28 de dezembro de 2004
Ainda Os Poderes Presidenciais
Por Vital Moreira
Fora da imprensa económica não suscitou grande discussão a defesa que o Presidente da República fez há pouco tempo da nomeação presidencial dos membros das "entidades reguladoras independentes", como são, por exemplo, a "velha" Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) ou a Entidade Reguladora da Saúde (ERS). E, no entanto, o tema merece alguma atenção, pelas profundas implicações que ele teria sobre a definição do papel constitucional do Presidente da República.
Entre nós o Presidente não é chefe do Governo, como nos regimes presidencialistas, nem sequer participa no exercício dos poderes executivos, como nos genuínos sistemas "semipresidencialistas", de tipo francês. Por isso, fora a nomeação do governo propriamente dito, o Presidente também não dispõe de poderes de nomeação de outros titulares de cargos executivos. Ressalvam-se as chefias militares, que têm um regime próprio, sendo nomeadas pelo Presidente sob proposta do Governo. Mas trata-se de um caso especial, visto que a Constituição confere ao Presidente da República a chefia suprema das forças armadas. Por isso, é compreensível essa relativa "desgovernamentalização" das chefias militares, sendo a respectiva escolha compartilhada pelo Governo, a quem cabe a proposta, e pelo Presidente, a quem compete a nomeação.
Fora desse caso especial, o Presidente da República só tem competência para nomear titulares de cargos estranhos à função governativa. Entre eles contam-se o presidente do Tribunal de Contas, dois membros do Conselho Superior da Magistratura e o procurador-geral da República, todos eles na área do "poder judicial"; cinco membros do Conselho de Estado, que é o conselho consultivo do próprio Presidente; os representantes da República nas regiões autónomas, que nela representam a soberania estadual, de que o Presidente é o principal garante; e os embaixadores de Portugal no estrangeiro, que são os representantes externos do país.
Como é fácil ver, a eventual nomeação das autoridades reguladoras não se enquadra em nenhuma destas categorias de titulares de cargos públicos de nomeação presidencial. Trata-se, como se sabe, de autoridades administrativas, que exercem poderes tipicamente administrativos, como funções regulamentares, de supervisão e sancionatórias. A sua nomeação pelo Presidente da República faria envolver este na função administrativa, o que constituiria uma alteração substancial na nossa arquitectura constitucional.
É certo que o fenómeno das autoridades reguladoras independentes constitui em sim mesmo uma expressão de relativa desgovernamentalização da função regulatória. O que está em causa é justamente afastar o Governo dessa tarefa, estabelecendo em favor dessas autoridades uma esfera de grande autonomia, quer no respeitante aos órgãos eles mesmos (mandato longo, irremovibilidade), quer no que tem a ver com o exercício dos seus poderes, que não estão sujeitos a superintendência governamental nem a controlo de mérito no exercício dos seus poderes de livre decisão. Mas, como mostra o direito comparado, a independência das autoridades reguladoras não tem de passar pela nomeação presidencial, que não ocorre em geral nem sequer nos regimes semipresidencialistas de tipo francês.
Seguramente que o regime vigente entre nós está longe de ser o melhor para assegurar a independência das autoridades reguladoras, visto que continua a assentar na livre nomeação governamental, embora sem possibilidade de destituição. Já tive ocasião de defender várias vezes a necessidade de condicionar a liberdade de nomeação governamental, desde logo pela intervenção da Assembleia da República no procedimento de escolha. O escrutínio parlamentar dos candidatos indigitados, a efectuar pela comissão parlamentar competente, poderia ser um instrumento muito importante nesse procedimento, adaptando um mecanismo típico das nomeações presidenciais em regimes presidencialistas, mas que em Portugal já tem precedentes, por exemplo, na nomeação da chefia do serviço nacional de informações. O que não se afigura de modo nenhum pertinente é envolver o Presidente da República na designação de entidades tipicamente administrativas, mesmo que sob proposta Governo, pois a responsabilidade última caberia sempre àquele. A inesperada sugestão de Jorge Sampaio não deve por isso ter acolhimento.
Isto não quer dizer que não possa ser considerada uma ampliação dos poderes de nomeação presidencial, sem suscitar problemas de consistência do sistema constitucional. Pode mesmo dizer-se que existe um défice do poder de nomeação presidencial, tendo em conta a sua eleição directa e a sua legitimidade reforçada, bem como o seu papel de "quarto poder", de vocação essencialmente reguladora e supervisora do funcionamento do sistema.
