7 de dezembro de 2004
Democracia Parlamentar e Poderes Presidenciais
Por Vital Moreira
Dirigentes da ainda maioria governamental não se cansam de repetir que esta é a primeira vez que o Presidente da República dissolve um Parlamento, existindo uma maioria parlamentar e um Governo em funções. O objectivo é obviamente tentar contestar, se não a legitimidade da decisão presidencial, pelo menos a sua compatibilidade com uma democracia parlamentar.
Na verdade, apesar de algumas situações aproximadas, esta dissolução parlamentar não tem precedentes inteiramente coincidentes. Em 1982, o então Presidente da República, Ramalho Eanes, dissolveu o Parlamento no seguimento do pedido de demissão de um Governo com maioria parlamentar, apesar de a mesma coligação ter apresentado um novo candidato a primeiro-ministro. E em 1987 Mário Soares recorreu também à dissolução depois da queda de um governo minoritário (o primeiro governo de Cavaco Silva), apesar de haver possibilidade de constituir uma solução governativa maioritária com os partidos que tinham votado a moção de censura. Ou seja, em ambas as ocasiões havia uma crise governamental, tendo o Presidente entendido que não restavam condições para manter a mesma maioria (1982), nem muito menos para deixar constituir uma maioria diferente no mesmo quadro parlamentar (1987). Desta vez, a dissolução tem lugar sem ter ocorrido a demissão do Governo, estando em funções um executivo com apoio parlamentar maioritário.
A originalidade da decisão presidencial não lhe retira, porém, nenhuma legitimidade constitucional nem a torna descabida no nosso sistema de governo. A Constituição reconhece ao Presidente o poder de dissolver livremente a Assembleia, provocando a cessação da legislatura em curso e a antecipação de eleições. O facto de tal situação não ter ocorrido até agora tem menos a ver com a sua improbabilidade do que com o facto de até agora terem sido muito raras as situações de governos com apoio parlamentar maioritário duradouro. No passado, todas as coligações governamentais caíram pelo seu próprio pé, sem necessidade de intervenção presidencial. A verdade é que nunca como nesta ocorrência pareceu tão necessária e tão provável a mudança de maioria parlamentar. Há sempre uma primeira vez.
Pode discordar-se da decisão presidencial com argumentos vários. Mas, para além das simpatias ou antipatias políticas, restam as considerações de oportunidade e de ponderação de vantagens e desvantagens da dissolução, que cabem dentro da discricionariedade reconhecida pela Constituição ao Presidente nesta matéria. Dificilmente pode haver dissolução parlamentar sem bons motivos, que possam colher apoios na opinião pública e sem uma razoável certeza de que os cidadãos não deixarão de validar essa opção. De outro modo, é a própria posição presidencial que fica debilitada, se os eleitores viessem a reconduzir a mesma maioria. Em Julho, numa decisão altamente contestada, o Presidente entendeu não convocar eleições antecipadas, provavelmente por não querer ser acusado de fazer um juízo antecipado sobre o primeiro-ministro proposto e por não estar seguro sobre se das eleições poderia resultar uma alternativa "com pés para andar". Agora, feita a prova da imprestabilidade do Governo, o Presidente entendeu não poder prolongar mais tempo a degradação e o apodrecimento da situação política. Por isso, apesar dos seus possíveis efeitos colaterais negativos, não se pode contrariar a lógica da dissolução, que cabe perfeitamente na nossa arquitectura constitucional.
O nosso sistema de governo não é de natureza puramente parlamentar, reconhecendo-se ao Presidente da República, para isso directamente eleito, certos poderes de intervenção no sistema político, entre os quais a possibilidade de dissolução parlamentar por decisão própria, à margem de qualquer proposta do Governo em funções e mesmo contra a sua vontade, o que não é comum nos sistemas parlamentares. Embora ele não partilhe do poder executivo, como sucede em França (e por isso não tem sentido falar de um sistema "semipresidencial" entre nós), o Presidente da República funciona como um "quarto poder" ou como "poder moderador", com funções de fiscalização, supervisão e regulação do sistema de governo.
Ao dissolver a Assembleia da República, ele limita-se a devolver a palavra aos eleitores, seja por entender que o Parlamento em funções esgotou as suas virtualidades, seja por considerar que a solução governativa vigente é insustentável e que não há lugar para outra no quadro parlamentar existente. Diferentemente do que se argumentou, para dissolver a Assembleia o Presidente não precisa de invocar, muito menos de provar, a existência de qualquer perigo para o "regular funcionamento das instituições" (que só se torna necessário para justificar a destituição do Governo). Ora, ao contrário do que também se ouviu repetidamente, o Presidente não anunciou a demissão do Governo, que se não confunde com a dissolução da Assembleia da República. De resto, a dissolução parlamentar também não arrasta só por si a demissão do Governo (diferentemente do que a própria Constituição estabelece no que respeita às regiões antónomas, em caso de dissolução dos parlamentos regionais). E o Governo tampouco se demitiu (o que talvez devesse fazer, tendo em conta as razões da dissolução). Portanto, pelo menos formalmente, o Governo vai manter-se com poderes normais, incluindo poderes legislativos, ressalvados os poderes que dependem da AR (por exemplo, caducam as autorizações legislativas) e as restrições decorrentes de legislação especial (por exemplo, a lei-quadro dos institutos públicos impede a nomeação de novos dirigentes desses organismos depois de marcadas eleições para a Assembleia). Mesmo que a dissolução parlamentar implique evidentemente a cessação da legitimidade política do Governo, o que recomenda o seu "self-restraint" e uma intensificação dos poderes de controlo presidenciais (designadamente o poder de veto legislativo, recusando a promulgação dos diplomas governamentais), a situação não é equiparável à demissão.
