13 de março de 2005
Dez milhões de ministros
Se fosse possível repor os contadores a zero e reinventar as orgânicas governativas, pouco restaria do actual edifício. Num estado moderno, as incumbências da máquina pública organizar-se-iam de modo substancialmente distinto da matriz funcional que vigora na generalidade dos países. Esse lastro administrativo, sedimentado durante séculos de imobilismo, representa um forte constrangimento a montante, ao nível da fórmula governativa. Daí que a margem de manobra relativa ao número e às atribuições dos diferentes ministérios seja curta. Para mais, tendo-se instalado na cabeça de muitas corporações a ideia de que a tradição é para cumprir e que a importância que julgam ser-lhes historicamente devida se deve traduzir em pastas ministeriais. A agricultura, o turismo e o desporto são disso bons exemplos.
Não fora o previsível coro de protestos por parte das associações sectoriais e dos espíritos mais profundamente ligados à lavoura, o vetusto ministério da agricultura já poderia ter sido extinto e a sua mole de funcionários reconvertida ou drasticamente reduzida à dimensão do seu magro objecto de trabalho. Há muito tempo que o bom-senso e a boa gestão dos recursos públicos o recomendam, não porque a lavoura, a pecuária e a pastorícia não mereçam a consideração e o respeito dos poderes públicos, mas porque a sua relevância económica strictu sensu não justifica a manutenção de um estatuto político-administrativo autónomo. A especificidade das suas regras e mecanismos poderia ser tranquilamente acomodada no seio do ministério das actividades económicas, permitindo à fileira da terra e aos seus produtos - onde avultam os horto-frutículas, o vinho, o azeite, a cortiça e a floresta - uma integração racional com as componentes extra-rurais das políticas de desenvolvimento sectorial. Hoje, a agricultura não se basta no arado, na enxada e no lagar comunitário. Sem eficiência produtiva, qualidade, logística e marketing, não há azeite virgem, pêra rocha, alvarinho ou vitela de Lafões que resista ao duro teste dos mercados (nacionais e internacionais). A terra transformou-se num simples recurso económico.
Como era de prever, os agentes do turismo já manifestaram o seu desagrado pela extinção do "seu" ministério. Bastaram uns quantos meses de experiência autonómica, sem quaisquer resultados visíveis que não a captura do aparelho político pela indústria algarvia, para o sector reivindicar direitos adquiridos na estrutura governativa. É certo que o lazer e o turismo representam uma fatia considerável no produto nacional (talvez uns sete por cento, embora ninguém saiba ao certo), mas daí a ser necessário um ministério vai uma grande distância. Suspeito que no dia em que a orgânica do Estado tiver de obedecer a uma lógica de clusters económicos, muitos agentes turísticos ficarão surpreendidos com o posicionamento relativo do seu sector.
Iguais no enviezamento analítico, os agentes desportivos têm-se multiplicado em mensagens ao novo poder executivo. Curiosamente, são os gestores e os proprietários de sociedades anónimas desportivas quem mais se tem distinguido no verbo reivindicativo. Segundo eles, há nomes bons e nomes maus para tutelar a pasta, há políticas virtuosas (as que os favorecem) e políticas malignas (as que não lhes concedem privilégios), há anjos e demónios desportivos. Esquecem-se certamente de que o desporto profissional, que os norte-americanos classificam de sports entertainment, é um negócio como qualquer outro, pelo qual se bateram e justificaram a constituição de sociedades com fim lucrativo (as SAD), algumas delas cotadas em bolsa. O que será, então, que as distingue dos outros sectores da actividade económica? Numa palavra, nada. O que faria verdadeiramente sentido é que o futebol profissional, porque é disso que se trata, não tivesse tutela alguma. A coisa pública tem de se ocupar simplesmente das causas de interesse geral - o desporto amador, o desporto escolar, as selecções nacionais e os atletas olímpicos - e não da lógica dos negócios, por mais tribal que seja. O resto é economia pura.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 10 de Março de 2005
Não fora o previsível coro de protestos por parte das associações sectoriais e dos espíritos mais profundamente ligados à lavoura, o vetusto ministério da agricultura já poderia ter sido extinto e a sua mole de funcionários reconvertida ou drasticamente reduzida à dimensão do seu magro objecto de trabalho. Há muito tempo que o bom-senso e a boa gestão dos recursos públicos o recomendam, não porque a lavoura, a pecuária e a pastorícia não mereçam a consideração e o respeito dos poderes públicos, mas porque a sua relevância económica strictu sensu não justifica a manutenção de um estatuto político-administrativo autónomo. A especificidade das suas regras e mecanismos poderia ser tranquilamente acomodada no seio do ministério das actividades económicas, permitindo à fileira da terra e aos seus produtos - onde avultam os horto-frutículas, o vinho, o azeite, a cortiça e a floresta - uma integração racional com as componentes extra-rurais das políticas de desenvolvimento sectorial. Hoje, a agricultura não se basta no arado, na enxada e no lagar comunitário. Sem eficiência produtiva, qualidade, logística e marketing, não há azeite virgem, pêra rocha, alvarinho ou vitela de Lafões que resista ao duro teste dos mercados (nacionais e internacionais). A terra transformou-se num simples recurso económico.
Como era de prever, os agentes do turismo já manifestaram o seu desagrado pela extinção do "seu" ministério. Bastaram uns quantos meses de experiência autonómica, sem quaisquer resultados visíveis que não a captura do aparelho político pela indústria algarvia, para o sector reivindicar direitos adquiridos na estrutura governativa. É certo que o lazer e o turismo representam uma fatia considerável no produto nacional (talvez uns sete por cento, embora ninguém saiba ao certo), mas daí a ser necessário um ministério vai uma grande distância. Suspeito que no dia em que a orgânica do Estado tiver de obedecer a uma lógica de clusters económicos, muitos agentes turísticos ficarão surpreendidos com o posicionamento relativo do seu sector.
Iguais no enviezamento analítico, os agentes desportivos têm-se multiplicado em mensagens ao novo poder executivo. Curiosamente, são os gestores e os proprietários de sociedades anónimas desportivas quem mais se tem distinguido no verbo reivindicativo. Segundo eles, há nomes bons e nomes maus para tutelar a pasta, há políticas virtuosas (as que os favorecem) e políticas malignas (as que não lhes concedem privilégios), há anjos e demónios desportivos. Esquecem-se certamente de que o desporto profissional, que os norte-americanos classificam de sports entertainment, é um negócio como qualquer outro, pelo qual se bateram e justificaram a constituição de sociedades com fim lucrativo (as SAD), algumas delas cotadas em bolsa. O que será, então, que as distingue dos outros sectores da actividade económica? Numa palavra, nada. O que faria verdadeiramente sentido é que o futebol profissional, porque é disso que se trata, não tivesse tutela alguma. A coisa pública tem de se ocupar simplesmente das causas de interesse geral - o desporto amador, o desporto escolar, as selecções nacionais e os atletas olímpicos - e não da lógica dos negócios, por mais tribal que seja. O resto é economia pura.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 10 de Março de 2005