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12 de outubro de 2004

Imprevidência Referendária  

Por Vital Moreira

Aparentemente poucos se deram conta de uma pequena declaração pública do Presidente da República na semana passada, apesar de ela indicar provavelmente o arranque para mais uma revisão constitucional, ainda mal secou a tinta do "Diário da República" que publicou a última, em Julho passado. Para quem, como Jorge Sampaio, tanto tem defendido a estabilidade da Lei Fundamental e denunciado a "revisionite constitucional" de que temos padecido, preconizar uma revisão constitucional menos de três meses após a conclusão da anterior, sem que nada de extraordinário tenha sucedido, não está mal.

Na verdade, o Presidente parece encarar de bom grado a proposta sub-repticiamente lançada em público pelo PSD há poucos dias, no sentido de permitir que o prometido referendo sobre a Constituição europeia incida directa e globalmente sobre o tratado constitucional em si mesmo, e não sobre um número maior ou menor de questões concretas nele contidas, como exige a nossa Constituição. Com esta luz verde de Belém, o mais provável é que o PS acabe por aderir a essa solução, desde logo para não ficar isolado e não ser acusado de inviabilizar uma consulta popular directa e global sobre a Constituição europeia. Para isso será necessário alterar a nossa Lei Fundamental, de modo a introduzir no regime do referendo uma excepção em relação à Constituição europeia.

Os argumentos em favor desta tardia mudança de orientação são essencialmente três. Primeiro, afigura-se assaz difícil formular satisfatoriamente a pergunta, ou perguntas, que incidam sobre as tais questões relevantes relativas à Constituição europeia; segundo, mesmo que abrangesse todas as questões controversas, um referendo que recaísse sobre um número limitado de temas concretos (por exemplo, primazia do direito comunitário, regra da votação por dupla maioria qualificada, presidente do Conselho Europeu, etc.), sem abarcar todo o texto do tratado, seria sempre acusado de insuficiente (na melhor das hipóteses) ou de fraudulento (na pior) pelos adversários da Constituição europeia; terceiro, face à contestação que ela suscita, torna-se politicamente conveniente obter uma legitimação democrática indiscutível, que somente o referendo sobre ela mesma, em todos os seus aspectos, pode proporcionar.

Cabe dizer à partida que, por mais pertinentes que estes argumentos sejam, eles eram mais do que previsíveis desde o início, sendo estranho que não tenham sido considerados aquando da última revisão constitucional, a qual - importa não esquecê-lo - teve por motivação principal abrir caminho à ratificação da Constituição europeia. Basta lembrar que uma proposta de alteração constitucional com o mesmo objectivo foi publicamente defendida (sem o mínimo eco) há mais de um ano pelo deputado Alberto Costa (PS), que não é uma pessoa qualquer, pois foi membro da Convenção que preparou o projecto de Constituição europeia. Além disso, qualquer tentativa de formulação das perguntas a sujeitar a votação popular facilmente evidenciaria as dificuldades verbais do exercício, não sendo crível que nenhum responsável o não tenha tentado desde que a ideia de referendo sobre a Constituição europeia começou a fazer o seu caminho, bem antes da recente revisão constitucional. Era igualmente óbvio que um referendo nos moldes previstos na Constituição portuguesa sempre levantaria objecções por parte dos que se opõem à Constituição da UE, que não se contentam com menos do que com um "não" global e rotundo, não querendo limitar o debate às questões essenciais. Por tudo isto não pode deixar de causar a maior estranheza a imprevidência (para não dizer irresponsabilidade) com que uma questão tão importante e tão melindrosa foi ignorada antes e durante a revisão constitucional de há poucos meses, para vir agora ser recuperada desta forma tão "acidental".

Nos termos em que foi apresentada até agora, a ideia consistiria em estabelecer um regime especial somente para este referendo, sem mexer no regime constitucional actual, que permaneceria inalterado para os demais referendos no futuro. Importa discutir a racionalidade desta solução excepcional.

A filosofia do regime constitucional do referendo assenta na ideia de que numa democracia que se quer essencialmente representativa a decisão popular não deve incidir directamente sobre leis ou tratados internacionais, devendo a sua aprovação pertencer sempre aos órgãos representativos, designadamente à Assembleia da República. Alem disso, mesmo sob o ponto de vista de uma democracia referendária, seria democraticamente contestável submeter a votação popular, em bloco, a aprovação de leis ou tratados internacionais extensos, muitas vezes com dezenas ou centenas de artigos (como é o caso da Constituição europeia), que poucos votantes podem apreender. Por isso, a opção da nossa Lei Fundamental foi no sentido de só admitir a votação popular questões políticas concretas, dotadas de suficiente relevância. Depois, a AR (ou o Governo, conforme os casos) ficam vinculados a decidir de acordo com o sentido do referendo, aprovando (ou não) as leis ou tratados em causa. Ao contrário do que muitas vezes se vê escrito, não existe nenhum tratamento discriminatório dos tratados em relação às leis. Nem uns nem outras podem ser directamente objecto de referendo.

No regime constitucional vigente, portanto, os referendos nunca substituem nem dispensam a aprovação parlamentar das leis e tratados internacionais. Contudo, a AR é obrigada a prescindir de votar soluções que tenham sido chumbadas em referendo, ou a aprovar os diplomas que acolham as soluções aprovadas em votação popular (o que aliás pode dar lugar a delicados problemas políticos, se a maioria parlamentar for hostil a essas soluções). No regime alternativo, a decisão popular incide directamente sobre as leis ou tratados internacionais, podendo dispensar-se uma ulterior votação parlamentar.

É fácil perceber que, se for para a frente a referida proposta de revisão constitucional, a actual filosofia do referendo será abandonada apenas no caso da Constituição europeia, não tocando porém no regime geral, que permanecerá como hoje. A questão que se coloca é a seguinte: porquê fazer uma excepção especificamente para este caso? Pois não é verdade que os argumentos a favor do referendo directo da Constituição europeia valem inteiramente para a maior parte dos tratados internacionais e mesmo das leis? Não será então de encarar uma modificação do próprio regime constitucional do referendo, em vez de estabelecer uma excepção "ad hoc" para o tratado constitucional europeu? Não será cair no ridículo solucionar agora somente este caso, para mais tarde se constatar que é preciso fazer o mesmo no próximo referendo de um tratado ou de uma lei em que as mesmas considerações se levantarem pertinentemente?

(Público, Terça-feira, 12 de Outubro de 2004)

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