22 de fevereiro de 2005
Revolução eleitoral
Por Vital Moreira
Numa das maiores revoluções eleitorais da nossa democracia, desde logo pelas maciças deslocações de votos registadas, o sufrágio de domingo puniu severamente a maioria cessante e conferiu ao principal partido da oposição uma vitória rotunda e uma maioria parlamentar absoluta. Só os maus perdedores podem pôr em causa a justiça do veredicto popular. Vale a pena enunciar os principais vencedores e vencidos. Comecemos naturalmente pelos primeiros.
O principal vencedor é obviamente PS. Consegue a maior votação de sempre, com uma maioria absoluta de deputados (pela primeira vez), sendo o partido mais votado em quase todos os círculos eleitorais. Um feito para a história do PS e para a história política portuguesa, e mesmo europeia (não é vulgar uma maioria parlamentar monopartidária num sistema proporcional como o nosso). A sua aposta no eleitorado do centro revelou-se acertada, ainda que desguarnecendo a sua esquerda, onde o PCP e o BE cresceram.
O segundo vencedor é José Sócrates, o principal responsável pela vitória socialista. Enfrentou com dignidade e sobriedade a vergonhosa campanha suja contra si, promovida e alimentada pelo PSD. Manteve uma linha de seriedade e determinação sem desfalecimento. Arriscou tudo na maioria absoluta (não a tivesse obtido, e teria sofrido um claro revés pessoal). Resistiu à pressão dos "media" para revelar um "plano B" para a hipótese de não ter maioria absoluta e para anunciar os seus futuros ministros. Após ter ganho o PS, ganhou o país poucos meses depois. Tendo deixado marca como ministro, pode ser o primeiro-ministro de que o país precisa.
Vitoriosos das eleições saem também o PCP e o BE. Em conjunto, os partidos à esquerda obtiveram uma vitória memorável. Ao contrário do que costuma suceder, por efeito da pressão do voto útil, a grande vitória do PS não impediu a subida do PCP, que assegurou a terceira posição eleitoral, nem muito menos do BE, que mais do que duplicou os resultados de há três anos, tendo ficado em terceiro lugar em vários distritos. Um notável progresso. Mas não se pode desvalorizar o insucesso da aposta de ambos em impedir a maioria absoluta do PS, no que se empenharam tanto como a direita.
Embora não sendo um contendor nas eleições, Jorge Sampaio obtém igualmente um triunfo indiscutível. Arriscou convocar eleições antecipadas sabendo que, se delas não resultasse um governo de maioria, poderia ser acusado de ter interrompido um governo de coligação maioritária para dar lugar à instabilidade governativa. A maioria absoluta do PS constitui por isso também um triunfo seu. Os eleitores validaram esmagadoramente a sua decisão. Pode mesmo dizer-se que também legitimaram retroactivamente a sua decisão de não ter convocado eleições aquando da saída de Barroso, pois é quase certo que Lopes não teria sofrido uma derrota tão pesada nessa altura. Além disso, criou doutrina constitucional, ao exercer o seu poder de pôr fim a um governo de maioria em caso de degradação extrema da governação.
Entre os vencedores conta-se com toda a justiça José Pacheco Pereira. Foi o militante do PSD que desde o princípio se apercebeu claramente do festival de incompetência e de populismo que iria ser o governo de Santana Lopes. Tendo mantido uma firme e constante oposição à sua liderança, resistiu também ao oportunismo de intervir na campanha eleitoral, como outros fizeram à última hora, quando a derrota de Lopes era irreversível (como sucedeu com Marcelo R. de Sousa e Cadilhe, para não falar em Durão Barroso). É o triunfo da clarividência e da coerência.
Passemos agora aos vencidos.
A maior derrota é naturalmente do PSD. Com uma votação abaixo de 29 por cento e menos de um terço dos deputados, regista o pior resultado absoluto desde 1983. Perde em quase todos os distritos, incluindo alguns onde sempre tinha ganho com larga margem (como Viseu). Para além disso recorreu a uma campanha indigna e reles, que os eleitores castigaram justamente. Averba uma derrota absoluta. Mas nunca uma derrota tão pesada foi tão merecida.
