17 de dezembro de 2004
Decadentes mas felizes
1 Na economia, tal como na política, as aparências não iludem. Por mais que queiramos ser positivos, por muito que mantenhamos a fé neste rectângulo poético, não há por onde escamotear a realidade. A economia portuguesa está à beira de uma grave crise estrutural. Fustigado pela concorrência internacional, falho de recursos humanos, desmotivado e mal dirigido, o tecido económico nacional dá sinais evidentes de exaustão.
Com a fileira marítima destroçada, a fileira da terra malbaratada, a indústria transformadora exangue, a construção civil deprimida e a inovação banida do léxico empresarial, não há crença regeneradora que resista. Ou demonstramos ser capazes de um extraordinário assomo de clarividência e ousadia, coisa rara na história lusitana, ou pouco mais nos resta do que um país de sol e serviços.
Alguns argumentam que esse nem seria um mau destino, se tivéssemos juízo na oferta turística e revelássemos, nos serviços, qualidade idêntica à evidenciada no sector financeiro e nas telecomunicações. Acontece que Portugal não é o Luxemburgo nem as Seychelles. Infelizmente, não somos uma plataforma de negócios internacionais nem nascem bananeiras nos nossos quintais. Dez milhões de bocas não se sustentam de intangíveis.
2 Perante a perspectiva mais que provável de empobrecimento do tecido económico português, o que pode a governação fazer para sacudir a inércia geral, de que folga pró-activa dispõe perante a realidade crua do mercado e das insuficiências da nossa sociedade civil? Muito e muito pouco. Tal como Olegário Benquerença, ao não validar aquele golo do Benfica contra o Porto, foi o verdadeiro causador (embora involuntário) do despedimento do doutor Santana Lopes, o acerto na pequena margem de manobra que resta à política pode fazer toda a diferença.
Em primeiro lugar, restituir a confiança aos agentes económicos, reforçando as apostas sérias de longo prazo (educação e qualificação dos recursos humanos) e atacando de frente os custos de contexto, onde a burocracia estatal ocupa lugar de destaque. Depois, saber dinamizar, como um enzima activo, plataformas de valorização industrial onde podemos ambicionar a uma presença competitiva nos mercados internacionais. Por fim, ousar empreender projectos infra-estruturantes de largo fôlego. A rede TGV, o novo aeroporto de Lisboa (onde quer que se situe) e a terceira travessia do mar da Palha são desígnios incontornáveis para um país que ainda não supriu as desvantagens viárias do passado. Resta saber se o curso da economia real permitirá tal ambição e se a conflitualidade da política não fará capotar a vontade (?) da sociedade civil.
3 Mas nem tudo são más notícias. Aos olhos insuspeitos da Intelligence Unit da revista The Economist, Portugal será em 2005 o 19º país com melhor qualidade de vida entre os 111 do estudo, logo atrás do Japão. Surpreendentemente, levamos a melhor sobre a França (25º do ranking), a Alemanha (26º), o Reino Unido (29º), a Áustria (20º), a Bélgica (24º), a Coreia do Sul (30º) e todos os dragões e tigres da Ásia e da Europa de Leste, à excepção de Singapura (11º). A Grécia, nossa eterna rival na luta pela cauda, fica-se por um honroso 22º lugar.
Ao contrário do que é habitual, este trabalho cuidou de fixar os critérios de qualidade de vida a partir de uma aproximação bottom-up. Inquiriu cidadãos de 74 países sobre os factores determinantes do bem-estar e concluiu que o lugar geométrico da felicidade se encontra no cruzamento de factores tão diversos como o rendimento (o mais importante, como seria de esperar), a saúde, a liberdade, o desemprego, a vida familiar, o clima, a situação política, a segurança ou a igualdade de sexos. O primeiro classificado, a Irlanda, conjuga alguns dos melhores ingredientes: PIB per capita elevado, alta taxa de emprego, estabilidade política e valores tradicionais. Entre os dez primeiros, quatro são países escandinavos (Noruega, Suécia, Islândia e Dinamarca), dois são placas giratórias da finança mundial (Suiça e Luxemburgo), outros dois são mediterrânicos (Itália e Espanha) e um (a Austrália) é o país dos territórios e das oportunidades sem fim.
