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8 de fevereiro de 2005

Aquém da Regionalização 

Por Vital Moreira

A questão da regionalização voltou à agenda política destas eleições, embora de forma discreta, não estando claramente entre as que suscitam maior atenção, com excepção porventura do Norte e do Algarve, onde continua a ser um dos temas mais mobilizadores, incluindo no interior do PSD, como mostrou recentemente o caso de Miguel Cadilhe, no respeitante ao Norte do país.

No entanto, ninguém ignora as dificuldades suscitadas pela regionalização. O estabelecimento das regiões administrativas, apesar de expressamente previstas na Constituição, só pode ser feito por via de referendo, em resultado da infeliz revisão constitucional de 1997. Trata-se de um caso único de referendo obrigatório no nosso país, onde os referendos são sempre facultativos, e onde, por exemplo, nem a criação das regiões autónomas dos Açores e da Madeira nem a adesão à Comunidade Europeia foram objecto de referendo. O certo é que a regionalização foi claramente rejeitada no referendo de 1998, não devendo restar dúvidas de que voltaria a ser rejeitada, se a questão voltasse a ser colocada nos mesmos termos em que o foi então, ou seja, como projecto de divisão artificial do território e como nova instituição construída a partir do nada, sem ter em conta as estruturas administrativas territoriais existentes.

Por isso, sendo eu pessoalmente favorável à criação das regiões administrativas, não tenho dúvidas, porém, de que seria puramente suicidário voltar a repetir o referendo, sem criar previamente as infra-estruturas administrativas que tornem a regionalização um passo natural na evolução da administração territorial, pela progressiva conversão das estruturas existentes da administração desconcentrada do Estado. Os que querem precipitar o regresso da regionalização são os seus piores inimigos.

Um passo decisivo parece ter-se dado com a generalizada aceitação de que qualquer futura regionalização deve ter por base a principal divisão da administração regional do Estado, ou seja, a das cinco comissões de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR) - Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve -, até porque elas já funcionam como interface institucional regional entre a administração central e a administração local autárquica, sendo dotadas já de alguma "legitimidade regional", por via do seu "conselho regional".

Há outros serviços regionais do Estado que respeitam essa divisão territorial, como, por exemplo, as direcções regionais da Economia. Mas outros, como as administrações regionais de saúde e as direcções regionais de educação, embora contem também cinco unidades territoriais, continuam, porém, a manter uma divisão territorial baseada em agrupamentos de distritos que não correspondem às referidas CCDR. Outros serviços regionais seguem modelos ainda mais assimétricos, quer quanto ao número de circunscrições territoriais, quer quanto à sua delimitação geográfica.

Desde 2001 que existe uma lei que manda adaptar a generalidade dos serviços regionais do Estado à matriz territorial das CCDR. Mas não tem sido implementada. Uniformizar tanto quanto possível o modelo da administração regional do Estado é uma condição de racionalidade, transparência e eficiência da administração pública, sendo por isso uma mais-valia em si mesma. Mas, indubitavelmente, esse processo de racionalização e uniformização é também uma condição "sine qua non" de qualquer futuro projecto de regionalização bem sucedida.

O segundo requisito de uma futura regionalização é a concentração nas CCDR de todas as funções administrativas que tenham a ver com o desenvolvimento regional, o ordenamento do território, a ambiente, etc., ou seja, todas aquelas áreas que hão-de constituir o núcleo das atribuições das regiões administrativas. A recente inclusão das direcções regionais do ambiente no âmbito das CCDR foi um passo no bom sentido. Mais uma vez, trata-se de reformas boas em si mesmas, independentemente de qualquer projecto de regionalização, visto que proporcionam maior coordenação e eficiência dos recursos disponíveis, reduzindo a elevada dispersão e descoordenação dos serviços regionais do Estado.

O terceiro passo poderá ser a atribuição de personalidade jurídica às CCDR, conferindo-lhes uma autonomia jurídica e administrativa de que elas até agora não dispõem, o que aumentaria sua visibilidade institucional e facilitaria as suas relações de cooperação com as comunidades autónomas espanholas transfronteiriças. Elas passariam a ser uma espécie de "institutos públicos territoriais", figura que tem precedentes quer nas direcções regionais da segurança social quer nas regiões de turismo.

O quarto passo, e decisivo, passaria por converter esses institutos públicos territoriais em verdadeiras autarquias territoriais, com atribuições próprias, receitas próprias e órgãos directamente eleitos, nos termos da Constituição. Este passo só poderia ser dado por via de referendo. Mas é evidente que seria um referendo com um alcance totalmente distinto daquele que existiu em 1998. Agora tratar-se-ia somente de transformar estruturas da administração desconcentrada do Estado em autarquias territoriais descentralizadas, mantendo, porém, a mesma divisão territorial, os mesmos serviços, as mesmas competências (ao menos, no fundamental) e sem significativo impacto financeiro.

Desde o início que a Constituição estabelece uma conexão entre a criação de regiões administrativas e a extinção dos distritos administrativos, que deixaram, no entanto, de ser autarquias locais logo em 1976, tendo subsistido somente como divisões da administração periférica do Estado. Sucede, porém, que, embora tendo perdido importância, devido à concentração de funções nos serviços regionais do Estado e à transferência de competências do governador civil para os municípios, os distritos ganharam um seguro de vida, por serem a base territorial dos círculos eleitorais para a Assembleia da República, obrigando os partidos políticos a organizarem-se numa base distrital. O problema está em que a delimitação territorial dos distritos, que vem no fundamental desde há mais de um século e meio, não coincide com a das CCDR, o que constitui uma das maiores irracionalidades da nossa administração territorial e uma das maiores fontes de resistência à regionalização.

Não sendo possível extinguir os distritos antes da regionalização, uma alternativa poderia ser adequar os distritos às fronteiras territoriais das CCDR. Mas não se adivinha suficiente força política para vencer as inevitáveis resistências a um passo desses (para além dos problemas suscitados pela modificação automática dos círculos eleitorais, que só podem ser modificados por maioria de 2/3). Seria estulto minimizar as dificuldades deste obstáculo.

Quanto às novas entidades metropolitanas e intermunicipais criadas pelo Governo de Durão Barroso, elas constituem fenómenos de "pequena e média regionalização", de base intermunicipal, que não são necessariamente incompatíveis com as regiões administrativas propriamente ditas (as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto nunca foram consideradas com tal). Apesar dos erros de concepção e de implementação, essas novas entidades tiveram porventura três virtualidades: primeiro, confirmar que a escala municipal não tem dimensão para o desempenho de tarefas administrativas de âmbito mais vasto; segundo, mostrar a desadequação das actuais fronteiras distritais, visto que muitas delas integram municípios pertencentes a mais do que um distrito; terceiro, validar no fundamental as fronteiras das circunscrições territoriais das CCDR.

Como se vê, se há reformas importantes adiadas, entre elas está seguramente a da administração territorial. A regionalização é somente uma delas.

(Público, Terça-feira, 08 de Fevereiro de 2005)

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