2 de novembro de 2004
A Ideia da Constituição Europeia
Por Vital Moreira
A cerimónia de assinatura do Tratado que aprova a Constituição Europeia no mesmo local grandioso onde foi assinado o Tratado de Roma de 1957 ajuda a sublinhar as enormes mudanças por que passou a integração europeia em menos de meio século. Os protagonistas da cerimónia de assinatura foram quatro vezes mais (25 em vez de 6), abrangendo a maioria de uma Europa quase plenamente democratizada. Realizado o mercado comum, que era o objectivo principal em 1957, a União Europeia tem hoje múltiplas atribuições, incluindo no domínio das relações externas e da defesa. De uma associação de Estados nasceu depois uma comunidade de cidadãos europeus, com direitos políticos próprios, incluindo o direito de voto em eleições europeias.
O novo "tratado constitucional" traz novas e substanciais mudanças, tanto conceptuais como institucionais. Mas a revolução é menos radical do que por vezes se dá a entender. Poderá mesmo disputar-se se ele ombreia nesse aspecto com o Tratado de Maastricht (1991), que converteu a CEE em CE, criou paralelamente a União Europeia, conferindo-lhe funções na área das relações externas e da justiça e segurança interna e instituiu a cidadania europeia, tornando os cidadãos em protagonistas directos da integração, vinculou as instituições comunitárias aos direitos fundamentais reconhecidos no património constitucional comum e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, entre muitas outras grandes alterações.
As grandes alterações de natureza institucional da UE contidas no novo tratado de Roma (presidente do Conselho Europeu, regra da decisão por dupla maioria qualificada, ministro dos negócios estrangeiros, composição da Comissão, reforço dos poderes do Parlamento, etc.) preservam no fundamental o sistema de governo precedente e a correspondente separação de poderes entre o Conselho de Ministros, o Parlamento e a Comissão e em geral desenvolvem linhas de evolução que vinham de trás, como sucede com o reforço das funções do Parlamento, designadamente as funções legislativas, e com o maior controlo e responsabilidade parlamentar da Comissão, como órgão executivo que é. As novas soluções institucionais promovem e reforçam os mecanismos democráticos dentro da UE, de acordo com os princípios da democracia parlamentar tradicional na Europa (poder legislativo do parlamento, controlo parlamentar do governo, etc.), sem porém eliminar a profunda originalidade "experimental" da arquitectura institucional da UE e sem diminuir, antes pelo contrário, o papel dos governos nacionais através do Conselho de Ministros, que se mantém como órgão de direcção política do UE (no contexto do "dualismo governativo" com a Comissão) e que continua a partilhar competências legislativas com o Parlamento, permitindo evocar o papel do senado nos sistemas bicamarais.
Porventura a maior inovação seja de natureza conceptual e simbólica, com a adopção da noção de Constituição, com tudo o que ela pressupõe e implica. A ideia de constituição europeia foi desde cedo uma "noção combativa" ("Kampfbegriff") dos adeptos de mais profunda integração, em geral, e de soluções federalistas, em particular. Mas as condições para pensar uma constituição europeia ao lado das constituições dos Estados-membros só muito lentamente foram sendo preenchidas. Entre elas contam-se a transformação da CEE numa organização de fins gerais (e não somente económicos), o alargamento dos poderes legislativos, administrativos e judiciais, a expansão da ordem jurídica comunitária, a eleição direita do Parlamento Europeu e a ampliação dos seus poderes, a emergência do princípio da primazia do direito comunitário sobre os direitos domésticos (incluindo as constituições nacionais), a criação da cidadania europeia ao lado da cidadania nacional - passando os cidadãos a ser titulares de direitos fundamentais perante as instituições comunitárias, tal como o são perante as instituições nacionais -, a representação externa da UE em organizações internacionais, a par ou em substituição dos Estados-membros (como sucede por exemplo na Organização Mundial do Comércio), etc.