Será possível avaliar a qualidade de vida em termos matemáticos? Foi a pergunta que, nos idos de 1986, o jornal The Times colocou perante as primeiras tentativas de aferição sistemática do bem-estar entre os súbditos de Sua Majestade. O que dizer agora deste novo índice e do lisonjeiro lugar de Portugal? Duas palavras - muito obrigado. É com indicadores destes que vamos combatendo a depressão colectiva.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 16 de Dezembro de 2004
Com a fileira marítima destroçada, a fileira da terra malbaratada, a indústria transformadora exangue, a construção civil deprimida e a inovação banida do léxico empresarial, não há crença regeneradora que resista. Ou demonstramos ser capazes de um extraordinário assomo de clarividência e ousadia, coisa rara na história lusitana, ou pouco mais nos resta do que um país de sol e serviços.
Alguns argumentam que esse nem seria um mau destino, se tivéssemos juízo na oferta turística e revelássemos, nos serviços, qualidade idêntica à evidenciada no sector financeiro e nas telecomunicações. Acontece que Portugal não é o Luxemburgo nem as Seychelles. Infelizmente, não somos uma plataforma de negócios internacionais nem nascem bananeiras nos nossos quintais. Dez milhões de bocas não se sustentam de intangíveis.
2 Perante a perspectiva mais que provável de empobrecimento do tecido económico português, o que pode a governação fazer para sacudir a inércia geral, de que folga pró-activa dispõe perante a realidade crua do mercado e das insuficiências da nossa sociedade civil? Muito e muito pouco. Tal como Olegário Benquerença, ao não validar aquele golo do Benfica contra o Porto, foi o verdadeiro causador (embora involuntário) do despedimento do doutor Santana Lopes, o acerto na pequena margem de manobra que resta à política pode fazer toda a diferença.
Em primeiro lugar, restituir a confiança aos agentes económicos, reforçando as apostas sérias de longo prazo (educação e qualificação dos recursos humanos) e atacando de frente os custos de contexto, onde a burocracia estatal ocupa lugar de destaque. Depois, saber dinamizar, como um enzima activo, plataformas de valorização industrial onde podemos ambicionar a uma presença competitiva nos mercados internacionais. Por fim, ousar empreender projectos infra-estruturantes de largo fôlego. A rede TGV, o novo aeroporto de Lisboa (onde quer que se situe) e a terceira travessia do mar da Palha são desígnios incontornáveis para um país que ainda não supriu as desvantagens viárias do passado. Resta saber se o curso da economia real permitirá tal ambição e se a conflitualidade da política não fará capotar a vontade (?) da sociedade civil.
3 Mas nem tudo são más notícias. Aos olhos insuspeitos da Intelligence Unit da revista The Economist, Portugal será em 2005 o 19º país com melhor qualidade de vida entre os 111 do estudo, logo atrás do Japão. Surpreendentemente, levamos a melhor sobre a França (25º do ranking), a Alemanha (26º), o Reino Unido (29º), a Áustria (20º), a Bélgica (24º), a Coreia do Sul (30º) e todos os dragões e tigres da Ásia e da Europa de Leste, à excepção de Singapura (11º). A Grécia, nossa eterna rival na luta pela cauda, fica-se por um honroso 22º lugar.
Ao contrário do que é habitual, este trabalho cuidou de fixar os critérios de qualidade de vida a partir de uma aproximação bottom-up. Inquiriu cidadãos de 74 países sobre os factores determinantes do bem-estar e concluiu que o lugar geométrico da felicidade se encontra no cruzamento de factores tão diversos como o rendimento (o mais importante, como seria de esperar), a saúde, a liberdade, o desemprego, a vida familiar, o clima, a situação política, a segurança ou a igualdade de sexos. O primeiro classificado, a Irlanda, conjuga alguns dos melhores ingredientes: PIB per capita elevado, alta taxa de emprego, estabilidade política e valores tradicionais. Entre os dez primeiros, quatro são países escandinavos (Noruega, Suécia, Islândia e Dinamarca), dois são placas giratórias da finança mundial (Suiça e Luxemburgo), outros dois são mediterrânicos (Itália e Espanha) e um (a Austrália) é o país dos territórios e das oportunidades sem fim.
Será possível avaliar a qualidade de vida em termos matemáticos? Foi a pergunta que, nos idos de 1986, o jornal The Times colocou perante as primeiras tentativas de aferição sistemática do bem-estar entre os súbditos de Sua Majestade. O que dizer agora deste novo índice e do lisonjeiro lugar de Portugal? Duas palavras - muito obrigado. É com indicadores destes que vamos combatendo a depressão colectiva.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 16 de Dezembro de 2004