29 de abril de 2005
Só peca por tardia
Por Vital Moreira
A limitação do número de mandatos dos titulares de cargos políticos é uma exigência republicana e democrática. Republicana, porque consubstancia o princípio da renovação no exercício do poder e impede a sua perpetuação. Democrática, porque fomenta a competição e a alternância política e amplia o poder de escolha dos eleitores. Pode discutir-se a amplitude dos cargos abrangidos e o número de mandatos admitidos, mas o princípio em si mesmo só merece aplausos e as opções tomadas pelo Governo na sua proposta, mesmo podendo ser diferentes, fazem todo o sentido.
A ideia da limitação temporal do exercício de cargos políticos provém da Constituição norte-americana, onde a restrição dos dois mandatos presidenciais (8 anos) foi incorporada por uma revisão constitucional posterior à longa presidência de Roosevelt. Tendo-se tornado uma medida comum nos regimes presidencialistas, ela foi acolhida também entre nós na Constituição de 1976, apesar da natureza não presidencialista do nosso sistema de governo. A limitação da duração do cargo de presidente da República a dois mandatos de 5 anos tornou-se um dos elementos pacíficos do nosso sistema constitucional, de tal modo que quando, no final do segundo mandato de Mário Soares (1995), alguém sugeriu uma alteração da Constituição para permitir um terceiro mandato, essa sugestão não obteve o menor apoio, pelo contrário.
Ninguém pode ter sérias dúvidas de que, caso não houvesse a proibição, nenhum dos três presidentes da República (Eanes, Soares e Sampaio) deixaria de ser reeleito no termo do seu segundo mandato. Então por que é que se justifica essa limitação ao direito de cadidatura? As razões são fundamentalmente duas, a saber: por um lado, impedir a permanência indefinida da mesma pessoa no mesmo cargo, obrigando a uma renovação periódica dos seus titulares; por outro lado, fomentar a competição política e a possibilidade de alternância, visto que os ocupantes de cargos políticos têm vantagens à partida na disputa eleitoral, por causa da sua maior visibilidade mediática e do apoio dos interesses que possam ter favorecido no exercício do cargo. Numa democracia republicana, a renovação, o rejuvenescimento, a competição e a alternância política são valores em si mesmos.
Adicionalmente a limitação de mandatos pode contribuir para a renovação e maior abertura dos próprios partidos políticos, dado que frequentemente os detentores do poder autárquico, regional e nacional acumulam a direcção partidária no respectivo nível territorial. No caso português parece indesmentível que os "dinossauros" do poder local e regional -- a nível nacional a longevidade política é bastante menor -- duplicam essa função com o comando das estruturas partidárias, muitas vezes à custa do seu anquilosamento. Quando a tendência para a personalização dos cargos políticos se tende a agravar, em prejuízo dos partidos e das doutrinas e opções políticas, a renovação dos titulares de cargos políticos pode ser um instrumento indispensável para melhorar a atracção da política e para travar o alheamento da vida política e das pugnas eleitorais.
Ao contrário do que alguns erradamente pressupõem, a limitação de mandatos não tem como objectivo principal nem específico a luta contra a corrupção. Mas mesmo nesse plano, parece evidente que a renovação dos titulares de cargos políticos pode dar uma ajuda através da periódica revisão de procedimentos estabelecidos e interesses instalados, bem como no escrutínio dos mandatos transcorridos, tanto mais que a renovação obrigatória pode provocar uma maior alternância política no poder, pondo fim a verdadeiras situações inexpugnáveis, seja ou não em virtude de situações de autoritarismo e de "défice democrático", como ocorre desde há muito tempo na Madeira. Nesse sentido, a renovação obrigatória de mandatos constitui um factor favorável a uma maior "accountability" democrática do poder.
Há quem critique o âmbito dos cargos abrangidos na proposta governamental, que compreendem os presidentes de todos os órgãos políticos executivos, desde os presidentes das juntas de freguesia ao primeiro-ministro. Mas ninguém pode acusar a propostas de incoerência, como seria por exemplo excluir o chefe do governo. De duas uma: ou se optava somente pelos presidentes que são de algum modo directamente eleitos (caso dos presidentes dos órgãos executivos locais), o que seria uma versão minimalista da limitação de mandatos, ou tinha de se abranger todos os chefes de órgãos executivos. Também há os que defendem que se deveria ir muito mais longe, abrangendo todos os membros dos órgãos executivos, desde os membros das juntas de freguesia aos ministros; e não falta mesmo quem entenda que se deveriam incluir os próprios membros das assembleias representativas, desde as assembleias de freguesia aos deputados da AR. Para além de se tratar em geral de propostas não sérias, destinadas somente a contestar por absurdo toda e qualquer mudança, é indiscutível que a lógica da renovação de mandatos não se aplica com a mesma razão e intensidade a essas categorias de agentes políticos, tão diferentes na sua visibilidade, no seu poder e influência e nas suas funções. Mesmo que, numa visão radical, também fosse defensável essa extensão, isso não apaga as diferenças de importância e mesmo de urgência em relação aos presidentes dos órgãos executivos.
