Mais difícil ainda é encontrar soluções sustentáveis para a Europa, este nosso velho continente que, apesar da intriga neo-liberal, continua a suscitar a inveja do mundo em matéria de qualidade de vida e de respeito pelas liberdades individuais. Luciano Gallino, o conhecido sociólogo italiano, tem uma resposta ambivalente para o problema: "É preciso inovar, sobretudo na política. Uma parte da esquerda europeia tende a aceitar o fenómeno da ?terceiro-mundização? dos países desenvolvidos e a alimentar o mito da flexibilidade, enquanto procura conservar os pedaços de um edifício de bem-estar à beira da derrocada. Ao contrário, importaria perceber que a mundialização não é somente um projecto económico, mas uma ambição político-cultural, controversa e reversível". À falta de melhor agenda, fica-nos a reflexão de Gallino, com a qual, confesso, me sinto pouco confortável mas a que pouco ou nada me sinto habilitado a opor.
(artigo publicado no Jornal de Negócios, 30 de Setembro de 2004)
O que pensar da mais recente onda de deslocalização industrial para os Estados Unidos? Como é possível desviar investimento e emprego da Índia e da Malásia para o Arizona, o Oklahoma ou a Virgínia? Qual é o segredo? Políticas fiscais agressivas, subvenções estatais, mão-de-obra mexicana? Nada disso. A resposta é mão-de-obra prisioneira. Assim mesmo, em sentido literal. Num número crescente de estados da União, os prisioneiros são voluntariamente postos a render a bem do patriotismo económico. De peças de automóveis a call-centers, multiplicam-se as frentes produtivas nas cadeias norte-americanas. Está encontrada uma forma singular de fugir à polémica da deslocalização sem se perderem os benefícios económicos que dela resultariam.
Estima-se que, em 2003, mais de oitenta mil reclusos tenham contribuído para o produto nacional americano. O número é impressionante, sobretudo se pensarmos que o exército carcerário de reserva é de mais de dois milhões de indivíduos. Quanta deslocalização em perspectiva! Na verdade, o negócio é muito atractivo. Por um salário inferior ao de um trabalhador semi-qualificado de um país do terceiro-mundo, obtém-se o concurso de uma alma empenhada e disciplinada, quarenta horas por semana. Acabaram-se os desagradáveis e custosos problemas de rotação do pessoal, tão comuns nas empresas de telemarketing, já que as equipas de presidiários são invulgarmente estáveis.
O que este fenómeno norte-americano evidencia é a angústia laboral das economias ocidentais face à mundialização dos negócios. Com mercados de trabalho globais, o capital desloca-se para onde for mais barato produzir. O resultado é o desemprego e a degradação das condições de vida na Europa, nos Estados Unidos e no Japão. A menos que aceitemos trabalhar mais, ganhar menos e sacrificar benefícios sociais, não teremos futuro. É esta a mensagem chantagista do capital, hoje liberto dos constrangimentos proteccionistas do passado e da pressão psicológica do muro de Berlim.
Num recente trabalho da revista Newsweek, um alto responsável do grupo Daimler-Benz atirava friamente: "A mundialização tem o claro objectivo de nivelar os salários. Resta saber se são a Índia e a China que vão apanhar o Ocidente ou se é o Ocidente que vai regredir". Após as ilusões bondosas da sociedade de informação, nascidas nos anos oitenta, onde o mundo evoluído julgava ter encontrado uma tábua de salvação para as inquietações emergentes, o novo milénio anuncia-se bem mais cruel do que imagináramos. Hoje, o conhecimento transmite-se em banda larga e em formato aberto, à velocidade da luz, tornando os exercícios voluntaristas de elevação dos padrões produtivos nacionais em aventuras de efeito duvidoso. Vende-se boa engenharia de telecomunicações em Xangai e software barato em Bangalore. De que servem os estados de alma ocidentais quando a General Electric anuncia pomposamente a adopção de um "Plano 70-70-70", em que a empresa prevê subcontratar setenta por cento do trabalho produtivo, setenta por cento dos quais fora do território norte-americano e, destes setenta por cento, igual percentagem na Índia?
Mais difícil ainda é encontrar soluções sustentáveis para a Europa, este nosso velho continente que, apesar da intriga neo-liberal, continua a suscitar a inveja do mundo em matéria de qualidade de vida e de respeito pelas liberdades individuais. Luciano Gallino, o conhecido sociólogo italiano, tem uma resposta ambivalente para o problema: "É preciso inovar, sobretudo na política. Uma parte da esquerda europeia tende a aceitar o fenómeno da ?terceiro-mundização? dos países desenvolvidos e a alimentar o mito da flexibilidade, enquanto procura conservar os pedaços de um edifício de bem-estar à beira da derrocada. Ao contrário, importaria perceber que a mundialização não é somente um projecto económico, mas uma ambição político-cultural, controversa e reversível". À falta de melhor agenda, fica-nos a reflexão de Gallino, com a qual, confesso, me sinto pouco confortável mas a que pouco ou nada me sinto habilitado a opor.
(artigo publicado no Jornal de Negócios, 30 de Setembro de 2004)