O grande derrotado pessoal é Santana Lopes. É o fim de um mito: uma calamidade como chefe do Governo, um desastre na campanha eleitoral. A sua derrota é o fracasso do populismo, da demagogia, da falta de seriedade, dos golpes baixos, do erratismo político. A sua deriva direitista alienou o centro político para o PS. É um castigo eleitoral tão merecido quanto devastador. Mas nem na derrota ele teve grandeza ou dignidade. O PSD não merece tal vexame...
A seguir na lista dos vencidos vêm Paulo Portas e CDS. Sendo uma e a mesma coisa, a derrota de um é a perda do outro. Portas pagou pelo desastre da coligação, de que nem a oportunista tentativa de demarcação o salvou. Falhou todas as suas apostas. Desceu em vez de subir, não impediu a maioria absoluta do PS, não assegurou o terceiro lugar, não estancou a subida do PCP nem da "esquerda radical". A sua ideia de "roubar" deputados ao PS foi uma das anedotas políticas da campanha eleitoral. Apesar de sofrer uma derrota menos escandalosa do que a do seu parceiro de coligação, foi ele quem colocou a fasquia mais alta. O voluntarismo irrealista foi-lhe fatal.
Pesadamente derrotada é direita em geral. Somados os votos do PSD (incluindo o PPM e o PTM) e do CDS - cerca de 36 por cento, menos 9 pontos do que o PS sozinho e menos 20 e tal pontos do que o conjunto da esquerda! -, é este provavelmente o pior resultado de sempre da direita entre nós, com poucos casos semelhantes por essa Europa fora. Também é difícil imaginar tamanho desastre governativo e uma liderança tão irresponsável...
Lugar destacado entre os derrotados individuais cabe a A. João Jardim. Depois das perdas nas eleições regionais, em que viu encurtar consideravelmente a sua vantagem sobre o PS, é agora a primeira vez que o PS iguala o PSD no número de deputados eleitos no arquipélago nas eleições para a AR, dado que a vitória eleitoral "laranja" foi muito menos expressiva do que habitualmente. Ao ser um dos poucos apoios de Lopes entre os dirigentes tradicionais do partido, compartilha integralmente a enorme derrota daquele. Para agravar as coisas, desta vez não tem em Lisboa nem um governo de correligionários nem um governo minoritário do PS que precise dos "seus" deputados.
Surpresa entre os derrotados é Marcelo Rebelo de Sousa. Obviamente desejava o desaire de Lopes mas não podia querer a maioria absoluta do PS. Arriscou nisso o seu prestígio e perdeu. Apareceu várias vezes na campanha eleitoral do PSD ao lado de figuras como L. Filipe Menezes e não se inibiu de tentar desqualificar o líder do PS e de ridicularizar o pedido de maioria absoluta, que segundo ele seria uma "ironia absoluta". Não pode portanto sacudir do seu capote a água da derrota nesse ponto crucial. Depois disso não teve pejo em aparecer como "comentador" na RTP, como se nada tivesse a ver com o PSD e com os seus resultados.
Parcialmente derrotados foram também Jerónimo de Sousa e Francisco Louçã. Ambos conseguiram o notável feito de disputarem ao PS os despojos eleitorais da direita, obtendo consideráveis ganhos, com destaque para o segundo. Mas foi evidente que para ambos tão importante como a derrota da direita era impedir a maioria absoluta do PS. Nisso revelaram-se tão acirrados como a direita. O BE chegou a erigir em objectivo essencial o "voto útil contra a maioria do PS". Ambos falharam nesse objectivo, o que reduz drasticamente a sua influência política (mesmo que o PS não deva de modo algum desconsiderar o seu peso). Por mais que o tentem agora, é impossível desvalorizar este importante revés.