Menos relevante é a controvérsia sobre o máximo de mandatos e de tempo admitidos, respectivamente três mandatos e 12 anos. Poder-se-ia ser mais ambicioso, mas a alternativa seria dois mandatos e 8 anos, o que pode ser uma limitação excessiva. Basta lembrar que no caso do Presidente da República o limite é de 10 anos (dois mandatos de 5 anos), não havendo razão forte para estabelecer um limite mais exigente para os demais titulares de cargos políticos que até agora têm estado sem limitação. Quando até agora se permitiam décadas pode ser excessivo reduzir para 8 anos.
Deve considerar-se positiva a mudança que o Governo fez na primeira versão do diploma, que não dava nenhum relevo ao número de mandatos já desempenhados. A contagem do tempo só contava a partir de agora, mesmo no caso de pessoas com mais de 12 anos no mesmo cargo, como sucede com muitos presidentes de câmara municipal e de junta de freguesia e com o presidente do governo regional da Madeira. A solução agora apresentada, permitindo nesses casos a acumulação de mais um mandato suplementar, além do mandato em curso, é perfeitamente razoável e proporcionada, mesmo em termos constitucionais. Não faria sentido permitir que quem já tem por exemplo 20 anos de exercício do mesmo cargo ainda pudesse acumular mais 12 anos, como se nunca lá tivesse estado.
A limitação de mandatos agora proposta -- resultado de uma reivindicação que vem de há muito tempo, vencendo resistências de toda a ordem -- deve considerar-se uma das mais meritórias peças da reforma do sistema político. Para os distraídos, torna-se aliás conveniente lembrar que essa ideia, estabelecida desde a origem em relação ao Presidente da República, tem entretanto feito o seu caminho progressivamente em relação a muitos outros cargos, nomeadamente os reitores das universidades, as entidades reguladoras independentes, os dirigentes dos institutos públicos, etc. Em certo sentidos ela está em vias de se transformar em princípio geral da nossa organização política e administrativa. Tal como a promoção da igualdade de género, fomentando uma crescente participação das mulheres no exercício de cargos políticos, a limitação de mandados é um elemento imprescindível de renovação, rejuvenescimento e maior alternância e participação na vida política e partidária.
(Público, 3ª feira, 19 de Abril de 2005)
A limitação do número de mandatos dos titulares de cargos políticos é uma exigência republicana e democrática. Republicana, porque consubstancia o princípio da renovação no exercício do poder e impede a sua perpetuação. Democrática, porque fomenta a competição e a alternância política e amplia o poder de escolha dos eleitores. Pode discutir-se a amplitude dos cargos abrangidos e o número de mandatos admitidos, mas o princípio em si mesmo só merece aplausos e as opções tomadas pelo Governo na sua proposta, mesmo podendo ser diferentes, fazem todo o sentido.
A ideia da limitação temporal do exercício de cargos políticos provém da Constituição norte-americana, onde a restrição dos dois mandatos presidenciais (8 anos) foi incorporada por uma revisão constitucional posterior à longa presidência de Roosevelt. Tendo-se tornado uma medida comum nos regimes presidencialistas, ela foi acolhida também entre nós na Constituição de 1976, apesar da natureza não presidencialista do nosso sistema de governo. A limitação da duração do cargo de presidente da República a dois mandatos de 5 anos tornou-se um dos elementos pacíficos do nosso sistema constitucional, de tal modo que quando, no final do segundo mandato de Mário Soares (1995), alguém sugeriu uma alteração da Constituição para permitir um terceiro mandato, essa sugestão não obteve o menor apoio, pelo contrário.
Ninguém pode ter sérias dúvidas de que, caso não houvesse a proibição, nenhum dos três presidentes da República (Eanes, Soares e Sampaio) deixaria de ser reeleito no termo do seu segundo mandato. Então por que é que se justifica essa limitação ao direito de cadidatura? As razões são fundamentalmente duas, a saber: por um lado, impedir a permanência indefinida da mesma pessoa no mesmo cargo, obrigando a uma renovação periódica dos seus titulares; por outro lado, fomentar a competição política e a possibilidade de alternância, visto que os ocupantes de cargos políticos têm vantagens à partida na disputa eleitoral, por causa da sua maior visibilidade mediática e do apoio dos interesses que possam ter favorecido no exercício do cargo. Numa democracia republicana, a renovação, o rejuvenescimento, a competição e a alternância política são valores em si mesmos.
