1 de outubro de 2004
PS, Partido Socrático
Por Vicente Jorge Silva
Com o congresso deste fim-de-semana, o PS celebra a primeira missa da era socrática. Tendo assegurado cerca de oitenta por cento dos votos dos militantes nas primeiras eleições directas efectivamente disputadas da história do partido, o novo secretário-geral dispõe de uma legitimidade mais incontestável do que todos os seus antecessores.
Pode discutir-se o contexto histórico muito peculiar em que estas eleições decorreram - ou o efeito de contraposição mediática de imagens (Sócrates versus Santana) que influenciou, inquestionavelmente, a expressão da vontade dos militantes socialistas. Mas oitenta por cento são oitenta por cento: trata-se de uma percentagem tão esmagadora que não consente álibis ou teorias conspirativas, em especial o recurso à famosa dicotomia entre aparelho e militantes (como ainda insiste em fazer Manuel Alegre).
Não há aparelho nenhum - por mais manipulador e triturador que seja, se exceptuarmos situações de tipo totalitário, o que não é obviamente o caso - que faça assim tábua rasa da suposta generosidade e pureza do militantismo partidário e explique um triunfo desta dimensão. Aliás, Sócrates parece ter sido o primeiro a ficar surpreendido com isso, convencido eventualmente de que o capital afectivo e histórico de Alegre junto das bases socialistas lhe garantiria um "score" muito superior àquele que efectivamente obteve. Só que o erro de cálculo sobre esse "score" foi praticamente generalizado - e essa é uma das principais lições a retirar de um escrutínio que nos expôs a natureza profunda do PS.
Acreditei pessoalmente que Manuel Alegre poderia atingir entre 20 e 25 por cento dos votos nas directas socialistas (já a percentagem registada por João Soares, que nem em secções cruciais de Lisboa foi capaz de apresentar uma lista de delegados ao congresso, pareceu-me dentro das expectativas previsíveis). Durante a campanha, Alegre insistiu em proclamações épicas de que já tinha ganho, de que o PS estava a acordar e a mudar, de que havia um movimento profundo no sentido da transformação do partido. Ora, ninguém pode pretender criar uma dinâmica de efectiva mudança partidária a partir de um universo inferior a um quinto dos militantes (a não ser, o que não é o caso de Alegre, numa perspectiva de vanguardismo leninista). Aquilo que Manuel Alegre se propunha representar - as raízes históricas e a herança ideológica do PS, os princípios e os valores de referência da esquerda democrática - acabou por obter uma votação frustrante e essencialmente simbólica.
Por maiores que sejam a boa-vontade e a capacidade de auto-ilusão dos que se reconhecem nessa causa, a realidade dos números é irrecusável. Não há pior cego do que aquele que não quer ver. E não é baixando as quotas dos militantes de dois euros mensais para cinquenta cêntimos, como agora propõe Manuel Alegre, que os pobres militantes se libertarão da dependência económica dos caciques do aparelho partidário. Esse é um argumento miserabilista que não convence ninguém (e não deveria sugestionar um homem inteligente e arguto como Alegre).
O PS, vimo-lo claramente, não está dividido entre um corpo e uma alma contraditórios, entre o vício do aparelhismo e a virtude da militância. Nestas eleições, a natureza profunda do partido reflectiu uma realidade mais singela e mais prosaica onde essa dicotomia não tem lugar. Se é certo que o aparelho socialista fez tudo o que podia para eleger Sócrates, não foi apenas por isso que oitenta por cento dos militantes, num escrutínio invulgarmente participado - e que constituiu, nessa medida, um exemplo de democraticidade interna para outras formações partidárias -, conferiram uma legitimidade tão expressiva ao novo secretário-geral. A verdade é que Sócrates ultrapassou, por larga margem, a base de apoio indispensável à conquista do poder - para que já se vinha batendo em longa campanha eleitoral subterrânea durante o consulado de Ferro Rodrigues (apesar das juras de fidelidade e solidariedade que, entretanto, não se cansava de manifestar ao então líder do partido).
