14 de dezembro de 2004
O Fantasma da "Presidencialização" do Regime
Por Vital Moreira
Não faltaram por estes dias interpretações que vêem um sinal de presidencialização do nosso sistema de governo na decisão do Presidente da República de pôr fim antecipado à actual legislatura, convocando novas eleições parlamentares. A meu ver trata-se de especulações sem fundamento.
Comecemos por afastar a ideia, veiculada por adversários da decisão presidencial, de que esta assentou numa leitura "radical" ou "literal" da Constituição. A verdade é que o poder presidencial de livre dissolução parlamentar, sem precedência de proposta governamental e mesmo contra a maioria governamental existente, constitui o principal traço "desviante" da nossa democracia parlamentar "irregular" (a que muitos chamam equivocamente "semipresidencialismo"). Tendo sido uma explícita opção político-constitucional desde o início, a sua formulação concreta vem da revisão constitucional de 1982, que trocou a restrição do poder de destituição do governo, que era mais livre na versão originária da Constituição, pela liberalização da dissolução parlamentar (que antes dependia de autorização do Conselho da Revolução).
Qualquer manual de direito constitucional ou comentário à Constituição é claro sobre a natureza essencialmente discricionária desse poder presidencial. Se a Constituição estabelece um estrito limite substancial à destituição directa do governo - para tal exigindo que esteja em causa o "regular funcionamento das instituições" (mesmo que este conceito relativamente indeterminado ainda deixe ampla margem de decisão...) - e nada de semelhante exige quanto à dissolução parlamentar, é evidente que se quis deliberadamente deixar livre o exercício deste poder. Compreende-se, aliás, a diferença, pois a demissão do governo implica um juízo de rejeição do Presidente sobre o mesmo, contra a maioria parlamentar existente, enquanto a dissolução parlamentar não pressupõe nenhum juízo político negativo sobre aquela, implicando somente uma renovação da legitimidade parlamentar, sendo a saída deixada nas mãos dos eleitores.
É evidente que num sistema de base parlamentar a dissolução só poder ser uma "válvula de segurança" para permitir uma saída em caso de impasse ou de situação política insustentável e não um instrumento normal de mudança de governo por vontade presidencial (como sucede em França). Mas a sua utilização remete sempre para a responsabilidade pessoal do Presidente, que não pode exercer esse poder de forma leviana (poder discricionário não significa arbitrariedade). Sob pena de fazer ricochete sobre si mesmo, a dissolução deve ser sempre um acto quase auto-evidente perante a opinião pública. Mas neste ponto só quem não quer ver é que não reconhece haver motivos mais do que bastantes para justificar a convocação de eleições antecipadas. Sabe-se aliás agora, pelo testemunho qualificado de Dias Loureiro, que o próprio primeiro-ministro já tinha encarado a hipótese de se demitir e que havia a convicção de que não havia solução sem novas eleições. Como, então, questionar seriamente a opção presidencial?
Não é a primeira vez que há dissolução parlamentar contra uma maioria parlamentar disposta a governar ou havendo condições para a formação de uma tal maioria, pois tal sucedeu em 1982 (Ramalho Eanes) e em 1987 (Mário Soares), precedida porém em ambos os casos pela demissão não presidencial do governo. O facto de agora o poder de dissolução ter sido exercido pela primeira vez com um governo em funções, por não estar demitido, não afecta em nada a sua legitimidade constitucional ou política, se a decisão for devidamente motivada. A especificidade da situação tem a ver desde logo com a especificidade do Governo em causa, cujo primeiro-ministro foi nomeado em substituição de outro, sem ter passado por eleições (nem sequer deputado é), tendo a sua nomeação, amplamente contestada, sido explicitamente sujeita pelo Presidente a uma espécie de "regime de tutela".
Provavelmente desde o seu discurso de Outubro, ou desde o escabroso caso Marcelo, o Presidente da República só estava à espera de uma boa ocasião para tomar a decisão que agora concretizou. Mas o que é certo é que o próprio primeiro-ministro lhe deu de bandeja óptimos motivos e uma excelente ocasião, mais cedo do que toda a gente esperava, com a condução errática do Governo e com a série de "trapalhices" dos seus ministros mais próximos, desde o caso Marcelo-Gomes da Silva até ao indescritível caso do insólito ministro Chaves. Porventura com receio de perder esta oportunidade e de não vir a dispor de uma tão propícia conjugação de factores no futuro, o Presidente precipitou a decisão na altura que lhe pareceu mais azada, sem esperar maior apodrecimento da situação. Mas isso não chega para questionar a sua virtude constitucional ou política.