Adicionalmente a limitação de mandatos pode contribuir para a renovação e maior abertura dos próprios partidos políticos, dado que frequentemente os detentores do poder autárquico, regional e nacional acumulam a direcção partidária no respectivo nível territorial. No caso português parece indesmentível que os "dinossauros" do poder local e regional -- a nível nacional a longevidade política é bastante menor -- duplicam essa função com o comando das estruturas partidárias, muitas vezes à custa do seu anquilosamento. Quando a tendência para a personalização dos cargos políticos se tende a agravar, em prejuízo dos partidos e das doutrinas e opções políticas, a renovação dos titulares de cargos políticos pode ser um instrumento indispensável para melhorar a atracção da política e para travar o alheamento da vida política e das pugnas eleitorais.
Ao contrário do que alguns erradamente pressupõem, a limitação de mandatos não tem como objectivo principal nem específico a luta contra a corrupção. Mas mesmo nesse plano, parece evidente que a renovação dos titulares de cargos políticos pode dar uma ajuda através da periódica revisão de procedimentos estabelecidos e interesses instalados, bem como no escrutínio dos mandatos transcorridos, tanto mais que a renovação obrigatória pode provocar uma maior alternância política no poder, pondo fim a verdadeiras situações inexpugnáveis, seja ou não em virtude de situações de autoritarismo e de "défice democrático", como ocorre desde há muito tempo na Madeira. Nesse sentido, a renovação obrigatória de mandatos constitui um factor favorável a uma maior "accountability" democrática do poder.
Há quem critique o âmbito dos cargos abrangidos na proposta governamental, que compreendem os presidentes de todos os órgãos políticos executivos, desde os presidentes das juntas de freguesia ao primeiro-ministro. Mas ninguém pode acusar a propostas de incoerência, como seria por exemplo excluir o chefe do governo. De duas uma: ou se optava somente pelos presidentes que são de algum modo directamente eleitos (caso dos presidentes dos órgãos executivos locais), o que seria uma versão minimalista da limitação de mandatos, ou tinha de se abranger todos os chefes de órgãos executivos. Também há os que defendem que se deveria ir muito mais longe, abrangendo todos os membros dos órgãos executivos, desde os membros das juntas de freguesia aos ministros; e não falta mesmo quem entenda que se deveriam incluir os próprios membros das assembleias representativas, desde as assembleias de freguesia aos deputados da AR. Para além de se tratar em geral de propostas não sérias, destinadas somente a contestar por absurdo toda e qualquer mudança, é indiscutível que a lógica da renovação de mandatos não se aplica com a mesma razão e intensidade a essas categorias de agentes políticos, tão diferentes na sua visibilidade, no seu poder e influência e nas suas funções. Mesmo que, numa visão radical, também fosse defensável essa extensão, isso não apaga as diferenças de importância e mesmo de urgência em relação aos presidentes dos órgãos executivos.
Menos relevante é a controvérsia sobre o máximo de mandatos e de tempo admitidos, respectivamente três mandatos e 12 anos. Poder-se-ia ser mais ambicioso, mas a alternativa seria dois mandatos e 8 anos, o que pode ser uma limitação excessiva. Basta lembrar que no caso do Presidente da República o limite é de 10 anos (dois mandatos de 5 anos), não havendo razão forte para estabelecer um limite mais exigente para os demais titulares de cargos políticos que até agora têm estado sem limitação. Quando até agora se permitiam décadas pode ser excessivo reduzir para 8 anos.
Deve considerar-se positiva a mudança que o Governo fez na primeira versão do diploma, que não dava nenhum relevo ao número de mandatos já desempenhados. A contagem do tempo só contava a partir de agora, mesmo no caso de pessoas com mais de 12 anos no mesmo cargo, como sucede com muitos presidentes de câmara municipal e de junta de freguesia e com o presidente do governo regional da Madeira. A solução agora apresentada, permitindo nesses casos a acumulação de mais um mandato suplementar, além do mandato em curso, é perfeitamente razoável e proporcionada, mesmo em termos constitucionais. Não faria sentido permitir que quem já tem por exemplo 20 anos de exercício do mesmo cargo ainda pudesse acumular mais 12 anos, como se nunca lá tivesse estado.
A limitação de mandatos agora proposta -- resultado de uma reivindicação que vem de há muito tempo, vencendo resistências de toda a ordem -- deve considerar-se uma das mais meritórias peças da reforma do sistema político. Para os distraídos, torna-se aliás conveniente lembrar que essa ideia, estabelecida desde a origem em relação ao Presidente da República, tem entretanto feito o seu caminho progressivamente em relação a muitos outros cargos, nomeadamente os reitores das universidades, as entidades reguladoras independentes, os dirigentes dos institutos públicos, etc. Em certo sentidos ela está em vias de se transformar em princípio geral da nossa organização política e administrativa. Tal como a promoção da igualdade de género, fomentando uma crescente participação das mulheres no exercício de cargos políticos, a limitação de mandados é um elemento imprescindível de renovação, rejuvenescimento e maior alternância e participação na vida política e partidária.
(Público, 3ª feira, 19 de Abril de 2005)