Não precisamos ser originais neste ponto, bastando passar em revista cargos em relação aos quais foi sugerida a nomeação presidencial num momento ou noutro da nossa história constitucional. Entre eles são de incluir um certo número de juízes do Tribunal Constitucional (em 1982, quando da criação deste tribunal, foi proposta a nomeação presidencial de um terço dos juízes), os presidentes dos tribunais superiores (para além do Tribunal de Contas, que já é de escolha presidencial), os presidentes dos conselhos superiores da área judicial (incluindo o do Ministério Público) e o governador do Banco de Portugal. A estes casos deveriam ser acrescentados os cargos na União Europeia, que actualmente são de nomeação ou de indicação governamental, a começar pelo membro nacional na Comissão Europeia e a terminar nos juízes dos tribunais comunitários e no respectivo advogado-geral. Nuns casos, estas nomeações poderiam ser de livre escolha presidencial, noutros casos, deveriam ser feitas sob proposta de entidades exteriores, seja o Governo (por exemplo, no caso do governador do Banco de Portugal e do comissário europeu), seja outras entidades (por exemplo, os órgãos judiciários).
Nenhum destes casos envolveria qualquer invasão presidencial das funções governamentais propriamente ditas. Mesmo no caso do Banco de Portugal a designação presidencial pode justificar-se, dado que ele não é somente uma entidade reguladora do sistema bancário (há muitos países onde o banco central não tem sequer funções reguladoras), mas antes uma entidade multifuncional, que além do mais constitui parte do sistema europeu de bancos centrais (SEBC), sendo o próprio governador membro do órgão de governo do Banco Central Europeu, que conduz a política monetária da zona euro. Não é por acaso que a independência dos bancos centrais e do próprio governador é assegurada directamente pelo direito comunitário. A sua nomeação pelo Presidente da República seria tudo menos injustificada.
É evidente que nada disto poderia ser feito sem revisão constitucional, dado que é a Constituição que define os poderes do Presidente da República, sem deixar margem para o seu alargamento por via de lei. Essa exigência torna altamente improvável a sua aprovação, tanto mais que propostas nesse sentido já foram "chumbadas" em revisões constitucionais passadas. Se essas hipóteses foram aqui trazidas à lembrança foi somente para provar duas coisas, a saber: primeiro, que não devem merecer apoio as propostas de ingerência do Presidente da República na função governamental em geral e nas funções administrativas em especial; segundo, que não é impossível pensar numa ampliação do papel presidencial, sem com isso provocar nenhuma mudança de natureza do nosso sistema de governo. Se é de preservar uma estrita separação entre a função presidencial e a esfera própria do Governo, nada impediria um mais forte envolvimento presidencial nas áreas em que, pelo contrário, se justifica uma mais estrita desgovernamentalização, como sucede particularmente na esfera judicial e na esfera comunitária.
(Público, Terça-feira, 28 de Dezembro de 2004)
Fora da imprensa económica não suscitou grande discussão a defesa que o Presidente da República fez há pouco tempo da nomeação presidencial dos membros das "entidades reguladoras independentes", como são, por exemplo, a "velha" Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) ou a Entidade Reguladora da Saúde (ERS). E, no entanto, o tema merece alguma atenção, pelas profundas implicações que ele teria sobre a definição do papel constitucional do Presidente da República.
Entre nós o Presidente não é chefe do Governo, como nos regimes presidencialistas, nem sequer participa no exercício dos poderes executivos, como nos genuínos sistemas "semipresidencialistas", de tipo francês. Por isso, fora a nomeação do governo propriamente dito, o Presidente também não dispõe de poderes de nomeação de outros titulares de cargos executivos. Ressalvam-se as chefias militares, que têm um regime próprio, sendo nomeadas pelo Presidente sob proposta do Governo. Mas trata-se de um caso especial, visto que a Constituição confere ao Presidente da República a chefia suprema das forças armadas. Por isso, é compreensível essa relativa "desgovernamentalização" das chefias militares, sendo a respectiva escolha compartilhada pelo Governo, a quem cabe a proposta, e pelo Presidente, a quem compete a nomeação.
Fora desse caso especial, o Presidente da República só tem competência para nomear titulares de cargos estranhos à função governativa. Entre eles contam-se o presidente do Tribunal de Contas, dois membros do Conselho Superior da Magistratura e o procurador-geral da República, todos eles na área do "poder judicial"; cinco membros do Conselho de Estado, que é o conselho consultivo do próprio Presidente; os representantes da República nas regiões autónomas, que nela representam a soberania estadual, de que o Presidente é o principal garante; e os embaixadores de Portugal no estrangeiro, que são os representantes externos do país.
Como é fácil ver, a eventual nomeação das autoridades reguladoras não se enquadra em nenhuma destas categorias de titulares de cargos públicos de nomeação presidencial. Trata-se, como se sabe, de autoridades administrativas, que exercem poderes tipicamente administrativos, como funções regulamentares, de supervisão e sancionatórias. A sua nomeação pelo Presidente da República faria envolver este na função administrativa, o que constituiria uma alteração substancial na nossa arquitectura constitucional.
