19 de novembro de 2004
O espelho imaginário de Santana
por Vicente Jorge Silva
Até ter aterrado no lugar onde hoje se encontra por um acidente do destino, a vocação obsessiva de Pedro Santana Lopes era ser Presidente da República.
Confrontado com uma outra vocação que nunca parece ter perseguido ou sequer sonhado, propõe-se agora ser primeiro-ministro por mais dez anos, ou seja, até 2014. Ora, depois de ter representado uma extraordinária variedade de papeis (na política, no futebol, nos media), esta nova ambição releva quase da ficção científica, género de que Santana se terá tornado um fã secreto. Não que a meta de 2014 seja, em si mesma, um objectivo inatingível: Cavaco esteve dez anos consecutivos no poder e Alberto João Jardim já vai em quase trinta. O que não parece, de todo, verosímil é que alguém tão hedonista como Santana "resista" ao desgaste, às provações, ao desprazer, de uma tão longa e árdua corrida de fundo. Pior ainda: isso depende cada vez menos dele e pode torná-lo prisioneiro virtual da insurreição que já começa a agitar o seu partido contra a conjugalidade com o partido de Paulo Portas.
O primeiro problema de Santana consiste em convencer-nos de que o princípio do hedonismo político não é incompatível com uma dura prova de resistência à adversidade. Mas há ainda o tal problema que o ultrapassa, que ele não tem condições para gerir satisfatoriamente, e constituiu a nota mais relevante do último congresso do PSD: o crescente movimento de rejeição do CDS. Se juntarmos os dois problemas, o horizonte de sobrevivência política de Santana como primeiro-ministro poderá não ultrapassar, no máximo, as eleições de 2006. É a consciência disso que torna o seu desassossego cada vez menos disfarçável. O seu proverbial optimismo, o seu carisma afectuoso, ainda toca o coração das bases, mas ele sente que isso já não basta. Daí as suas intermináveis tiradas de justificações defensivas, onde o que já sobressai é a pose do acossado. Mesmo quando acena com uma plataforma de alianças no centro-direita que substituiria a dependência exclusiva do PSD em relação ao CDS, dá a sensação de que ele é o primeiro a não acreditar nisso.
De facto, não parece crível que os chamados movimentos da "sociedade civil" nascidos recentemente (como o dos jovens empresários do Beato ou do "Portugal positivo") ganhem massa crítica suficiente para alargar o campo político da direita. Ou seja: se a aliança PSD/CDS está condenada a prazo, devido à incompatibilidade genética entre os seus componentes - e aos maus resultados eleitorais que tem sucessivamente confirmado -, também é certo que não existem outras alternativas consistentes para sustentar uma maioria polarizada no PSD. A improvável excepção seria o PSD repetir a saga do cavaquismo, dispensar aliados e conquistar sozinho a maioria absoluta. Mas por mais genial que Santana fosse, as circunstâncias históricas que tornaram possível o consulado cavaquista são, hoje, irrepetíveis.
Estamos noutro ciclo político e as boas graças do eleitorado não bafejam o campo outrora vitorioso. Nascido para vencer e ser amado, Santana não suporta as agruras da derrota ou o fel do desamor. Por ironia do destino, recebeu, porém, um último presente envenenado do seu antigo irmão-inimigo, Durão Barroso, que escapou para Bruxelas ao encontro do seu astral europeu. A Santana cabe transformar o veneno em elixir mágico, decretando o fim dos sacrifícios e da austeridade. Mas não são antídotos eficazes contra o efeito do veneno. São um mercado de ilusões.
Pode dizer-se que uma das tramas centrais do actual drama político passa pela própria personalidade de Santana: sabe-se como ele é inconstante, inconsistente, caprichoso, vulnerável, imprevisível. E com uma autenticidade um tanto "naive", que constitui, aliás, um dos seus traços mais estimáveis. Seja como for, Santana não deixará de ser o que é, como é. Se deixasse de sê-lo tornar-se-ia simplesmente irreconhecível e, por isso, descartável. Acontece que outro traço inconfundível de Santana é a sua tendência para a "denegação": quanto mais deixa trair, involuntariamente, um determinado padrão de comportamento que o torna vulnerável às críticas, mais irresistível é a sua tendência para rejeitá-lo como uma ficção criada por adversários e inimigos. Santana passa uma parte substancial da sua vida a fugir das imagens que lhe são devolvidas pelos espelhos: o espelho dos media e o espelho íntimo que, de vez em quando, se atravessa no seu caminho. Assim, não terá sido por acaso que, no congresso do PSD, Santana se propôs separar a "ficção" (alimentada pela oposição, pelos media e pelos comentadores perversos, como o inevitável mas não citável Marcelo) da "realidade" ou a "verdade" (que seriam encarnadas por ele e significariam a obra realizada por si e o seu Governo).