Para culminar os requisitos tradicionais da "constitucionalidade" só faltava um procedimento de elaboração que, embora sem dispensar o método formal da "conferência intergovernamental", prevista nos tratados, fizesse intervir e participar directamente não somente as instituições comunitárias de origem não governamental (nomeadamente o Parlamento e a Comissão) mas também os próprios cidadãos europeus, seja por intermédio do mesmo PE e dos parlamentos nacionais, seja por meio das organizações sociais a nível europeu, a começar pelos "parceiros sociais". O "método da convenção", que tinha sido ensaiado com êxito na elaboração da Carta de Direitos Fundamentais da UE (2000), foi o instrumento dessa procedimentalização, desgovernamentalização, "europeização" e "cidadanização" da elaboração do tratado constitucional. Formalmente ainda é um tratado intergovernamental; substancialmente já é grandemente um produto da própria UE, que se pretende constituir a si mesma como entidade política própria, perante os Estados-membros e os cidadãos e perante os demais sujeitos de direito internacional na cena mundial.
É certo que é ainda incipiente a criação de uma "sociedade civil europeia" e de uma opinião pública europeia; que a diversidade linguística e cultural não cessa de aumentar a cada alargamento; que os partidos políticos europeus ainda são simples confederações dos partidos nacionais; que as eleições europeias ainda versam predominantemente sobre "agendas" domésticas; que ainda não existe um "patriotismo europeu". Mas por um lado, são inegáveis os progressos da integração em todos os planos, facilitados pela criação do mercado único e da moeda única, pela abolição de fronteiras internas, pelo estabelecimento do espaço europeu de justiça e segurança interna, pela mobilidade interuniversitária, pela generalização do "Euroenglish" como língua veicular, etc. Por outro lado, e porventura mais importante, não pode desconhecer-se a capacidade autoconstituinte da própria ideia de constituição, que lhe permite induzir as suas próprias condições de existência. Não é preciso ser versado em história constitucional para saber que as constituições foram tanto o resultado da criação prévia de comunidades políticas conscientes de si mesmas, como fonte de desenvolvimento e aperfeiçoamento das mesmas.
Em certo sentido, a ideia de constituição é uma "self-fulfilling notion", auto-criadora da "polity" que ela visa organizar. Tanto como "constituídas", as constituições também são constituintes da sua própria comunidade política. Por isso, é bem possível que a Constituição europeia seja o passo que faltava para constituir efectivamente a cidadania europeia e a UE instituídas pelo Tratado da União Europeia há mais de uma década. Roma II é, afinal, o necessário epílogo de Maastricht.
(Público, Terça-feira, 02 de Novembro de 2004)
A cerimónia de assinatura do Tratado que aprova a Constituição Europeia no mesmo local grandioso onde foi assinado o Tratado de Roma de 1957 ajuda a sublinhar as enormes mudanças por que passou a integração europeia em menos de meio século. Os protagonistas da cerimónia de assinatura foram quatro vezes mais (25 em vez de 6), abrangendo a maioria de uma Europa quase plenamente democratizada. Realizado o mercado comum, que era o objectivo principal em 1957, a União Europeia tem hoje múltiplas atribuições, incluindo no domínio das relações externas e da defesa. De uma associação de Estados nasceu depois uma comunidade de cidadãos europeus, com direitos políticos próprios, incluindo o direito de voto em eleições europeias.
O novo "tratado constitucional" traz novas e substanciais mudanças, tanto conceptuais como institucionais. Mas a revolução é menos radical do que por vezes se dá a entender. Poderá mesmo disputar-se se ele ombreia nesse aspecto com o Tratado de Maastricht (1991), que converteu a CEE em CE, criou paralelamente a União Europeia, conferindo-lhe funções na área das relações externas e da justiça e segurança interna e instituiu a cidadania europeia, tornando os cidadãos em protagonistas directos da integração, vinculou as instituições comunitárias aos direitos fundamentais reconhecidos no património constitucional comum e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, entre muitas outras grandes alterações.
As grandes alterações de natureza institucional da UE contidas no novo tratado de Roma (presidente do Conselho Europeu, regra da decisão por dupla maioria qualificada, ministro dos negócios estrangeiros, composição da Comissão, reforço dos poderes do Parlamento, etc.) preservam no fundamental o sistema de governo precedente e a correspondente separação de poderes entre o Conselho de Ministros, o Parlamento e a Comissão e em geral desenvolvem linhas de evolução que vinham de trás, como sucede com o reforço das funções do Parlamento, designadamente as funções legislativas, e com o maior controlo e responsabilidade parlamentar da Comissão, como órgão executivo que é. As novas soluções institucionais promovem e reforçam os mecanismos democráticos dentro da UE, de acordo com os princípios da democracia parlamentar tradicional na Europa (poder legislativo do parlamento, controlo parlamentar do governo, etc.), sem porém eliminar a profunda originalidade "experimental" da arquitectura institucional da UE e sem diminuir, antes pelo contrário, o papel dos governos nacionais através do Conselho de Ministros, que se mantém como órgão de direcção política do UE (no contexto do "dualismo governativo" com a Comissão) e que continua a partilhar competências legislativas com o Parlamento, permitindo evocar o papel do senado nos sistemas bicamarais.
