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7 de abril de 2005

Encruzilhada 

Se alguém imagina que o único remédio para evitar a fuga da indústria para oriente é a emulação das suas práticas sociais predatórias, dedique um pouco de tempo a analisar a mais recente medida laboral da Autoeuropa. A exemplo da casa-mãe, na Saxónia, a empresa criou uma unidade de prestação de serviços de outsourcing e insourcing, cujo quadro de pessoal é inteiramente composto por técnicos transferidos da Autoeuropa. A nova firma adoptou o nome da sua congénere alemã (Autovision) e vai brevemente iniciar a actividade com a produção do novo modelo descapotável da Volkswagen. A sua carteira de serviços, dentro e fora do universo Autoeuropa, passa pela selecção e recrutamento de pessoal temporário, logística e desenvolvimento de novos processos de trabalho. Será que esta virtuosa união de interesses entre o capital e o trabalho vai resistir às tentações mundanas? Por quanto tempo?

Aparentemente, a fórmula Autovision tem tudo (ou quase) para fazer os seus agentes felizes. A Volkswagen, porque reduz os encargos fixos com pessoal, passando a contar com um depósito de mão-de-obra e serviços à la carte. Os trabalhadores, porque não perdem o emprego (até ver). Os sindicatos, porque mantêm a sua influência (até ver). O Estado, porque não incorre em despesas sociais (até ver). Os analistas, porque vêem neste tipo de uniões de facto o moderno equilíbrio entre eficiência industrial, emprego e imprevisibilidade dos factores.

É, assim, sob uma aura de aprovação e aplauso pela inteligência do exercício, que as afirmações do director de recursos humanos da Autoeuropa - relatadas no Jornal de Negócios da passada segunda-feira - dão que pensar. Com alguma ingenuidade à mistura, Jaroslav Holecek considerou a criação da Autovision #uma verdadeira inovação no mercado português, onde não há flexibilidade". Descodifiquemos esta declaração. A interpretação mais linear, a mais maldosa, é que a pobre Volkswagen teve de consumir tempo e recursos para engendrar um mecanismo que contornasse a ausência de uma legislação laboral globalizante. De facto, se houvesse "flexibilidade" para quê toda esta maçada? Provavelmente, no país de origem do senhor Holecek a legislação é muito mais moderna e muito menos arreliadora para as entidades patronais - o trabalho é para comprar, usar e deitar fora como uma vulgar chiclete.

Há uma segunda interpretação, mais bondosa, para as palavras do dirigente da Autoeuropa. Suponhamos que as proferiu com um sorriso, ou mesmo piscando ironicamente o olho para a plateia. O que, na verdade, ele pretendia dizer é que a empresa deseja ser tão inovadora e respeitadora dos direitos sociais em Portugal como na Alemanha. E que essa história da rigidez do mercado de trabalho não passa de um mito - veja-se como, com imaginação e vontade, se fazem convergir interesses contraditórios e se encontram soluções com um mínimo de sustentabilidade.

Suspeito, porém, que a verdadeira mensagem da Autoeuropa está algures no meio destas duas leituras extremas. Enquanto o modelo social europeu se for aguentando, especialmente na Alemanha, ainda a Volkswagen se esforçará por manter as suas melhores unidades produtivas da Europa ocidental, desde que sejam encontradas soluções do tipo Autovision. Mas, se a discrepância entre os factores laborais a oeste e a leste se mantiver ou aumentar, dificilmente a marca alemã se deixará um dia comover com sentimentos de perda ou com novas benesses nas portagens da Brisa.

Ao certo, fica a desagradável sensação de nos encontrarmos numa encruzilhada. Prosseguir no caminho da "flexibilização" laboral significa o sacrifício de direitos adquiridos, perda de poder de compra e de qualidade de vida. Ora, mesmo que a maioria da população portuguesa esteja preparada para tempos difíceis, poucos terão a percepção de quão baixo teríamos de descer para nos igualarmos aos tigres leste-europeus e asiáticos. A esperança nos amanhãs mais competitivos tem limites que a globalização desconhece.

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 7 de Abril de 2005

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