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28 de março de 2005

Da "reforma" à "modernização" administrativa 

Por Vital Moreira

Hoje em dia não é concebível nenhum programa eleitoral nem programa de governo que não dedique a devida atenção à administração pública, seja no contexto da melhor organização do Estado e da acção pública, seja no quadro dos instrumentos para o desenvolvimento económico e social, seja no âmbito da consolidação das finanças públicas. O programa eleitoral do PS e, presumivelmente, o programa do novo Governo não fogem à regra. Importa ver quais são as novidades e quais podem ser as perspectivas.
Os governos PSD-CDS fizeram da "reforma da administração pública" uma das suas prioridades. Anunciaram muito, realizaram algumas mudanças meritórias (em alguns casos retomando projectos precedentes), mas ficaram muito aquém do prometido e do devido. O impulso reformista quase se ficou pela produção legislativa. Mais duradoura e continuada foi a acção na área da "administração electrónica" (e-administration), ou "governo electrónico" (e-government), culminando na recente transformação da UMIC [Unidade de Missão para a Informação e o Conhecimento] em instituto público, com o nome de Agência para a Sociedade do Conhecimento. No plano das realizações sectoriais merece especial referência a área da saúde, designadamente a empresarialização de muitos hospitais, acompanhada pela criação de uma autoridade reguladora para o sector.
No que respeita ao programa legislativo de enquadramento da administração, devem registar-se, entre outras, as leis sobre os institutos públicos, a administração directa do Estado, o contrato de trabalho na administração pública, os cargos dirigentes, a avaliação dos serviços e do pessoal. Mas ficaram no tinteiro, por exemplo, a lei-quadro das entidades reguladoras independentes, a revisão do Código de Procedimento Administrativo e o regime da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas. Notório foi também o desinteresse pela racionalização e ordenamento da administração desconcentrada, ou seja, os serviços regionais e locais do Estado, tendo ficado por executar o diploma sobre a matéria produzido pelo segundo Governo de Guterres (com Alberto Martins como ministro responsável pela pasta competente).
Entre as medidas adoptadas há duas que suscitam especiais objecções. A primeira diz respeito à livre nomeação de pessoal dirigente, que, além dos cargos de direcção superior (directores-gerais e equiparados, dirigentes dos institutos públicos, etc.), passou a abranger os cargos de direcção intermédia, nomeadamente os chefes de serviços e chefes de divisão, os quais deixaram de ser seleccionados por concurso para passarem a ser nomeados pelos dirigentes superiores. Como era de esperar, o novo mecanismo veio expandir a pletora de cargos públicos de livre nomeação, contribuindo enormemente para uma indesejável partidarização da administração. A segunda objecção tem a ver com a adopção do contrato individual de trabalho como regime regra de emprego na administração pública, em substituição do regime da função pública (em vez de reformar este...), mesmo no âmbito do "sector público administrativo". Esta opção, que já vinha de trás quanto a alguns institutos públicos e às entidades reguladoras, foi agora estendida a toda a administração indirecta e, com algumas excepções, aos próprios serviços da administração directa.
Esta "desadministrativização" das relações de emprego é porventura o sinal mais ortodoxo da inspiração doutrinal da reforma da administração na legislatura precedente, que invocou expressamente os cânones da "nova gestão pública", tipicamente identificada com a importação de procedimentos e estilos da gestão empresarial, designadamente a autonomia de gestão e responsabilidade dos serviços, a gestão por objectivos, o enfoque sobre os resultados e a eficiência, a avaliação de serviços e do pessoal, a remuneração de acordo com o desempenho, etc. Mas fora isso a reforma ficou bem aquém das formas radicais que a "reforma gestionária" assumiu noutros países, substituindo as relações de controlo e hierarquia pela contratualização de programas de acção entre o governo e os serviços administrativos, autonomizados em "agências" dotadas de grande liberdade actuação, e introduzindo mecanismos de mercado no âmbito da própria administração ("mercado administrativo"). A excepção mais notória foi a reforma dos serviços de saúde.
O programa eleitoral do PS, que naturalmente se deve reflectir no seu programa de governo, parece abandonar a retórica da "reforma administrativa" - talvez pela usura e trivialização a que o conceito foi sujeito, sem resultados visíveis -, substituindo-a pela noção de "modernização administrativa", a um tempo menos ambicioso e mais significativo. Curioso é o facto de a administração pública vir tratada no capítulo da "estratégia de crescimento" e não no capítulo das questões do Estado. Original também é a localização das questões da modernização administrativa na orgânica do novo Governo, onde ficam a cargo do ministro de Estado e da Administração Interna, separadas portanto da Secretaria de Estado da Administração, que se mantém integrada no Ministério das Finanças.
As várias propostas aparecem arrumadas segundo três linhas de orientação: (i) facilitar a vida ao cidadão e às empresas, pela eliminação de documentos ou formalidades dispensáveis, horários diferenciados, cartão de cidadão multifuncional, novas "lojas do cidadão", etc.; (ii) melhorar a qualidade do serviço (maior autonomia organizativa dos ministérios, concentração física dos serviços, gestão por objectivos, avaliação do desempenho, etc.); (iii) tornar a administração "amiga da economia" (redução dos serviços, diminuição do pessoal, administração electrónica, etc.). O programa sugere a revisão de alguns pontos da reforma de Durão Barroso - por exemplo, na questão da livre nomeação dos dirigentes da administração (embora sem assumir um compromisso em favor da profissionalização e despartidarização desses cargos) -, mas também aposta na continuidade de outros pontos, incluindo a preferência geral pelo contrato individual de trabalho para o novo pessoal da administração, marginalizando definitivamente o regime da função pública, que ficará confinado às áreas relativas às funções de soberania. Doravante o funcionário público é uma espécie em vias de extinção...
Independentemente da orientação política dos governos, são relativamente consensuais as orientações da reforma/modernização da administração pública na actualidade: descentralização e desconcentração de tarefas, racionalização da organização administrativa, autonomia e responsabilidade dos serviços, definição clara de objectivos e meios, avaliação do desempenho, diferenciação pelo mérito, redução ou simplificação de formalidades e procedimentos, combate à morosidade das decisões, ênfase nos resultados, integração de métodos de gestão empresarial, centralidade dos utentes, adopção de formas e mecanismos de direito privado (em prejuízo dos tradicionais mecanismos próprios do direito administrativo).
Restam obviamente as questões politicamente menos pacíficas: por um lado, a definição "constitucional" dos fins e limites do Estado e, por outro lado, a opção sobre o papel da administração na realização daqueles - ou seja, saber se ela deve conservar, e até que ponto, as funções de produção e prestação directa de bens e serviços, ou se deve ter essencialmente um papel de regulador (regulamentação e supervisão), procedendo à concessão, delegação ou subcontratação das tarefas "operacionais" a entidades privadas. São estas, aliás, as questões fulcrais cuja resposta condiciona decisivamente toda a discussão sobre a reforma e/ou modernização da administração.

(Público, terça-feira, 22 de Março de 2005)

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