Sócrates só deixou trair a sua óbvia duplicidade de comportamento face a Ferro depois das eleições para o Parlamento Europeu e, mesmo assim, apenas o fez saber através de alguns adeptos incondicionais da primeira hora, quando a dimensão inédita do triunfo socialista levou Ferro a apostar numa recandidatura à liderança. Mas em vez de ser castigado por essa duplicidade, Sócrates capitalizou-a com uma frieza verdadeiramente maquiavélica. Se, com Ferro, o PS registara a maior vitória eleitoral de sempre, o PS estava farto de sofrer por causa de Ferro - e da Casa Pia. Ferro sabia-o, mas era tarde demais para reinventar-se. Enredado nas teias de uma miserável campanha de assassinato moral que o designara como alvo a abater, Ferro chegara aí já prisioneiro de outro enredo: a forma fechada, autista e desconfiada com que exercia a liderança do partido. De qualquer modo, as europeias rasgavam-lhe uma primeira porta para tentar sair do cerco; a crise provocada pela demissão de Durão Barroso do Governo abriu-lhe a segunda. Só que a "traição" do amigo Sampaio - no qual apostara para além do que seria razoável e legítimo - deixou-o desamparado e com um pretexto oportuno para pôr fim ao pesadelo.
Sócrates tinha o caminho livre para cavalgar a onda que impacientemente preparava há largo tempo, enquanto seduzia aliados nos quadrantes mais diversos do partido, sem cuidar de estabelecer entre eles qualquer nexo de coerência doutrinária ou programática, e lá foi povoando esse albergue espanhol onde cabiam desde um Armando Vara até um Sérgio Sousa Pinto. Aquilo que exclusivamente o movia, que os movia e que por fim fez mover as bases do PS - muito para além das melhores expectativas socráticas - era o apelo, o apetite do poder. Ou, por outras palavras, a orfandade do poder em que António Guterres deixara o PS (e esse seu delfim não designado mas pressentido que era Sócrates).
O que principalmente fez a força de Sócrates foi esse apelo, esse apetite e essa orfandade. Ele teve a habilidade de explorar, como ponto central da sua campanha, o alvo da maioria absoluta (a tal que Guterres não se atrevera a pedir e ficara hipotecada pela caricatura desonrosa de um queijo limiano). Enquanto Alegre e João Soares pareciam descrer dessa possibilidade (embora também afirmassem lutar por ela, o que não é exactamente a mesma coisa), Sócrates apostou tudo nesse objectivo estratégico e com ele fez sonhar as bases socialistas. Porque o PS profundo sonha, afinal, com a ilusão de um poder individido e absoluto que nunca teve (ou que, em tempos, teve de repartir à mesa do centrão político com o PSD). Nessa perspectiva, alianças com o PCP ou o Bloco seriam, de resto, mais problemáticas do que uma nova divisão do bolo com os comensais do passado (se houver motivos de "emergência nacional" que o justifiquem).
No fundo, o que separava Sócrates de Alegre (num duelo onde João Soares se limitou a representar um papel residual, apesar de ter ganho o combate televisivo na SIC-Notícias) era o apetite do poder e a relutância no exercício desse poder - que Alegre nunca conseguiu disfarçar, especialmente no que se refere ao desempenho do cargo de primeiro-ministro. Num partido que sempre foi muito mais pragmático e gestionário do poder do que movido por convicções ideológicas e onde a esquerda acordou tarde, desarmada e retraída para este último desafio, o triunfo imperial de José Sócrates representa o início de uma nova era de diluição ideológica e apagamento das ilusões que a marca do socialismo deixou impressas simbolicamente na história do PS. Só que esse virar de página, iniciada pelo guterrismo, talvez se faça agora para a página branca do fim dos livros. A sigla PS poderá passar a ser traduzida por Partido Socrático no novo livro que vai para o prelo. E enquanto isso acontece, a "tralha guterrista" é reciclada por um antigo ministro que conquistou os seus galões políticos na área do Ambiente.