Podendo embora questionar-se a oportunidade ou mesmo a vantagem da dissolução, não é lícito porém contestar a legitimidade e a pertinência das razões presidenciais, sobretudo tendo em conta as circunstâncias em que este Governo foi constituído e o "regime de prova" em que o Presidente da República o colocou no que respeita especialmente à garantia da estabilidade política. Em certo sentido a conduta deste Governo também envolvia a responsabilidade presidencial pela sua nomeação. Tendo dado uma muito controversa oportunidade ao Governo em nome da estabilidade, o Presidente sentiu que não podia manter o seu aval nem continuar a suportar indirectamente o ónus político do rotundo falhanço daquele quanto a esse aspecto.
Neste contexto são de todo descabidas as comparações entretanto feitas com o segundo Governo de António Guterres. Tratava-se de um governo de legitimidade política plena, constituído no seguimento das eleições de 1999, aliás sem ter maioria parlamentar e logo muito mais dependente da AR, tendo o primeiro-ministro acabado por se demitir a meio do mandato na sequência da derrota nas eleições locais de 2001. Com isso o Presidente foi poupado à questão de saber o que faria, se o primeiro-ministro não se tivesse demitido e se se tivesse instalado o "pântano político" que Guterres pretendeu evitar com a sua saída (sendo contraditoriamente acusado de "fuga" por aqueles que agora acusam o Presidente de o não ter "despedido" antecipadamente...). Por isso não são procedentes as acusações de falta de coerência dirigidas contra Sampaio. Por um lado, a situação não era de modo algum paralela, nem quanto à legitimidade política do Governo, nem quanto à frequência e gravidade das trapalhadas governamentais, nem muito menos quanto à errática instabilidade e ao caprichismo do actual primeiro-ministro. Por outro lado, ninguém pode dizer o que é que Sampaio teria feito se não tivesse havido a autodemissão do primeiro-ministro; tendo em conta as suas declarações na altura, é lícito presumir que não teria ficado impassível.
Em suma, a presente dissolução parlamentar, se bem que relativamente inovadora, não introduz nenhuma mudança no paradigma constitucional do funcionamento do nosso sistema de governo e dos poderes presidenciais. A suposta "presidencialização" não passa de produto de imaginação fértil.
(Público, Terça-feira, 14 de Dezembro de 2004
Não faltaram por estes dias interpretações que vêem um sinal de presidencialização do nosso sistema de governo na decisão do Presidente da República de pôr fim antecipado à actual legislatura, convocando novas eleições parlamentares. A meu ver trata-se de especulações sem fundamento.
Comecemos por afastar a ideia, veiculada por adversários da decisão presidencial, de que esta assentou numa leitura "radical" ou "literal" da Constituição. A verdade é que o poder presidencial de livre dissolução parlamentar, sem precedência de proposta governamental e mesmo contra a maioria governamental existente, constitui o principal traço "desviante" da nossa democracia parlamentar "irregular" (a que muitos chamam equivocamente "semipresidencialismo"). Tendo sido uma explícita opção político-constitucional desde o início, a sua formulação concreta vem da revisão constitucional de 1982, que trocou a restrição do poder de destituição do governo, que era mais livre na versão originária da Constituição, pela liberalização da dissolução parlamentar (que antes dependia de autorização do Conselho da Revolução).
Qualquer manual de direito constitucional ou comentário à Constituição é claro sobre a natureza essencialmente discricionária desse poder presidencial. Se a Constituição estabelece um estrito limite substancial à destituição directa do governo - para tal exigindo que esteja em causa o "regular funcionamento das instituições" (mesmo que este conceito relativamente indeterminado ainda deixe ampla margem de decisão...) - e nada de semelhante exige quanto à dissolução parlamentar, é evidente que se quis deliberadamente deixar livre o exercício deste poder. Compreende-se, aliás, a diferença, pois a demissão do governo implica um juízo de rejeição do Presidente sobre o mesmo, contra a maioria parlamentar existente, enquanto a dissolução parlamentar não pressupõe nenhum juízo político negativo sobre aquela, implicando somente uma renovação da legitimidade parlamentar, sendo a saída deixada nas mãos dos eleitores.