Não é que fosse despropositada a destituição do Governo, com eficácia imediata, com base na competente cláusula constitucional do "regular funcionamento das instituições", argumentando que a instituição que não estava a funcionar regularmente era o próprio Governo. Pelo menos desde o "caso Marcelo" até ao incrível episódio do ministro Chaves, o Governo tornou-se num intenso foco de instabilidade e imprevisibilidade. Ao não considerar aquela possibilidade, pelo menos para já, Belém terá querido evitar justamente a controvérsia acerca da existência, ou não, do tal requisito constitucional, bem como recusar ao Governo uma suplementar razão de vitimização, que só poderia perturbar a compreensão da dissolução parlamentar.
Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)
1. Como era de temer, não se mostrou acertado o silêncio do Presidente da República sobre as razões oficiais da dissolução parlamentar, cuja explicação ficou adiada para depois da consulta ao Conselho de Estado e aos partidos políticos. Por um lado, uma decisão destas não deve ser deixada durante vários dias à especulação pública, mesmo quando ela parece evidente, como no caso em apreço. Por outro lado, era de esperar que o primeiro-ministro, que não prima por escrúpulos democráticos, não deixaria de aproveitar o auto-imposto silêncio presidencial para explorar a situação em seu favor, sem contraditório.
2. Com a anunciada convocação de eleições antecipadas, é natural que as forças políticas se dediquem à formulação das suas opções eleitorais. O mínimo que se pode esperar dos partidos é evitar as tomadas de posição desgarradas dos seus dirigentes, que possam de algum modo condicionar a preparação do programa eleitoral. Neste sentido, as declarações de Fernando Gomes a favor da manutenção das Scut - quando essa questão vai ser seguramente uma das mais difíceis de decidir por parte de um futuro governo socialista - tem de ser considerada inoportuna.
(Público, Terça-feira, 07 de Dezembro de 2004)
Dirigentes da ainda maioria governamental não se cansam de repetir que esta é a primeira vez que o Presidente da República dissolve um Parlamento, existindo uma maioria parlamentar e um Governo em funções. O objectivo é obviamente tentar contestar, se não a legitimidade da decisão presidencial, pelo menos a sua compatibilidade com uma democracia parlamentar.
Na verdade, apesar de algumas situações aproximadas, esta dissolução parlamentar não tem precedentes inteiramente coincidentes. Em 1982, o então Presidente da República, Ramalho Eanes, dissolveu o Parlamento no seguimento do pedido de demissão de um Governo com maioria parlamentar, apesar de a mesma coligação ter apresentado um novo candidato a primeiro-ministro. E em 1987 Mário Soares recorreu também à dissolução depois da queda de um governo minoritário (o primeiro governo de Cavaco Silva), apesar de haver possibilidade de constituir uma solução governativa maioritária com os partidos que tinham votado a moção de censura. Ou seja, em ambas as ocasiões havia uma crise governamental, tendo o Presidente entendido que não restavam condições para manter a mesma maioria (1982), nem muito menos para deixar constituir uma maioria diferente no mesmo quadro parlamentar (1987). Desta vez, a dissolução tem lugar sem ter ocorrido a demissão do Governo, estando em funções um executivo com apoio parlamentar maioritário.
A originalidade da decisão presidencial não lhe retira, porém, nenhuma legitimidade constitucional nem a torna descabida no nosso sistema de governo. A Constituição reconhece ao Presidente o poder de dissolver livremente a Assembleia, provocando a cessação da legislatura em curso e a antecipação de eleições. O facto de tal situação não ter ocorrido até agora tem menos a ver com a sua improbabilidade do que com o facto de até agora terem sido muito raras as situações de governos com apoio parlamentar maioritário duradouro. No passado, todas as coligações governamentais caíram pelo seu próprio pé, sem necessidade de intervenção presidencial. A verdade é que nunca como nesta ocorrência pareceu tão necessária e tão provável a mudança de maioria parlamentar. Há sempre uma primeira vez.