(Publico, terça-feira, 22 de Fevereiro de 2005; texto corrigido)
Numa das maiores revoluções eleitorais da nossa democracia, desde logo pelas maciças deslocações de votos registadas, o sufrágio de domingo puniu severamente a maioria cessante e conferiu ao principal partido da oposição uma vitória rotunda e uma maioria parlamentar absoluta. Só os maus perdedores podem pôr em causa a justiça do veredicto popular. Vale a pena enunciar os principais vencedores e vencidos. Comecemos naturalmente pelos primeiros.
O principal vencedor é obviamente PS. Consegue a maior votação de sempre, com uma maioria absoluta de deputados (pela primeira vez), sendo o partido mais votado em quase todos os círculos eleitorais. Um feito para a história do PS e para a história política portuguesa, e mesmo europeia (não é vulgar uma maioria parlamentar monopartidária num sistema proporcional como o nosso). A sua aposta no eleitorado do centro revelou-se acertada, ainda que desguarnecendo a sua esquerda, onde o PCP e o BE cresceram.
O segundo vencedor é José Sócrates, o principal responsável pela vitória socialista. Enfrentou com dignidade e sobriedade a vergonhosa campanha suja contra si, promovida e alimentada pelo PSD. Manteve uma linha de seriedade e determinação sem desfalecimento. Arriscou tudo na maioria absoluta (não a tivesse obtido, e teria sofrido um claro revés pessoal). Resistiu à pressão dos "media" para revelar um "plano B" para a hipótese de não ter maioria absoluta e para anunciar os seus futuros ministros. Após ter ganho o PS, ganhou o país poucos meses depois. Tendo deixado marca como ministro, pode ser o primeiro-ministro de que o país precisa.
Vitoriosos das eleições saem também o PCP e o BE. Em conjunto, os partidos à esquerda obtiveram uma vitória memorável. Ao contrário do que costuma suceder, por efeito da pressão do voto útil, a grande vitória do PS não impediu a subida do PCP, que assegurou a terceira posição eleitoral, nem muito menos do BE, que mais do que duplicou os resultados de há três anos, tendo ficado em terceiro lugar em vários distritos. Um notável progresso. Mas não se pode desvalorizar o insucesso da aposta de ambos em impedir a maioria absoluta do PS, no que se empenharam tanto como a direita.
Embora não sendo um contendor nas eleições, Jorge Sampaio obtém igualmente um triunfo indiscutível. Arriscou convocar eleições antecipadas sabendo que, se delas não resultasse um governo de maioria, poderia ser acusado de ter interrompido um governo de coligação maioritária para dar lugar à instabilidade governativa. A maioria absoluta do PS constitui por isso também um triunfo seu. Os eleitores validaram esmagadoramente a sua decisão. Pode mesmo dizer-se que também legitimaram retroactivamente a sua decisão de não ter convocado eleições aquando da saída de Barroso, pois é quase certo que Lopes não teria sofrido uma derrota tão pesada nessa altura. Além disso, criou doutrina constitucional, ao exercer o seu poder de pôr fim a um governo de maioria em caso de degradação extrema da governação.
Entre os vencedores conta-se com toda a justiça José Pacheco Pereira. Foi o militante do PSD que desde o princípio se apercebeu claramente do festival de incompetência e de populismo que iria ser o governo de Santana Lopes. Tendo mantido uma firme e constante oposição à sua liderança, resistiu também ao oportunismo de intervir na campanha eleitoral, como outros fizeram à última hora, quando a derrota de Lopes era irreversível (como sucedeu com Marcelo R. de Sousa e Cadilhe, para não falar em Durão Barroso). É o triunfo da clarividência e da coerência.
Passemos agora aos vencidos.
A maior derrota é naturalmente do PSD. Com uma votação abaixo de 29 por cento e menos de um terço dos deputados, regista o pior resultado absoluto desde 1983. Perde em quase todos os distritos, incluindo alguns onde sempre tinha ganho com larga margem (como Viseu). Para além disso recorreu a uma campanha indigna e reles, que os eleitores castigaram justamente. Averba uma derrota absoluta. Mas nunca uma derrota tão pesada foi tão merecida.