Santana gostaria de ter um espelho que não lhe devolvesse imagens negativas e deprimentes. Daí a sua relação doentia com os media, que o levou, por exemplo, a dedicar uma parte desproporcionada das suas intervenções no congresso de Barcelos a responder às críticas, conspirações e traições que a todo o momento o espreitam na sombra maléfica das televisões e dos jornais. Nesse espelho imaginário que inventou para si ("espelho meu, haverá alguém mais belo do que eu"?), Santana projecta imagens que lhe devolveriam um reflexo enebriante de si mesmo (a "realidade", a "verdade"), rejeitando tudo quanto possa perturbar essa evidência (e que seria, por isso, da ordem da "ficção"). Ora, Santana só funciona verdadeiramente (e brilhantemente, sublinhe-se) como actor de uma ficção centrada nele próprio.
O seu talento de tribuno é insuperável (compare-se a sua espantosa fluência no improviso com o ar postiço e robotizado de Sócrates), mas é um talento que gira no vazio musical das palavras, das palavras reduzidas ao seu estrito poder galvanizador, das palavras como puro factor ficcional (para efeitos de sugestão própria e, suplementarmente, para as audiências que se propõe amestrar). Santana pode dizer uma coisa e o contrário que, aos seus olhos, isso não tem, rigorosamente, a menor importância. Ele não parece ter consciência das suas contradições ou foge delas como o diabo da cruz. É por isso que lida tão mal com as interpretações das suas palavras que não se enquadram naquilo que gostaria de ver publicado, ou melhor, "espelhado" (o espelho, sempre ele). Daí também, porventura, a sua reacção aos títulos da imprensa sobre o "desafio" que lançou a Cavaco para concorrer a Belém (ah! o tempo que ele perde a discutir com os media, esse eterno espelho...).
Transportado pela embriaguez do verbo improvisado (já viram como é um actor perfeito nesse género e como soa a falso sempre que lê um texto?), Santana apenas concebe uma "realidade" e uma "verdade" que sejam o reflexo da contemplação narcísica de si mesmo. O mundo começa e acaba nele. O resto é ficção. Só que, de facto, a ficção está no espelho imaginário onde ele se revê.
(Diário Económico, 19 de Novembro de 2004)
Até ter aterrado no lugar onde hoje se encontra por um acidente do destino, a vocação obsessiva de Pedro Santana Lopes era ser Presidente da República.
Confrontado com uma outra vocação que nunca parece ter perseguido ou sequer sonhado, propõe-se agora ser primeiro-ministro por mais dez anos, ou seja, até 2014. Ora, depois de ter representado uma extraordinária variedade de papeis (na política, no futebol, nos media), esta nova ambição releva quase da ficção científica, género de que Santana se terá tornado um fã secreto. Não que a meta de 2014 seja, em si mesma, um objectivo inatingível: Cavaco esteve dez anos consecutivos no poder e Alberto João Jardim já vai em quase trinta. O que não parece, de todo, verosímil é que alguém tão hedonista como Santana "resista" ao desgaste, às provações, ao desprazer, de uma tão longa e árdua corrida de fundo. Pior ainda: isso depende cada vez menos dele e pode torná-lo prisioneiro virtual da insurreição que já começa a agitar o seu partido contra a conjugalidade com o partido de Paulo Portas.
O primeiro problema de Santana consiste em convencer-nos de que o princípio do hedonismo político não é incompatível com uma dura prova de resistência à adversidade. Mas há ainda o tal problema que o ultrapassa, que ele não tem condições para gerir satisfatoriamente, e constituiu a nota mais relevante do último congresso do PSD: o crescente movimento de rejeição do CDS. Se juntarmos os dois problemas, o horizonte de sobrevivência política de Santana como primeiro-ministro poderá não ultrapassar, no máximo, as eleições de 2006. É a consciência disso que torna o seu desassossego cada vez menos disfarçável. O seu proverbial optimismo, o seu carisma afectuoso, ainda toca o coração das bases, mas ele sente que isso já não basta. Daí as suas intermináveis tiradas de justificações defensivas, onde o que já sobressai é a pose do acossado. Mesmo quando acena com uma plataforma de alianças no centro-direita que substituiria a dependência exclusiva do PSD em relação ao CDS, dá a sensação de que ele é o primeiro a não acreditar nisso.