Porventura a maior inovação seja de natureza conceptual e simbólica, com a adopção da noção de Constituição, com tudo o que ela pressupõe e implica. A ideia de constituição europeia foi desde cedo uma "noção combativa" ("Kampfbegriff") dos adeptos de mais profunda integração, em geral, e de soluções federalistas, em particular. Mas as condições para pensar uma constituição europeia ao lado das constituições dos Estados-membros só muito lentamente foram sendo preenchidas. Entre elas contam-se a transformação da CEE numa organização de fins gerais (e não somente económicos), o alargamento dos poderes legislativos, administrativos e judiciais, a expansão da ordem jurídica comunitária, a eleição direita do Parlamento Europeu e a ampliação dos seus poderes, a emergência do princípio da primazia do direito comunitário sobre os direitos domésticos (incluindo as constituições nacionais), a criação da cidadania europeia ao lado da cidadania nacional - passando os cidadãos a ser titulares de direitos fundamentais perante as instituições comunitárias, tal como o são perante as instituições nacionais -, a representação externa da UE em organizações internacionais, a par ou em substituição dos Estados-membros (como sucede por exemplo na Organização Mundial do Comércio), etc.
Para culminar os requisitos tradicionais da "constitucionalidade" só faltava um procedimento de elaboração que, embora sem dispensar o método formal da "conferência intergovernamental", prevista nos tratados, fizesse intervir e participar directamente não somente as instituições comunitárias de origem não governamental (nomeadamente o Parlamento e a Comissão) mas também os próprios cidadãos europeus, seja por intermédio do mesmo PE e dos parlamentos nacionais, seja por meio das organizações sociais a nível europeu, a começar pelos "parceiros sociais". O "método da convenção", que tinha sido ensaiado com êxito na elaboração da Carta de Direitos Fundamentais da UE (2000), foi o instrumento dessa procedimentalização, desgovernamentalização, "europeização" e "cidadanização" da elaboração do tratado constitucional. Formalmente ainda é um tratado intergovernamental; substancialmente já é grandemente um produto da própria UE, que se pretende constituir a si mesma como entidade política própria, perante os Estados-membros e os cidadãos e perante os demais sujeitos de direito internacional na cena mundial.
É certo que é ainda incipiente a criação de uma "sociedade civil europeia" e de uma opinião pública europeia; que a diversidade linguística e cultural não cessa de aumentar a cada alargamento; que os partidos políticos europeus ainda são simples confederações dos partidos nacionais; que as eleições europeias ainda versam predominantemente sobre "agendas" domésticas; que ainda não existe um "patriotismo europeu". Mas por um lado, são inegáveis os progressos da integração em todos os planos, facilitados pela criação do mercado único e da moeda única, pela abolição de fronteiras internas, pelo estabelecimento do espaço europeu de justiça e segurança interna, pela mobilidade interuniversitária, pela generalização do "Euroenglish" como língua veicular, etc. Por outro lado, e porventura mais importante, não pode desconhecer-se a capacidade autoconstituinte da própria ideia de constituição, que lhe permite induzir as suas próprias condições de existência. Não é preciso ser versado em história constitucional para saber que as constituições foram tanto o resultado da criação prévia de comunidades políticas conscientes de si mesmas, como fonte de desenvolvimento e aperfeiçoamento das mesmas.
Em certo sentido, a ideia de constituição é uma "self-fulfilling notion", auto-criadora da "polity" que ela visa organizar. Tanto como "constituídas", as constituições também são constituintes da sua própria comunidade política. Por isso, é bem possível que a Constituição europeia seja o passo que faltava para constituir efectivamente a cidadania europeia e a UE instituídas pelo Tratado da União Europeia há mais de uma década. Roma II é, afinal, o necessário epílogo de Maastricht.
(Público, Terça-feira, 02 de Novembro de 2004)