27 de abril de 2005
A teimosa confusão
Por Vital Moreira
No "Expresso" de sábado passado o ex-primeiro-ministro Santana Lopes defende esta tese: «Um dos grandes equívocos da Constituição ainda lá está: é a dualidade no seio do mesmo poder, o poder executivo, resultante da eleição por sufrágio universal e directo quer do primeiro-ministro quer do Presidente da República.»
Perante um texto destes ficamos a perceber não somente que Santana Lopes insiste em não entender por que foi varrido do poder mas também que persiste em confundir totalmente a natureza do sistema de governo constitucionalmente estabelecido entre nós. No momento em que se inicia um novo ciclo governativo caracterizado por mais uma, rara, maioria parlamentar monopartidária absoluta e pela próxima mudança de presidente da República, importa revisitar o tema.
Comecemos pela segunda parte da tese acima exposta. Não é simplesmente verdade que entre nós o primeiro-ministro seja eleito por sufrágio universal e directo, como o presidente da República. Não é assim constitucionalmente; não é assim politicamente, por mais que as eleições parlamentares se tenham vindo a personalizar crescentemente à volta dos "candidatos a primeiro-ministro". Como é próprio dos sistemas parlamentares, o chefe do governo é nomeado pelo chefe do Estado de acordo com os resultados eleitorais para o parlamento, ou melhor, de acordo com a composição parlamentar. Mas não tem que ser o líder do partido mais votado, se este não quiser ou não tiver condições para formar governo.
Aliás, se o primeiro-ministro fosse eleito directamente, como é que Santana Lopes tinha sido primeiro-ministro, ele que nem sequer se tinha submetido a eleições parlamentares? E como é que ele poderia ter defendido, como defendeu nas últimas eleições, que, no caso de o PS ganhar sem maioria absoluta e sem ter mais deputados do que a soma da coligação PSD-CDS, o Presidente da República deveria convidar o líder do PSD a formar governo, e não o líder do partido vencedor? Estranhamente, Santana Lopes vem afinal alinhar contraditoriamente com os que, principalmente à esquerda, defenderam no Verão passado que ele não deveria ser nomeado para chefe do Governo por não ter sido eleito para o cargo. O Presidente da República não se deixou impressionar com esse argumento; e mesmo que tivesse optado por convocar eleições nessa altura, não teria sido seguramente com base nele. Triunfou então a lógica genuinamente parlamentar do sistema de governo.
Não é menos abstrusa a primeira parte da tese do ex-primeiro-ministro, segunda a qual existe uma "dualidade no poder executivo", personificado cumulativamente pelo Presidente da República e pelo primeiro-ministro. Isto não passa de uma versão primária da tese semipresidencialista gaulesa, como se Portugal não passasse de uma reedição da V República Francesa. Nada mais longe da realidade, porém. Mesmo os que, entre nós, persistem em usar equivocamente a designação de "semipresidencialismo" têm o cuidado de apontar imediatamente as consideráveis diferenças do nosso sistema de governo em relação ao francês, que passam justamente pela missão e poderes do Presidente da República e pela sua relação com o Governo.
A diferença essencial reside em que em França o Presidente da República compartilha efectivamente do poder executivo com o Governo, havendo portanto uma bicefalia do executivo, que pode revestir versões divergentes, conforme haja ou não coincidência entre a maioria presidencial e a maioria parlamentar-governamental. O Presidente da República assume-se como líder da maioria política, estabelece as linhas de orientação do executivo, preside ao conselho de ministros, superintende ele mesmo nos assuntos de defesa e das relações externas. Não é por acaso que é ele quem participa nas reuniões do Conselho Europeu. Em caso de "coabitação" de maiorias divergentes, o Presidente vê comprometidas as suas funções de direcção política e reduzidas as demais, mas a lógica do sistema não se altera.