(Diário Económico, 6ª feira, 1 de Outubro de 2004)
Com o congresso deste fim-de-semana, o PS celebra a primeira missa da era socrática. Tendo assegurado cerca de oitenta por cento dos votos dos militantes nas primeiras eleições directas efectivamente disputadas da história do partido, o novo secretário-geral dispõe de uma legitimidade mais incontestável do que todos os seus antecessores.
Pode discutir-se o contexto histórico muito peculiar em que estas eleições decorreram - ou o efeito de contraposição mediática de imagens (Sócrates versus Santana) que influenciou, inquestionavelmente, a expressão da vontade dos militantes socialistas. Mas oitenta por cento são oitenta por cento: trata-se de uma percentagem tão esmagadora que não consente álibis ou teorias conspirativas, em especial o recurso à famosa dicotomia entre aparelho e militantes (como ainda insiste em fazer Manuel Alegre).
Não há aparelho nenhum - por mais manipulador e triturador que seja, se exceptuarmos situações de tipo totalitário, o que não é obviamente o caso - que faça assim tábua rasa da suposta generosidade e pureza do militantismo partidário e explique um triunfo desta dimensão. Aliás, Sócrates parece ter sido o primeiro a ficar surpreendido com isso, convencido eventualmente de que o capital afectivo e histórico de Alegre junto das bases socialistas lhe garantiria um "score" muito superior àquele que efectivamente obteve. Só que o erro de cálculo sobre esse "score" foi praticamente generalizado - e essa é uma das principais lições a retirar de um escrutínio que nos expôs a natureza profunda do PS.
Acreditei pessoalmente que Manuel Alegre poderia atingir entre 20 e 25 por cento dos votos nas directas socialistas (já a percentagem registada por João Soares, que nem em secções cruciais de Lisboa foi capaz de apresentar uma lista de delegados ao congresso, pareceu-me dentro das expectativas previsíveis). Durante a campanha, Alegre insistiu em proclamações épicas de que já tinha ganho, de que o PS estava a acordar e a mudar, de que havia um movimento profundo no sentido da transformação do partido. Ora, ninguém pode pretender criar uma dinâmica de efectiva mudança partidária a partir de um universo inferior a um quinto dos militantes (a não ser, o que não é o caso de Alegre, numa perspectiva de vanguardismo leninista). Aquilo que Manuel Alegre se propunha representar - as raízes históricas e a herança ideológica do PS, os princípios e os valores de referência da esquerda democrática - acabou por obter uma votação frustrante e essencialmente simbólica.
Por maiores que sejam a boa-vontade e a capacidade de auto-ilusão dos que se reconhecem nessa causa, a realidade dos números é irrecusável. Não há pior cego do que aquele que não quer ver. E não é baixando as quotas dos militantes de dois euros mensais para cinquenta cêntimos, como agora propõe Manuel Alegre, que os pobres militantes se libertarão da dependência económica dos caciques do aparelho partidário. Esse é um argumento miserabilista que não convence ninguém (e não deveria sugestionar um homem inteligente e arguto como Alegre).
O PS, vimo-lo claramente, não está dividido entre um corpo e uma alma contraditórios, entre o vício do aparelhismo e a virtude da militância. Nestas eleições, a natureza profunda do partido reflectiu uma realidade mais singela e mais prosaica onde essa dicotomia não tem lugar. Se é certo que o aparelho socialista fez tudo o que podia para eleger Sócrates, não foi apenas por isso que oitenta por cento dos militantes, num escrutínio invulgarmente participado - e que constituiu, nessa medida, um exemplo de democraticidade interna para outras formações partidárias -, conferiram uma legitimidade tão expressiva ao novo secretário-geral. A verdade é que Sócrates ultrapassou, por larga margem, a base de apoio indispensável à conquista do poder - para que já se vinha batendo em longa campanha eleitoral subterrânea durante o consulado de Ferro Rodrigues (apesar das juras de fidelidade e solidariedade que, entretanto, não se cansava de manifestar ao então líder do partido).