De facto, não parece crível que os chamados movimentos da "sociedade civil" nascidos recentemente (como o dos jovens empresários do Beato ou do "Portugal positivo") ganhem massa crítica suficiente para alargar o campo político da direita. Ou seja: se a aliança PSD/CDS está condenada a prazo, devido à incompatibilidade genética entre os seus componentes - e aos maus resultados eleitorais que tem sucessivamente confirmado -, também é certo que não existem outras alternativas consistentes para sustentar uma maioria polarizada no PSD. A improvável excepção seria o PSD repetir a saga do cavaquismo, dispensar aliados e conquistar sozinho a maioria absoluta. Mas por mais genial que Santana fosse, as circunstâncias históricas que tornaram possível o consulado cavaquista são, hoje, irrepetíveis.
Estamos noutro ciclo político e as boas graças do eleitorado não bafejam o campo outrora vitorioso. Nascido para vencer e ser amado, Santana não suporta as agruras da derrota ou o fel do desamor. Por ironia do destino, recebeu, porém, um último presente envenenado do seu antigo irmão-inimigo, Durão Barroso, que escapou para Bruxelas ao encontro do seu astral europeu. A Santana cabe transformar o veneno em elixir mágico, decretando o fim dos sacrifícios e da austeridade. Mas não são antídotos eficazes contra o efeito do veneno. São um mercado de ilusões.
Pode dizer-se que uma das tramas centrais do actual drama político passa pela própria personalidade de Santana: sabe-se como ele é inconstante, inconsistente, caprichoso, vulnerável, imprevisível. E com uma autenticidade um tanto "naive", que constitui, aliás, um dos seus traços mais estimáveis. Seja como for, Santana não deixará de ser o que é, como é. Se deixasse de sê-lo tornar-se-ia simplesmente irreconhecível e, por isso, descartável. Acontece que outro traço inconfundível de Santana é a sua tendência para a "denegação": quanto mais deixa trair, involuntariamente, um determinado padrão de comportamento que o torna vulnerável às críticas, mais irresistível é a sua tendência para rejeitá-lo como uma ficção criada por adversários e inimigos. Santana passa uma parte substancial da sua vida a fugir das imagens que lhe são devolvidas pelos espelhos: o espelho dos media e o espelho íntimo que, de vez em quando, se atravessa no seu caminho. Assim, não terá sido por acaso que, no congresso do PSD, Santana se propôs separar a "ficção" (alimentada pela oposição, pelos media e pelos comentadores perversos, como o inevitável mas não citável Marcelo) da "realidade" ou a "verdade" (que seriam encarnadas por ele e significariam a obra realizada por si e o seu Governo).
Santana gostaria de ter um espelho que não lhe devolvesse imagens negativas e deprimentes. Daí a sua relação doentia com os media, que o levou, por exemplo, a dedicar uma parte desproporcionada das suas intervenções no congresso de Barcelos a responder às críticas, conspirações e traições que a todo o momento o espreitam na sombra maléfica das televisões e dos jornais. Nesse espelho imaginário que inventou para si ("espelho meu, haverá alguém mais belo do que eu"?), Santana projecta imagens que lhe devolveriam um reflexo enebriante de si mesmo (a "realidade", a "verdade"), rejeitando tudo quanto possa perturbar essa evidência (e que seria, por isso, da ordem da "ficção"). Ora, Santana só funciona verdadeiramente (e brilhantemente, sublinhe-se) como actor de uma ficção centrada nele próprio.
O seu talento de tribuno é insuperável (compare-se a sua espantosa fluência no improviso com o ar postiço e robotizado de Sócrates), mas é um talento que gira no vazio musical das palavras, das palavras reduzidas ao seu estrito poder galvanizador, das palavras como puro factor ficcional (para efeitos de sugestão própria e, suplementarmente, para as audiências que se propõe amestrar). Santana pode dizer uma coisa e o contrário que, aos seus olhos, isso não tem, rigorosamente, a menor importância. Ele não parece ter consciência das suas contradições ou foge delas como o diabo da cruz. É por isso que lida tão mal com as interpretações das suas palavras que não se enquadram naquilo que gostaria de ver publicado, ou melhor, "espelhado" (o espelho, sempre ele). Daí também, porventura, a sua reacção aos títulos da imprensa sobre o "desafio" que lançou a Cavaco para concorrer a Belém (ah! o tempo que ele perde a discutir com os media, esse eterno espelho...).
Transportado pela embriaguez do verbo improvisado (já viram como é um actor perfeito nesse género e como soa a falso sempre que lê um texto?), Santana apenas concebe uma "realidade" e uma "verdade" que sejam o reflexo da contemplação narcísica de si mesmo. O mundo começa e acaba nele. O resto é ficção. Só que, de facto, a ficção está no espelho imaginário onde ele se revê.
(Diário Económico, 19 de Novembro de 2004)