É evidente que num sistema de base parlamentar a dissolução só poder ser uma "válvula de segurança" para permitir uma saída em caso de impasse ou de situação política insustentável e não um instrumento normal de mudança de governo por vontade presidencial (como sucede em França). Mas a sua utilização remete sempre para a responsabilidade pessoal do Presidente, que não pode exercer esse poder de forma leviana (poder discricionário não significa arbitrariedade). Sob pena de fazer ricochete sobre si mesmo, a dissolução deve ser sempre um acto quase auto-evidente perante a opinião pública. Mas neste ponto só quem não quer ver é que não reconhece haver motivos mais do que bastantes para justificar a convocação de eleições antecipadas. Sabe-se aliás agora, pelo testemunho qualificado de Dias Loureiro, que o próprio primeiro-ministro já tinha encarado a hipótese de se demitir e que havia a convicção de que não havia solução sem novas eleições. Como, então, questionar seriamente a opção presidencial?
Não é a primeira vez que há dissolução parlamentar contra uma maioria parlamentar disposta a governar ou havendo condições para a formação de uma tal maioria, pois tal sucedeu em 1982 (Ramalho Eanes) e em 1987 (Mário Soares), precedida porém em ambos os casos pela demissão não presidencial do governo. O facto de agora o poder de dissolução ter sido exercido pela primeira vez com um governo em funções, por não estar demitido, não afecta em nada a sua legitimidade constitucional ou política, se a decisão for devidamente motivada. A especificidade da situação tem a ver desde logo com a especificidade do Governo em causa, cujo primeiro-ministro foi nomeado em substituição de outro, sem ter passado por eleições (nem sequer deputado é), tendo a sua nomeação, amplamente contestada, sido explicitamente sujeita pelo Presidente a uma espécie de "regime de tutela".
Provavelmente desde o seu discurso de Outubro, ou desde o escabroso caso Marcelo, o Presidente da República só estava à espera de uma boa ocasião para tomar a decisão que agora concretizou. Mas o que é certo é que o próprio primeiro-ministro lhe deu de bandeja óptimos motivos e uma excelente ocasião, mais cedo do que toda a gente esperava, com a condução errática do Governo e com a série de "trapalhices" dos seus ministros mais próximos, desde o caso Marcelo-Gomes da Silva até ao indescritível caso do insólito ministro Chaves. Porventura com receio de perder esta oportunidade e de não vir a dispor de uma tão propícia conjugação de factores no futuro, o Presidente precipitou a decisão na altura que lhe pareceu mais azada, sem esperar maior apodrecimento da situação. Mas isso não chega para questionar a sua virtude constitucional ou política.
Podendo embora questionar-se a oportunidade ou mesmo a vantagem da dissolução, não é lícito porém contestar a legitimidade e a pertinência das razões presidenciais, sobretudo tendo em conta as circunstâncias em que este Governo foi constituído e o "regime de prova" em que o Presidente da República o colocou no que respeita especialmente à garantia da estabilidade política. Em certo sentido a conduta deste Governo também envolvia a responsabilidade presidencial pela sua nomeação. Tendo dado uma muito controversa oportunidade ao Governo em nome da estabilidade, o Presidente sentiu que não podia manter o seu aval nem continuar a suportar indirectamente o ónus político do rotundo falhanço daquele quanto a esse aspecto.
Neste contexto são de todo descabidas as comparações entretanto feitas com o segundo Governo de António Guterres. Tratava-se de um governo de legitimidade política plena, constituído no seguimento das eleições de 1999, aliás sem ter maioria parlamentar e logo muito mais dependente da AR, tendo o primeiro-ministro acabado por se demitir a meio do mandato na sequência da derrota nas eleições locais de 2001. Com isso o Presidente foi poupado à questão de saber o que faria, se o primeiro-ministro não se tivesse demitido e se se tivesse instalado o "pântano político" que Guterres pretendeu evitar com a sua saída (sendo contraditoriamente acusado de "fuga" por aqueles que agora acusam o Presidente de o não ter "despedido" antecipadamente...). Por isso não são procedentes as acusações de falta de coerência dirigidas contra Sampaio. Por um lado, a situação não era de modo algum paralela, nem quanto à legitimidade política do Governo, nem quanto à frequência e gravidade das trapalhadas governamentais, nem muito menos quanto à errática instabilidade e ao caprichismo do actual primeiro-ministro. Por outro lado, ninguém pode dizer o que é que Sampaio teria feito se não tivesse havido a autodemissão do primeiro-ministro; tendo em conta as suas declarações na altura, é lícito presumir que não teria ficado impassível.
Em suma, a presente dissolução parlamentar, se bem que relativamente inovadora, não introduz nenhuma mudança no paradigma constitucional do funcionamento do nosso sistema de governo e dos poderes presidenciais. A suposta "presidencialização" não passa de produto de imaginação fértil.
(Público, Terça-feira, 14 de Dezembro de 2004