Sócrates só deixou trair a sua óbvia duplicidade de comportamento face a Ferro depois das eleições para o Parlamento Europeu e, mesmo assim, apenas o fez saber através de alguns adeptos incondicionais da primeira hora, quando a dimensão inédita do triunfo socialista levou Ferro a apostar numa recandidatura à liderança. Mas em vez de ser castigado por essa duplicidade, Sócrates capitalizou-a com uma frieza verdadeiramente maquiavélica. Se, com Ferro, o PS registara a maior vitória eleitoral de sempre, o PS estava farto de sofrer por causa de Ferro - e da Casa Pia. Ferro sabia-o, mas era tarde demais para reinventar-se. Enredado nas teias de uma miserável campanha de assassinato moral que o designara como alvo a abater, Ferro chegara aí já prisioneiro de outro enredo: a forma fechada, autista e desconfiada com que exercia a liderança do partido. De qualquer modo, as europeias rasgavam-lhe uma primeira porta para tentar sair do cerco; a crise provocada pela demissão de Durão Barroso do Governo abriu-lhe a segunda. Só que a "traição" do amigo Sampaio - no qual apostara para além do que seria razoável e legítimo - deixou-o desamparado e com um pretexto oportuno para pôr fim ao pesadelo.
Sócrates tinha o caminho livre para cavalgar a onda que impacientemente preparava há largo tempo, enquanto seduzia aliados nos quadrantes mais diversos do partido, sem cuidar de estabelecer entre eles qualquer nexo de coerência doutrinária ou programática, e lá foi povoando esse albergue espanhol onde cabiam desde um Armando Vara até um Sérgio Sousa Pinto. Aquilo que exclusivamente o movia, que os movia e que por fim fez mover as bases do PS - muito para além das melhores expectativas socráticas - era o apelo, o apetite do poder. Ou, por outras palavras, a orfandade do poder em que António Guterres deixara o PS (e esse seu delfim não designado mas pressentido que era Sócrates).
O que principalmente fez a força de Sócrates foi esse apelo, esse apetite e essa orfandade. Ele teve a habilidade de explorar, como ponto central da sua campanha, o alvo da maioria absoluta (a tal que Guterres não se atrevera a pedir e ficara hipotecada pela caricatura desonrosa de um queijo limiano). Enquanto Alegre e João Soares pareciam descrer dessa possibilidade (embora também afirmassem lutar por ela, o que não é exactamente a mesma coisa), Sócrates apostou tudo nesse objectivo estratégico e com ele fez sonhar as bases socialistas. Porque o PS profundo sonha, afinal, com a ilusão de um poder individido e absoluto que nunca teve (ou que, em tempos, teve de repartir à mesa do centrão político com o PSD). Nessa perspectiva, alianças com o PCP ou o Bloco seriam, de resto, mais problemáticas do que uma nova divisão do bolo com os comensais do passado (se houver motivos de "emergência nacional" que o justifiquem).
No fundo, o que separava Sócrates de Alegre (num duelo onde João Soares se limitou a representar um papel residual, apesar de ter ganho o combate televisivo na SIC-Notícias) era o apetite do poder e a relutância no exercício desse poder - que Alegre nunca conseguiu disfarçar, especialmente no que se refere ao desempenho do cargo de primeiro-ministro. Num partido que sempre foi muito mais pragmático e gestionário do poder do que movido por convicções ideológicas e onde a esquerda acordou tarde, desarmada e retraída para este último desafio, o triunfo imperial de José Sócrates representa o início de uma nova era de diluição ideológica e apagamento das ilusões que a marca do socialismo deixou impressas simbolicamente na história do PS. Só que esse virar de página, iniciada pelo guterrismo, talvez se faça agora para a página branca do fim dos livros. A sigla PS poderá passar a ser traduzida por Partido Socrático no novo livro que vai para o prelo. E enquanto isso acontece, a "tralha guterrista" é reciclada por um antigo ministro que conquistou os seus galões políticos na área do Ambiente.
(Diário Económico, 6ª feira, 1 de Outubro de 2004)