19 de outubro de 2004
O Princípio do Fim do "Jardinismo"?
Por Vital Moreira
Os eleições regionais são uma clara vitória para ao PS, que obteve os melhores resultados de sempre em ambas as regiões autónomas, e um sério revés para os partidos da direita, que falham estrondosamente a aposta conjunta nos Açores e baixam ambos na Madeira (embora com nova vitória do PSD). Na estreia eleitoral de Sócrates e de Santana Lopes à frente dos respectivos partidos, é evidente que, depois do triunfo nas eleições europeias em Junho passado, o PS ganhou igualmente o segundo "round" do ciclo de eleições que termina com as eleições parlamentares, daqui a dois anos (se não for antes...).
Pese embora a dimensão essencialmente regional destas eleições, a verdade é que, especialmente nos Açores, houve um extraordinário investimento da coligação governamental nacional, com uma romaria de dirigentes, ministros e figuras gradas, desde Rebelo de Sousa a Santana Lopes e Paulo Portas, e com uma indecente panóplia de promessas do Governo da República, anunciadas pelo próprio primeiro-ministro. Nos Açores pelo menos a derrota não é somente de Vítor Cruz. Resta saber se, em vez de um apoio, essa maciça participação da direita continental não se traduziu num "handicap". É provável que a dupla Santana-Portas já não seja uma companhia politicamente recomendável em nenhum lado.
Se nos Açores a surpresa foi a dimensão da vitória de Carlos César e da derrota da coligação PSD-PP - tanto mais que os comentadores políticos e os "media", com a RTP1 à cabeça, davam levianamente a ideia de que a disputa estava a ser renhida e que a vitória socialista poderia estar comprometida -, já na Madeira a surpresa não foi mais uma vitória de Jardim, mas sim a sensível descida eleitoral do tanto do PSD como do PP e a considerável subida do PS, com o melhor "score" de sempre nessa região autónoma, tanto mais de relevar quanto é certo que o PCP também sobe e que a descida do BE é reduzida em termos absolutos. Com uma votação a aproximar-se dos 30 por cento e com o encurtamento da distância para o PSD, o PS pode aspirar pela primeira vez a ser uma verdadeira alternativa de governo, sendo de admitir que, num futuro não muito distante, as eleições regionais na Madeira possam não estar antecipadamente ganhas.
Se estas eleições podem ser, ou não, o princípio do fim do jardinismo na Madeira, isso depende da mudança nos factores que, durante quase três décadas, justificaram a hegemonia política do PSD e de Alberto João Jardim, que apresenta traços típicos da síndrome "mexicana" e do caudilhismo populista, em que aos mecanismos formais da democracia eleitoral não correspondem os traços sociais e culturais que lhe dão sentido, nomeadamente a separação entre o poder e a sociedade civil, a autonomia dos indivíduos e das organizações sociais, a robustez dos grupos de interesse, a separação entre a política e a religião, a independência e o pluralismo dos "media", o respeito pelos direitos da oposição, isto para não falar do notório défice de uma "cultura cívica" de liberdade e de independência individual. São evidentes a excessiva dependência de pessoas e organizações em relação ao poder (empregos, subsídios, contratos), desde as empresas aos clubes de futebol; a latente e por vezes ostensiva promiscuidade entre o poder regional e a Igreja Católica; o controlo dos "media" públicos (incluindo um jornal) e as pressões e ameaças sobre os jornalistas e os jornais independentes (que culminou com a recente ameaça de expropriação do "Diário de Notícias" do Funchal); a permanente desconsideração da oposição e das suas posições. Como escrevia há dias Vicente Jorge Silva - um observador privilegiado como poucos -, a Madeira "é uma sociedade que depois de séculos de terrível atraso e isolamento, não teve a oportunidade histórica de se emancipar civicamente".