É certo que o fenómeno das autoridades reguladoras independentes constitui em sim mesmo uma expressão de relativa desgovernamentalização da função regulatória. O que está em causa é justamente afastar o Governo dessa tarefa, estabelecendo em favor dessas autoridades uma esfera de grande autonomia, quer no respeitante aos órgãos eles mesmos (mandato longo, irremovibilidade), quer no que tem a ver com o exercício dos seus poderes, que não estão sujeitos a superintendência governamental nem a controlo de mérito no exercício dos seus poderes de livre decisão. Mas, como mostra o direito comparado, a independência das autoridades reguladoras não tem de passar pela nomeação presidencial, que não ocorre em geral nem sequer nos regimes semipresidencialistas de tipo francês.
Seguramente que o regime vigente entre nós está longe de ser o melhor para assegurar a independência das autoridades reguladoras, visto que continua a assentar na livre nomeação governamental, embora sem possibilidade de destituição. Já tive ocasião de defender várias vezes a necessidade de condicionar a liberdade de nomeação governamental, desde logo pela intervenção da Assembleia da República no procedimento de escolha. O escrutínio parlamentar dos candidatos indigitados, a efectuar pela comissão parlamentar competente, poderia ser um instrumento muito importante nesse procedimento, adaptando um mecanismo típico das nomeações presidenciais em regimes presidencialistas, mas que em Portugal já tem precedentes, por exemplo, na nomeação da chefia do serviço nacional de informações. O que não se afigura de modo nenhum pertinente é envolver o Presidente da República na designação de entidades tipicamente administrativas, mesmo que sob proposta Governo, pois a responsabilidade última caberia sempre àquele. A inesperada sugestão de Jorge Sampaio não deve por isso ter acolhimento.
Isto não quer dizer que não possa ser considerada uma ampliação dos poderes de nomeação presidencial, sem suscitar problemas de consistência do sistema constitucional. Pode mesmo dizer-se que existe um défice do poder de nomeação presidencial, tendo em conta a sua eleição directa e a sua legitimidade reforçada, bem como o seu papel de "quarto poder", de vocação essencialmente reguladora e supervisora do funcionamento do sistema.
Não precisamos ser originais neste ponto, bastando passar em revista cargos em relação aos quais foi sugerida a nomeação presidencial num momento ou noutro da nossa história constitucional. Entre eles são de incluir um certo número de juízes do Tribunal Constitucional (em 1982, quando da criação deste tribunal, foi proposta a nomeação presidencial de um terço dos juízes), os presidentes dos tribunais superiores (para além do Tribunal de Contas, que já é de escolha presidencial), os presidentes dos conselhos superiores da área judicial (incluindo o do Ministério Público) e o governador do Banco de Portugal. A estes casos deveriam ser acrescentados os cargos na União Europeia, que actualmente são de nomeação ou de indicação governamental, a começar pelo membro nacional na Comissão Europeia e a terminar nos juízes dos tribunais comunitários e no respectivo advogado-geral. Nuns casos, estas nomeações poderiam ser de livre escolha presidencial, noutros casos, deveriam ser feitas sob proposta de entidades exteriores, seja o Governo (por exemplo, no caso do governador do Banco de Portugal e do comissário europeu), seja outras entidades (por exemplo, os órgãos judiciários).
Nenhum destes casos envolveria qualquer invasão presidencial das funções governamentais propriamente ditas. Mesmo no caso do Banco de Portugal a designação presidencial pode justificar-se, dado que ele não é somente uma entidade reguladora do sistema bancário (há muitos países onde o banco central não tem sequer funções reguladoras), mas antes uma entidade multifuncional, que além do mais constitui parte do sistema europeu de bancos centrais (SEBC), sendo o próprio governador membro do órgão de governo do Banco Central Europeu, que conduz a política monetária da zona euro. Não é por acaso que a independência dos bancos centrais e do próprio governador é assegurada directamente pelo direito comunitário. A sua nomeação pelo Presidente da República seria tudo menos injustificada.
É evidente que nada disto poderia ser feito sem revisão constitucional, dado que é a Constituição que define os poderes do Presidente da República, sem deixar margem para o seu alargamento por via de lei. Essa exigência torna altamente improvável a sua aprovação, tanto mais que propostas nesse sentido já foram "chumbadas" em revisões constitucionais passadas. Se essas hipóteses foram aqui trazidas à lembrança foi somente para provar duas coisas, a saber: primeiro, que não devem merecer apoio as propostas de ingerência do Presidente da República na função governamental em geral e nas funções administrativas em especial; segundo, que não é impossível pensar numa ampliação do papel presidencial, sem com isso provocar nenhuma mudança de natureza do nosso sistema de governo. Se é de preservar uma estrita separação entre a função presidencial e a esfera própria do Governo, nada impediria um mais forte envolvimento presidencial nas áreas em que, pelo contrário, se justifica uma mais estrita desgovernamentalização, como sucede particularmente na esfera judicial e na esfera comunitária.
(Público, Terça-feira, 28 de Dezembro de 2004)