10 de novembro de 2004
Uma Constituição para Os Cidadãos Europeus
Por Vital Moreira
Pode haver muitas razões para discordar do Tratado Constitucional da UE, recentemente assinado em Roma e agora pendente de aprovação e ratificação pelos Estados-membros. Os nacionalistas de direita e de esquerda, bem como os "soberanistas" em geral, não terão dificuldades em votar convictamente contra o referendo que vier a ter lugar sobre o novo tratado, pela simples razão de que este se assume expressamente como uma Constituição sobreposta às constituições nacionais.
Mas já surpreende que uma pessoa bem informada como António Barreto tenha mencionado na sua crónica do PÚBLICO de domingo passado, entre as razões para a sua oposição, o facto de que "esta Carta nada adianta para os cidadãos, não aumenta os seus poderes, não melhora os seus direitos, não reforça as suas capacidades, não alarga as suas responsabilidades". Não tem razão. Se existe uma marca inovadora da Constituição europeia - usemos a expressão por comodidade -, é justamente a ampliação e o reforço dos direitos dos cidadãos europeus. A incorporação da Carta de Direitos Fundamentais (CDF), aprovada em Nice há quatro anos, mas que não tinha força jurídica, por ter sido aprovada somente como declaração política, constitui aliás um dos traços genuinamente "constitucionais" do novo tratado. A segunda parte da Constituição é toda ela preenchida com a Carta, que passará a ser o "bill of rights" da UE.
É certo que desde o Tratado de Maastricht já estavam reconhecidos, além dos direitos de cidadania europeia, também os direitos fundamentais decorrentes das tradições constitucionais comuns aos Estados-membros e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), de 1950. Mas estes direitos só valiam a título de "princípios gerais" da ordem comunitária, o que deixava ao Tribunal de Justiça uma ampla liberdade de conformação e de decisão. Foi isso que justificou a aprovação da CDF há quatro anos, de modo a conferir certeza e consistência ao "bill of rights" da UE, substituindo a decisão pretoriana do Tribunal pela vontade soberana dos Estados-membros.
A Carta, agora naturalmente incorporada na Constituição, tem uma dupla função. Por um lado, estabelece em benefício dos cidadãos europeus um vasto conjunto de direitos e garantias contra as instituições comunitárias, que as vinculam no exercício das suas funções legislativas e administrativas, desde o direito à protecção de dados pessoais até ao direito a uma boa administração, passando pelas liberdades económicas que estão na base da ordem económica e social da UE (liberdade de circulação, liberdade de profissão, liberdade de empresa, direitos dos trabalhadores, etc.). Por outro lado, a Carta serve de padrão de aferição do respeito por parte dos Estados-membros e dos candidatos à adesão da sua obrigação de respeito pelos direitos fundamentais, que está inscrita expressamente desde Maastricht no Tratado da UE.
Tal como as cartas de direitos fundamentais dos Estados-membros não vinculam a UE, também a CDF da UE não obriga directamente os Estados-membros, salvo quando estes são chamados a implementar o direito comunitário (transposição nacional de leis-quadro da UE, aplicação administrativa da legislação comunitária), no que ficam directamente sujeitos à Constituição europeia. Mas os cidadãos europeus, ou seja, todos os cidadãos nacionais de Estados-membros da UE, beneficiam directamente desses direitos fundamentais perante as instituições comunitárias (e perante as autoridades nacionais quando aplicam direito comunitário), podendo queixar-se ao provedor de Justiça europeu e podendo naturalmente impugnar judicialmente a "constitucionalidade" de qualquer lei ou acto administrativo comunitário que viole os direitos agora incluídos na Constituição.