Com a autonomia regional garantida na Constituição de 1976 veio não somente a regionalização de atribuições e serviços públicos, mas também os meios financeiros que, com contribuição maciça do Estado e depois da UE, transformaram radicalmente a vida na Madeira, visto que, tendo em 1974 dramáticos índices de atraso e de isolamento, com os mais altos níveis de iliteracia e de pobreza, se transformou na região do país com o segundo melhor rendimento "per capita". Por isso, as bases do poder do PSD e de Jardim na Madeira não assentam somente na herança dos mecanismos de poder e de controlo tradicionais e da criação de uma sociedade altamente dependente do poder, mas também, desde a origem, na satisfação de anseios de autonomia e de melhoria de condições de vida, que a autonomia político-administrativa e os abundantes recursos financeiros externos proporcionaram. Numa revolução que breve regrediu no plano económico e social, Jardim realizou porventura a única verdadeira revolução nas "relações de produção" que perdurou desde o 25 de Abril, a saber a extinção da colonia e a atribuição da propriedade plena das terras aos rendeiros, para desespero dos antigos senhores da terra, o que lhe assegurou a eterna gratidão dos meios rurais. Depois, mediante uma agressiva política de permanente reivindicação de mais autonomia e de mais meios financeiros, onde não faltaram frequentes provocações aos órgãos da República e manifestações mais ou menos veladas de chantagem separatista, Jardim pôde dispor de meios para dotar a Madeira de infra-estruturas impensáveis há 30 anos, bem como de serviços públicos em condições mais favoráveis do que os do continente (por exemplo, educação e saúde). A hegemonia política de Jardim deve-se, pois, tanto à sua auto-identificação com a autonomia e o desenvolvimento da Madeira, como à incapacidade da oposição para contestar essa identificação e para encontrar factores de descontentamento susceptíveis de questionar o poder instalado.
Em que é que estas eleições podem prenunciar o começo do fim do jardinismo? Primeiro, o próprio desenvolvimento económico e social cria por si mesmo uma sociedade mais urbana, mais plural e mais independente, tendo o eleitorado urbano (em especial no Funchal) mostrado uma clara erosão do apelo jardinista. Segundo, com a lei das finanças regionais e com a recente revisão constitucional, ficaram praticamente esgotadas as linhas de reivindicação de mais autonomia e de crescimento infinito de transferências financeiras do Estado. Terceiro, não podendo o próprio Jardim perpetuar-se pessoalmente no poder, não é certo que seja possível um jardinismo sem Jardim.
Por tudo isto, a resposta à questão de saber se estas eleições podem indicar a proximidade de uma mudança política na Madeira é um cauteloso "sim, se...".
(Público, Terça-feira, 19 de Outubro de 2004)
Os eleições regionais são uma clara vitória para ao PS, que obteve os melhores resultados de sempre em ambas as regiões autónomas, e um sério revés para os partidos da direita, que falham estrondosamente a aposta conjunta nos Açores e baixam ambos na Madeira (embora com nova vitória do PSD). Na estreia eleitoral de Sócrates e de Santana Lopes à frente dos respectivos partidos, é evidente que, depois do triunfo nas eleições europeias em Junho passado, o PS ganhou igualmente o segundo "round" do ciclo de eleições que termina com as eleições parlamentares, daqui a dois anos (se não for antes...).
Pese embora a dimensão essencialmente regional destas eleições, a verdade é que, especialmente nos Açores, houve um extraordinário investimento da coligação governamental nacional, com uma romaria de dirigentes, ministros e figuras gradas, desde Rebelo de Sousa a Santana Lopes e Paulo Portas, e com uma indecente panóplia de promessas do Governo da República, anunciadas pelo próprio primeiro-ministro. Nos Açores pelo menos a derrota não é somente de Vítor Cruz. Resta saber se, em vez de um apoio, essa maciça participação da direita continental não se traduziu num "handicap". É provável que a dupla Santana-Portas já não seja uma companhia politicamente recomendável em nenhum lado.
Se nos Açores a surpresa foi a dimensão da vitória de Carlos César e da derrota da coligação PSD-PP - tanto mais que os comentadores políticos e os "media", com a RTP1 à cabeça, davam levianamente a ideia de que a disputa estava a ser renhida e que a vitória socialista poderia estar comprometida -, já na Madeira a surpresa não foi mais uma vitória de Jardim, mas sim a sensível descida eleitoral do tanto do PSD como do PP e a considerável subida do PS, com o melhor "score" de sempre nessa região autónoma, tanto mais de relevar quanto é certo que o PCP também sobe e que a descida do BE é reduzida em termos absolutos. Com uma votação a aproximar-se dos 30 por cento e com o encurtamento da distância para o PSD, o PS pode aspirar pela primeira vez a ser uma verdadeira alternativa de governo, sendo de admitir que, num futuro não muito distante, as eleições regionais na Madeira possam não estar antecipadamente ganhas.
