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26 de novembro de 2004

Notas finais  

Por Vicente Jorge Silva

1 - Esta é a minha última colaboração regular no "Diário Económico", depois de quatro anos em que acompanhei com alguma intimidade a vida deste jornal.

Estrangeiro ao mundo da economia, nunca me senti aqui intruso ou deslocado, como de início cheguei a recear. Evidentemente, como autor de artigos "generalistas" (que palavra horrorosa, convenhamos!), o público-alvo de um jornal especializado como este não era propriamente o público para que me habituara a escrever ao longo de quatro décadas de intervenção na imprensa. Mas dei-me conta que os meus temas e as minhas preocupações podiam fazer sentido, pela diferença, no âmbito de uma publicação vocacionada para os assuntos económicos. Devo à amizade e ao genuíno espírito democrático dos directores com quem trabalhei -- primeiro com Sérgio Figueiredo, depois com Miguel Coutinho e sempre com Raúl Vaz -- o incomparável conforto de me sentir em casa e desfrutar de todas as condições de liberdade crítica. Mas pelo menos tão importante quanto isso foi o clima afectuoso que aqui pude partilhar com muitos elementos da redacção, do secretariado, da equipa gráfica e até dos serviços administrativos. Para quem valoriza muito especialmente o factor humano na vida dos jornais, como é o meu caso, o "Diário Económico" foi um lugar que me fez feliz e onde tive o prazer de habitar não apenas como colaborador mas como amigo entre amigos. Se hoje me despeço, é porque decidi ensaiar uma nova aventura profissional cujos compromissos são incompatíveis com a minha permanência regular nestas colunas. Saúdo os leitores que tiveram a paciência de aturar semanalmente as minhas divagações e posso dizer, sem qualquer retórica de conveniência, que levo o "Diário Económico" no coração.

2 - Estas notas finais coincidem com um período em que a comunicação social tem estado no centro da actualidade política -- e não decerto por boas razões. A obsessão cega do défice foi substituída pela obsessão cega dos media. À indiferença arrogante perante a popularidade ou a imagem, sucede uma fixação doentia de sinal contrário: agora é a psicose com a imagem e a popularidade que polariza o comportamento do Governo. A viragem é de 180º, o que coloca a questão de saber se a estratégia de continuidade das políticas essenciais entre o Executivo de Durão Barroso e o de Santana Lopes, que o actual primeiro-ministro se comprometeu a seguir, não está a ser radicalmente alterada. Em menos de três anos de coligação PSD/PP assistiu-se a uma vertiginosa mudança de paradigma. É obra!
Podíamos concordar ou não com Manuela Ferreira Leite -- eu, por exemplo, discordava -- mas uma coisa parecia inegável: o eixo da sua acção política centrava-se no interior do Governo e parecia imune aos seus reflexos exteriores. Agora, com Santana Lopes e os artifícios propagandísticos do novo Orçamento de Estado, a acção política deslocou-se toda para o exterior do Governo, para o seu reflexo nos media. Com Durão e Ferreira Leite era como se os media não existissem. Com Santana e Bagão (apesar da relutância cada vez mais visível do ministro das Finanças) é como se apenas os media importassem. A obsessão do défice era autista mas virada exclusivamente "para dentro". A obsessão dos media é autista mas virada exclusivamente "para fora".

Na primeira parte da legislatura, o Governo vivia fechado na sua fortaleza por opção própria e desfrutando os mórbidos prazeres da claustrofobia. Na segunda parte, o Governo sofre, com frios suores claustrofóbicos, o complexo de viver numa fortaleza assediada -- e com ferozes inimigos à espreita em cada jornal ou canal de televisão. Antes, podiam cair o Carmo e a Trindade mas o Governo fazia de conta que estava de pedra e cal. Agora, o Governo vê Carmos e Trindades a cair todos os dias. Não foi por acaso que, subitamente, Santana optou por poupar os seus amigos mais íntimos (Gomes da Silva e Henrique Chaves) à ameaça da catástrofe, retirando-os para os bastidores, e deslocou Morais Sarmento para enfrentar as intempéries parlamentares e mediáticas. É um presente envenenado de Santana para o seu rival político mais perigoso e maquiavélico. Mas constitui também uma inequívoca confissão de fraqueza e perda de controlo, uma espada de dois gumes que pode desferir um golpe fatal à sobrevivência política de Santana e fazer de Sarmento um candidato a "homem providencial".

A verdade é que a frenética obsessão do Governo com o seu espelho mediático fez este partir-se em cacos e provocou mais estragos do que um elefante em loja de porcelanas (papel improvável para quem, como Gomes da Silva, não mostra arcaboiço para tais trabalhos). Daí que Santana tenha simulado uma retirada estratégica: acatou quase com alívio o veto presidencial à central de informação do Governo (ou não tivesse ela sido concebida por Morais Sarmento, essa eterna sombra) e chegou a alinhar com o PS na proposta de "privatizar" o sector media da PT. O problema é que, aqui, não existem candidatos credíveis nem disponíveis para essa operação (uns porque já detêm posições dominantes, como o grupo Balsemão; outros porque já denunciaram publicamente a sua dependência face ao actual poder político, como a Cofina ou a Mediacapital; outros porque manifestamente não estão nisso interessados, como é o caso de Belmiro de Azevedo). A não ser que se improvisasse artificialmente um novo grupo de raiz -- e com que parceiros e financiadores? -- ou se encarasse a venda a um improvável grupo estrangeiro, o que não deixaria de ter delicadas implicações políticas (sobretudo se não fornecesse garantias de independência e pluralismo editorial).

Curiosamente, do que ninguém fala nem quer falar (nem o actual Governo, nem o PS) é do que poderia vir a ser o aproveitamento virtuoso da "golden share" do Estado na PT para promover um sólido esteio da imprensa de referência e que funcionasse, na prática, como um regulador do mercado. A partir do momento em que, erradamente, e por iniciativa do PS, a PT absorveu o grupo Lusomundo, a única forma de contrariar o carácter perverso dessa concentração seria utilizar o seu potencial regulador a favor de um serviço público da comunicação social de qualidade. Bastava apenas que aos governos fosse interditada a tutela política da PT e que esta desse expressão positiva e construtiva à "golden share" do Estado. Estado não é sinónimo de Governo (e muito menos de agente de propaganda do Governo).

3 - É impossível ser original acerca do vaticínio mais apropriado ao futuro do PCP, que agora realiza o congresso da sucessão de Carvalhas: trata-se simplesmente de um partido que deixou de ter futuro e a que apenas resta o passado, ou seja, o crepúsculo e a agonia. Se se abre e transforma (mas transforma em quê?), como pretendem os chamados "renovadores", o PCP está condenado à implosão, como aconteceu com os outros partidos comunistas da mesma matriz. Se mantém ciosamente a velha ortodoxia, está prometido a uma morte certa quando a actual geração de dirigentes desaparecer. Reli agora o prefácio de Maria João Avillez às suas "Conversas com Álvaro Cunhal". É um dos textos mais belos e sentidos da jornalista, testemunho de uma época que já não existe e de que Cunhal era uma das últimas e insubstituíveis personagens. Entre a rejeição e o fascínio, Maria João compõe um retrato que devolve a Cunhal uma autêntica dimensão trágica, essa espessura humana que distingue os grandes dirigentes -- apesar de todo o mundo que nos separa deles -- da pequenez dos seus actuais herdeiros. Mas quando observamos o panorama presente da política portuguesa e evocamos Soares ou Sá Carneiro -- também eles entrevistados e retratados por Maria João noutros livros seus -- não é essa mesma pequenez que parece ter envolvido tudo e todos?

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