A CDF é no fundamental um apanhado de várias convenções internacionais em vigor, com a referida CEDH de 1950 à cabeça, mais a Carta Social Europeia (1961), e ainda outras convenções internacionais de direitos humanos. Assim, por exemplo, provém da Convenção dos Direitos da Crianças, a que Portugal se encontra vinculado, o artigo 64º da Constituição europeia, segundo o qual "as crianças têm direito à protecção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar, [podendo] exprimir livremente a sua opinião, que será tomada em consideração nos assuntos que lhe digam respeito, em função da sua idade e maturidade", preceito este que escandalizou António Barreto, que remata com ele o seu requisitório contra a Constituição europeia. Uma elementar informação sobre o assunto - de resto de fácil acesso, visto que as anotações oficiais à CDF indicam as fontes de cada preceito - teria poupado o desnecessário chiste.
Mas não é somente pela incorporação da CDF que a Constituição europeia cuida de reforçar a posição dos cidadãos europeus no seio da UE. Há também a previsão da adesão da própria União à CEDH (o que até agora tinha sido rejeitado) e aos respectivos mecanismos de protecção, nomeadamente o recurso para o Tribunal Europeu de Direitos do Homem (Estrasburgo). Desse modo, os cidadãos europeus passam a ter uma última instância de defesa contra qualquer violação dos direitos previstos na convenção pelas instâncias comunitárias, nos mesmos termos em que já o podem fazer em relação às violações cometidas pelos seus Estados. Trata-se de um notável reforço de garantia dos direitos dos cidadãos.
Além disso, no quadro do aumento da transparência da governação europeia e de melhoria dos mecanismos de democracia participativa, há ainda um novo direito de participação política, para além dos direitos eleitorais e do direito de petição que já vêm do Tratado de Maastricht. Agora é reconhecido também um direito de iniciativa popular, pelo qual um milhão de cidadãos podem suscitar perante a Comissão Europeia (que mantém o exclusivo da iniciativa legislativa na UE) a necessidade de um procedimento legislativo (ou outro procedimento decisório). Não pode desvalorizar-se o valor simbólico e político deste novo instrumento de intervenção dos cidadãos e das organizações sociais.
Em suma, se há uma coisa de que a Constituição não pode ser acusada é de ignorar ou marginalizar os cidadãos europeus.
(Público, Terça-feira, 09 de Novembro de 2004 )
Pode haver muitas razões para discordar do Tratado Constitucional da UE, recentemente assinado em Roma e agora pendente de aprovação e ratificação pelos Estados-membros. Os nacionalistas de direita e de esquerda, bem como os "soberanistas" em geral, não terão dificuldades em votar convictamente contra o referendo que vier a ter lugar sobre o novo tratado, pela simples razão de que este se assume expressamente como uma Constituição sobreposta às constituições nacionais.
Mas já surpreende que uma pessoa bem informada como António Barreto tenha mencionado na sua crónica do PÚBLICO de domingo passado, entre as razões para a sua oposição, o facto de que "esta Carta nada adianta para os cidadãos, não aumenta os seus poderes, não melhora os seus direitos, não reforça as suas capacidades, não alarga as suas responsabilidades". Não tem razão. Se existe uma marca inovadora da Constituição europeia - usemos a expressão por comodidade -, é justamente a ampliação e o reforço dos direitos dos cidadãos europeus. A incorporação da Carta de Direitos Fundamentais (CDF), aprovada em Nice há quatro anos, mas que não tinha força jurídica, por ter sido aprovada somente como declaração política, constitui aliás um dos traços genuinamente "constitucionais" do novo tratado. A segunda parte da Constituição é toda ela preenchida com a Carta, que passará a ser o "bill of rights" da UE.
É certo que desde o Tratado de Maastricht já estavam reconhecidos, além dos direitos de cidadania europeia, também os direitos fundamentais decorrentes das tradições constitucionais comuns aos Estados-membros e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), de 1950. Mas estes direitos só valiam a título de "princípios gerais" da ordem comunitária, o que deixava ao Tribunal de Justiça uma ampla liberdade de conformação e de decisão. Foi isso que justificou a aprovação da CDF há quatro anos, de modo a conferir certeza e consistência ao "bill of rights" da UE, substituindo a decisão pretoriana do Tribunal pela vontade soberana dos Estados-membros.