Se estas eleições podem ser, ou não, o princípio do fim do jardinismo na Madeira, isso depende da mudança nos factores que, durante quase três décadas, justificaram a hegemonia política do PSD e de Alberto João Jardim, que apresenta traços típicos da síndrome "mexicana" e do caudilhismo populista, em que aos mecanismos formais da democracia eleitoral não correspondem os traços sociais e culturais que lhe dão sentido, nomeadamente a separação entre o poder e a sociedade civil, a autonomia dos indivíduos e das organizações sociais, a robustez dos grupos de interesse, a separação entre a política e a religião, a independência e o pluralismo dos "media", o respeito pelos direitos da oposição, isto para não falar do notório défice de uma "cultura cívica" de liberdade e de independência individual. São evidentes a excessiva dependência de pessoas e organizações em relação ao poder (empregos, subsídios, contratos), desde as empresas aos clubes de futebol; a latente e por vezes ostensiva promiscuidade entre o poder regional e a Igreja Católica; o controlo dos "media" públicos (incluindo um jornal) e as pressões e ameaças sobre os jornalistas e os jornais independentes (que culminou com a recente ameaça de expropriação do "Diário de Notícias" do Funchal); a permanente desconsideração da oposição e das suas posições. Como escrevia há dias Vicente Jorge Silva - um observador privilegiado como poucos -, a Madeira "é uma sociedade que depois de séculos de terrível atraso e isolamento, não teve a oportunidade histórica de se emancipar civicamente".
Com a autonomia regional garantida na Constituição de 1976 veio não somente a regionalização de atribuições e serviços públicos, mas também os meios financeiros que, com contribuição maciça do Estado e depois da UE, transformaram radicalmente a vida na Madeira, visto que, tendo em 1974 dramáticos índices de atraso e de isolamento, com os mais altos níveis de iliteracia e de pobreza, se transformou na região do país com o segundo melhor rendimento "per capita". Por isso, as bases do poder do PSD e de Jardim na Madeira não assentam somente na herança dos mecanismos de poder e de controlo tradicionais e da criação de uma sociedade altamente dependente do poder, mas também, desde a origem, na satisfação de anseios de autonomia e de melhoria de condições de vida, que a autonomia político-administrativa e os abundantes recursos financeiros externos proporcionaram. Numa revolução que breve regrediu no plano económico e social, Jardim realizou porventura a única verdadeira revolução nas "relações de produção" que perdurou desde o 25 de Abril, a saber a extinção da colonia e a atribuição da propriedade plena das terras aos rendeiros, para desespero dos antigos senhores da terra, o que lhe assegurou a eterna gratidão dos meios rurais. Depois, mediante uma agressiva política de permanente reivindicação de mais autonomia e de mais meios financeiros, onde não faltaram frequentes provocações aos órgãos da República e manifestações mais ou menos veladas de chantagem separatista, Jardim pôde dispor de meios para dotar a Madeira de infra-estruturas impensáveis há 30 anos, bem como de serviços públicos em condições mais favoráveis do que os do continente (por exemplo, educação e saúde). A hegemonia política de Jardim deve-se, pois, tanto à sua auto-identificação com a autonomia e o desenvolvimento da Madeira, como à incapacidade da oposição para contestar essa identificação e para encontrar factores de descontentamento susceptíveis de questionar o poder instalado.
Em que é que estas eleições podem prenunciar o começo do fim do jardinismo? Primeiro, o próprio desenvolvimento económico e social cria por si mesmo uma sociedade mais urbana, mais plural e mais independente, tendo o eleitorado urbano (em especial no Funchal) mostrado uma clara erosão do apelo jardinista. Segundo, com a lei das finanças regionais e com a recente revisão constitucional, ficaram praticamente esgotadas as linhas de reivindicação de mais autonomia e de crescimento infinito de transferências financeiras do Estado. Terceiro, não podendo o próprio Jardim perpetuar-se pessoalmente no poder, não é certo que seja possível um jardinismo sem Jardim.
Por tudo isto, a resposta à questão de saber se estas eleições podem indicar a proximidade de uma mudança política na Madeira é um cauteloso "sim, se...".
(Público, Terça-feira, 19 de Outubro de 2004)