O grande derrotado pessoal é Santana Lopes. É o fim de um mito: uma calamidade como chefe do Governo, um desastre na campanha eleitoral. A sua derrota é o fracasso do populismo, da demagogia, da falta de seriedade, dos golpes baixos, do erratismo político. A sua deriva direitista alienou o centro político para o PS. É um castigo eleitoral tão merecido quanto devastador. Mas nem na derrota ele teve grandeza ou dignidade. O PSD não merece tal vexame...
A seguir na lista dos vencidos vêm Paulo Portas e CDS. Sendo uma e a mesma coisa, a derrota de um é a perda do outro. Portas pagou pelo desastre da coligação, de que nem a oportunista tentativa de demarcação o salvou. Falhou todas as suas apostas. Desceu em vez de subir, não impediu a maioria absoluta do PS, não assegurou o terceiro lugar, não estancou a subida do PCP nem da "esquerda radical". A sua ideia de "roubar" deputados ao PS foi uma das anedotas políticas da campanha eleitoral. Apesar de sofrer uma derrota menos escandalosa do que a do seu parceiro de coligação, foi ele quem colocou a fasquia mais alta. O voluntarismo irrealista foi-lhe fatal.
Pesadamente derrotada é direita em geral. Somados os votos do PSD (incluindo o PPM e o PTM) e do CDS - cerca de 36 por cento, menos 9 pontos do que o PS sozinho e menos 20 e tal pontos do que o conjunto da esquerda! -, é este provavelmente o pior resultado de sempre da direita entre nós, com poucos casos semelhantes por essa Europa fora. Também é difícil imaginar tamanho desastre governativo e uma liderança tão irresponsável...
Lugar destacado entre os derrotados individuais cabe a A. João Jardim. Depois das perdas nas eleições regionais, em que viu encurtar consideravelmente a sua vantagem sobre o PS, é agora a primeira vez que o PS iguala o PSD no número de deputados eleitos no arquipélago nas eleições para a AR, dado que a vitória eleitoral "laranja" foi muito menos expressiva do que habitualmente. Ao ser um dos poucos apoios de Lopes entre os dirigentes tradicionais do partido, compartilha integralmente a enorme derrota daquele. Para agravar as coisas, desta vez não tem em Lisboa nem um governo de correligionários nem um governo minoritário do PS que precise dos "seus" deputados.
Surpresa entre os derrotados é Marcelo Rebelo de Sousa. Obviamente desejava o desaire de Lopes mas não podia querer a maioria absoluta do PS. Arriscou nisso o seu prestígio e perdeu. Apareceu várias vezes na campanha eleitoral do PSD ao lado de figuras como L. Filipe Menezes e não se inibiu de tentar desqualificar o líder do PS e de ridicularizar o pedido de maioria absoluta, que segundo ele seria uma "ironia absoluta". Não pode portanto sacudir do seu capote a água da derrota nesse ponto crucial. Depois disso não teve pejo em aparecer como "comentador" na RTP, como se nada tivesse a ver com o PSD e com os seus resultados.
Parcialmente derrotados foram também Jerónimo de Sousa e Francisco Louçã. Ambos conseguiram o notável feito de disputarem ao PS os despojos eleitorais da direita, obtendo consideráveis ganhos, com destaque para o segundo. Mas foi evidente que para ambos tão importante como a derrota da direita era impedir a maioria absoluta do PS. Nisso revelaram-se tão acirrados como a direita. O BE chegou a erigir em objectivo essencial o "voto útil contra a maioria do PS". Ambos falharam nesse objectivo, o que reduz drasticamente a sua influência política (mesmo que o PS não deva de modo algum desconsiderar o seu peso). Por mais que o tentem agora, é impossível desvalorizar este importante revés.
(Publico, terça-feira, 22 de Fevereiro de 2005; texto corrigido)