Pode discordar-se da decisão presidencial com argumentos vários. Mas, para além das simpatias ou antipatias políticas, restam as considerações de oportunidade e de ponderação de vantagens e desvantagens da dissolução, que cabem dentro da discricionariedade reconhecida pela Constituição ao Presidente nesta matéria. Dificilmente pode haver dissolução parlamentar sem bons motivos, que possam colher apoios na opinião pública e sem uma razoável certeza de que os cidadãos não deixarão de validar essa opção. De outro modo, é a própria posição presidencial que fica debilitada, se os eleitores viessem a reconduzir a mesma maioria. Em Julho, numa decisão altamente contestada, o Presidente entendeu não convocar eleições antecipadas, provavelmente por não querer ser acusado de fazer um juízo antecipado sobre o primeiro-ministro proposto e por não estar seguro sobre se das eleições poderia resultar uma alternativa "com pés para andar". Agora, feita a prova da imprestabilidade do Governo, o Presidente entendeu não poder prolongar mais tempo a degradação e o apodrecimento da situação política. Por isso, apesar dos seus possíveis efeitos colaterais negativos, não se pode contrariar a lógica da dissolução, que cabe perfeitamente na nossa arquitectura constitucional.
O nosso sistema de governo não é de natureza puramente parlamentar, reconhecendo-se ao Presidente da República, para isso directamente eleito, certos poderes de intervenção no sistema político, entre os quais a possibilidade de dissolução parlamentar por decisão própria, à margem de qualquer proposta do Governo em funções e mesmo contra a sua vontade, o que não é comum nos sistemas parlamentares. Embora ele não partilhe do poder executivo, como sucede em França (e por isso não tem sentido falar de um sistema "semipresidencial" entre nós), o Presidente da República funciona como um "quarto poder" ou como "poder moderador", com funções de fiscalização, supervisão e regulação do sistema de governo.
Ao dissolver a Assembleia da República, ele limita-se a devolver a palavra aos eleitores, seja por entender que o Parlamento em funções esgotou as suas virtualidades, seja por considerar que a solução governativa vigente é insustentável e que não há lugar para outra no quadro parlamentar existente. Diferentemente do que se argumentou, para dissolver a Assembleia o Presidente não precisa de invocar, muito menos de provar, a existência de qualquer perigo para o "regular funcionamento das instituições" (que só se torna necessário para justificar a destituição do Governo). Ora, ao contrário do que também se ouviu repetidamente, o Presidente não anunciou a demissão do Governo, que se não confunde com a dissolução da Assembleia da República. De resto, a dissolução parlamentar também não arrasta só por si a demissão do Governo (diferentemente do que a própria Constituição estabelece no que respeita às regiões antónomas, em caso de dissolução dos parlamentos regionais). E o Governo tampouco se demitiu (o que talvez devesse fazer, tendo em conta as razões da dissolução). Portanto, pelo menos formalmente, o Governo vai manter-se com poderes normais, incluindo poderes legislativos, ressalvados os poderes que dependem da AR (por exemplo, caducam as autorizações legislativas) e as restrições decorrentes de legislação especial (por exemplo, a lei-quadro dos institutos públicos impede a nomeação de novos dirigentes desses organismos depois de marcadas eleições para a Assembleia). Mesmo que a dissolução parlamentar implique evidentemente a cessação da legitimidade política do Governo, o que recomenda o seu "self-restraint" e uma intensificação dos poderes de controlo presidenciais (designadamente o poder de veto legislativo, recusando a promulgação dos diplomas governamentais), a situação não é equiparável à demissão.
Não é que fosse despropositada a destituição do Governo, com eficácia imediata, com base na competente cláusula constitucional do "regular funcionamento das instituições", argumentando que a instituição que não estava a funcionar regularmente era o próprio Governo. Pelo menos desde o "caso Marcelo" até ao incrível episódio do ministro Chaves, o Governo tornou-se num intenso foco de instabilidade e imprevisibilidade. Ao não considerar aquela possibilidade, pelo menos para já, Belém terá querido evitar justamente a controvérsia acerca da existência, ou não, do tal requisito constitucional, bem como recusar ao Governo uma suplementar razão de vitimização, que só poderia perturbar a compreensão da dissolução parlamentar.
Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)
1. Como era de temer, não se mostrou acertado o silêncio do Presidente da República sobre as razões oficiais da dissolução parlamentar, cuja explicação ficou adiada para depois da consulta ao Conselho de Estado e aos partidos políticos. Por um lado, uma decisão destas não deve ser deixada durante vários dias à especulação pública, mesmo quando ela parece evidente, como no caso em apreço. Por outro lado, era de esperar que o primeiro-ministro, que não prima por escrúpulos democráticos, não deixaria de aproveitar o auto-imposto silêncio presidencial para explorar a situação em seu favor, sem contraditório.
2. Com a anunciada convocação de eleições antecipadas, é natural que as forças políticas se dediquem à formulação das suas opções eleitorais. O mínimo que se pode esperar dos partidos é evitar as tomadas de posição desgarradas dos seus dirigentes, que possam de algum modo condicionar a preparação do programa eleitoral. Neste sentido, as declarações de Fernando Gomes a favor da manutenção das Scut - quando essa questão vai ser seguramente uma das mais difíceis de decidir por parte de um futuro governo socialista - tem de ser considerada inoportuna.
(Público, Terça-feira, 07 de Dezembro de 2004)