A Carta, agora naturalmente incorporada na Constituição, tem uma dupla função. Por um lado, estabelece em benefício dos cidadãos europeus um vasto conjunto de direitos e garantias contra as instituições comunitárias, que as vinculam no exercício das suas funções legislativas e administrativas, desde o direito à protecção de dados pessoais até ao direito a uma boa administração, passando pelas liberdades económicas que estão na base da ordem económica e social da UE (liberdade de circulação, liberdade de profissão, liberdade de empresa, direitos dos trabalhadores, etc.). Por outro lado, a Carta serve de padrão de aferição do respeito por parte dos Estados-membros e dos candidatos à adesão da sua obrigação de respeito pelos direitos fundamentais, que está inscrita expressamente desde Maastricht no Tratado da UE.
Tal como as cartas de direitos fundamentais dos Estados-membros não vinculam a UE, também a CDF da UE não obriga directamente os Estados-membros, salvo quando estes são chamados a implementar o direito comunitário (transposição nacional de leis-quadro da UE, aplicação administrativa da legislação comunitária), no que ficam directamente sujeitos à Constituição europeia. Mas os cidadãos europeus, ou seja, todos os cidadãos nacionais de Estados-membros da UE, beneficiam directamente desses direitos fundamentais perante as instituições comunitárias (e perante as autoridades nacionais quando aplicam direito comunitário), podendo queixar-se ao provedor de Justiça europeu e podendo naturalmente impugnar judicialmente a "constitucionalidade" de qualquer lei ou acto administrativo comunitário que viole os direitos agora incluídos na Constituição.
A CDF é no fundamental um apanhado de várias convenções internacionais em vigor, com a referida CEDH de 1950 à cabeça, mais a Carta Social Europeia (1961), e ainda outras convenções internacionais de direitos humanos. Assim, por exemplo, provém da Convenção dos Direitos da Crianças, a que Portugal se encontra vinculado, o artigo 64º da Constituição europeia, segundo o qual "as crianças têm direito à protecção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar, [podendo] exprimir livremente a sua opinião, que será tomada em consideração nos assuntos que lhe digam respeito, em função da sua idade e maturidade", preceito este que escandalizou António Barreto, que remata com ele o seu requisitório contra a Constituição europeia. Uma elementar informação sobre o assunto - de resto de fácil acesso, visto que as anotações oficiais à CDF indicam as fontes de cada preceito - teria poupado o desnecessário chiste.
Mas não é somente pela incorporação da CDF que a Constituição europeia cuida de reforçar a posição dos cidadãos europeus no seio da UE. Há também a previsão da adesão da própria União à CEDH (o que até agora tinha sido rejeitado) e aos respectivos mecanismos de protecção, nomeadamente o recurso para o Tribunal Europeu de Direitos do Homem (Estrasburgo). Desse modo, os cidadãos europeus passam a ter uma última instância de defesa contra qualquer violação dos direitos previstos na convenção pelas instâncias comunitárias, nos mesmos termos em que já o podem fazer em relação às violações cometidas pelos seus Estados. Trata-se de um notável reforço de garantia dos direitos dos cidadãos.
Além disso, no quadro do aumento da transparência da governação europeia e de melhoria dos mecanismos de democracia participativa, há ainda um novo direito de participação política, para além dos direitos eleitorais e do direito de petição que já vêm do Tratado de Maastricht. Agora é reconhecido também um direito de iniciativa popular, pelo qual um milhão de cidadãos podem suscitar perante a Comissão Europeia (que mantém o exclusivo da iniciativa legislativa na UE) a necessidade de um procedimento legislativo (ou outro procedimento decisório). Não pode desvalorizar-se o valor simbólico e político deste novo instrumento de intervenção dos cidadãos e das organizações sociais.
Em suma, se há uma coisa de que a Constituição não pode ser acusada é de ignorar ou marginalizar os cidadãos europeus.
(Público, Terça-feira, 09 de Novembro de 2004 )