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18 de novembro de 2004

Motor e enzima 

Por causa da economia, as discussões sobre os orçamentos de Estado transformaram-se em exercícios maçadores e depressivos. Já lá vão os tempos em que a política primava sobre as questões técnicas, quando ainda havia margem para confrontar (por vezes, inverter) prioridades e linhas de acção governativa. Hoje, é de contabilidade criativa que se trata, de como disfarçar défices excessivos à custa de projecções optimistas, desorçamentações, receitas extraordinárias e outros expedientes tolerados por Bruxelas e pelas normas paleolíticas da contabilidade pública. Eis ao que está reduzido o debate orçamental, a um jogo triste de tecnicidades onde as grandes opções de política económica estão totalmente ausentes. Ora, sem a ajuda da economia, continuaremos mergulhados na psicose maníaco-depressiva da despesa pública. Sem um crescimento sustentado do produto nacional, sem uma aposta empenhada nos factores dinâmicos de competitividade, deixaremos às próximas gerações um país pobre e descrente. Temos definitivamente de nos convencer que o tempo joga a nosso desfavor e que só um impulso poderoso nos poupará a uma sorte adversa.

Aparentemente, todos conhecemos a fórmula mágica e os seus cinco ingredientes: educação, qualificação profissional, inovação, tecnologia, empreendedorismo. Se queremos encontrar um rumo de progresso, embora incerto, é este o roteiro. É esse também o desígnio da Estratégia de Lisboa, embora saibamos que o seu objectivo último - fazer da União Europeia a região mais pujante do planeta, até 2010 - dificilmente será alcançado, tal a sua ambição arrasadora. Para um país como Portugal, porém, não parece existir outra escolha. Ou apostamos numa inflexão da matriz de especialização económica e nos factores de competitividade onde podemos alavancar e sustentar vantagens comparativas, ou transformamo-nos num país de veraneantes e aposentados de fala estrangeira. O que nos impede, pois, de agir?

Em primeiro lugar, a insuficiente consciencialização da classe dirigente para a agudeza do problema português. Muitos ainda crêem que a retoma internacional, o resto de fundos comunitários, a senhora de Fátima ou a proverbial capacidade de desenrascanço nacional acabarão por nos conduzir, sem grandes tormentas, a um porto seguro. Outros supõem que a crise é passageira e que se fica a dever a um défice conjuntural de confiança dos cidadãos e dos agentes económicos nas instituições e nos seus líderes. Na verdade, tudo indica estarmos a atravessar uma crise profunda, de características estruturais, cujos efeitos poderão ultrapassar, em gravidade e extensão, as previsões mais pessimistas. O tecido económico português está estagnado, vulnerável e descrente. Clama por mudanças, sem saber muito bem quais, e aponta ao Estado a sua falta de empenho na defesa dos "interesses nacionais", supostamente ameaçados por castelhanos e outros bárbaros globais.

Há, de facto, um défice claro de política económica. Os espíritos ultra-liberais (tal como os libertários, uma corrente ideológica influente nos Estados Unidos) defendem que não compete aos governos imiscuir-se na esfera económica, devendo o papel dos poderes públicos circunscrever-se à regulação de mercados, se e enquanto for necessária. Todavia, a realidade parece desmentir os fundamentos bondosos da doutrina. Não só os Estados Unidos estão longe de a praticarem (sobretudo as administrações republicanas), como os exemplos do Japão, de Singapura, da Suécia, da Coreia ou da Finlândia a contrariam claramente. Nestes casos, de inegável sucesso, as transformações do tecido económico foram conduzidas, monitoradas ou fortemente estimuladas pelo Estado, numa lógica de continuidade imune às flutuações políticas.

Uma vez aceite o pressuposto de que Portugal carece de uma política de desenvolvimento económico, em quais dos cinco ingredientes da fórmula mágica se deveria ela concentrar? Nos dois mais importantes, os relativos aos recursos humanos, que só produzem efeitos no espaço de uma geração? Ou nos três restantes, onde a capacidade de intervenção do Estado é mínima? Dificilmente a resposta poderá ser outra que não a aposta em três frentes simultâneas. Primeiro, na educação e na aprendizagem contínua, onde quase tudo está por fazer na adequação do sistema às necessidades da sociedade e dos mercados; depois, na minimização dos custos de contexto, onde o Estado só depende de si e da visão dos seus dirigentes na prossecução de políticas amigas da capacidade empreendedora e da qualidade de vida dos cidadãos, designadamente através do recurso às novas tecnologias; por fim, na dinamização de plataformas de valorização industrial dos sectores onde podemos ambicionar a uma presença competitiva nos mercados internacionais. Um Estado a dois tempos - motor e enzima.

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 18 de Novembro de 2004

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