No caso português tudo é diferente. O Presidente da República não integra o poder executivo, que pertence exclusivamente ao Governo; não preside ao conselho de ministros; não lhe compete definir as grandes orientações do Governo; não tem competências privativas na área da defesa e das relações externas (ainda que os seus poderes institucionais sejam mais intensos nessas áreas). A noção de "maioria presidencial" é estranha à nossa conceptologia política, e não por acaso. O Presidente da República não é simultaneamente chefe do Estado e chefe de uma maioria partidária. Não existe portanto dualidade no poder executivo, nem o conceito francês de "coabitação" pode ser transposto para a nossa realidade político-constitucional, justamente por isso.
Um dos campos em que a diferença é notória tem a ver com a dissolução parlamentar. Em França a dissolução é um poder instrumental do PR para conseguir uma maioria parlamentar-governamental que lhe seja afecta, ou então para renovar ou reforçar a sua própria maioria parlamentar. Daí a frequência da dissolução imediatamente a seguir às eleições presidenciais, quando a maioria parlamentar existente seja divergente da nova maioria presidencial. A coabitação é considerada uma situação anómala, que deve ser eliminada sempre que possível. Entre nós nada disso sucede. Nenhum Presidente se considera autorizado a dissolver a AR só porque a maioria parlamentar é de outra área político-partidária. A dissolução parlamentar, ainda que constitucionalmente discricionária, só deve ser utilizada para superar crises políticas ou situações de grave degradação política e institucional, como sucedeu justamente na sua última edição.
O ex-primeiro-ministro perfilha a tese de que no seu segundo mandato os presidentes da República tudo fazem para favorecer o seu próprio campo político e para fazer a vida negra aos governos de cor diferente, incluindo a interrupção da legislatura e a convocação de eleições antecipadas. Ele próprio teria sido vítima desta insidiosa vocação por parte de Sampaio. Todavia, isto releva da pura cegueira política. Parece evidente para todos que não teria havido eleições antecipadas se Durão Barroso tivesse permanecido como primeiro-ministro ou se o próprio Santana Lopes não tivesse transformado o governo numa "nave de loucos" descomandada. Ele só foi vítima de si próprio, da sua patente incompetência e irresponsabilidade como primeiro-ministro. Para comprovar retroactivamente a sua tese do "desvio de poder" na dissolução parlamentar, ele vai ao ponto de apontar como exemplo a dissolução de 1985, pelo Presidente Eanes, que abriu caminho ao protagonismo (aliás efémero) do PRD. Mas trata-se de uma inaceitável mistificação. Houve dissolução não para pôr fim ao governo do bloco central, mas sim porque este foi derrubado pelo PSD de Cavaco Silva, aliás com a prestimosa ajuda de Santana Lopes, não deixando outra saída que não a antecipação de eleições. Haja memória, e já agora pudor...
Sempre fui avesso à leitura do nosso sistema de governo em chave semipresidencialista, que considero responsável pelos maiores equívocos. Se o nosso sistema de governo não é um típico sistema parlamentar -- embora o seja essencialmente --, as distorções não resultam de nenhuma mistura do modelo presidencialista, mas sim do papel do Presidente da República enquanto titular de um "quarto poder", a par dos três poderes clássicos, que evoca irresistivelmente o velho "poder moderador" de Benjamin Constant. Aquilo que no nosso sistema de governo não enquadra numa explicação puramente parlamentar tem menos a ver com a Constituição francesa (e ainda menos com a Constituição norte-americana) do que com a nossa Carta Constitucional de 1826 e com a própria Constituição de 1933, que aliás teve por fonte a primeira no que respeita ao desenho da função presidencial.
Ao fim de quase 30 anos de vigência -- uma já invejável estabilidade constitucional -- é tempo de deixar de olhar para Paris para compreender o sistema político da CRP de 1976.
(Publico, 3ª feira, 5 de Abril de 2005)
No "Expresso" de sábado passado o ex-primeiro-ministro Santana Lopes defende esta tese: «Um dos grandes equívocos da Constituição ainda lá está: é a dualidade no seio do mesmo poder, o poder executivo, resultante da eleição por sufrágio universal e directo quer do primeiro-ministro quer do Presidente da República.»
Perante um texto destes ficamos a perceber não somente que Santana Lopes insiste em não entender por que foi varrido do poder mas também que persiste em confundir totalmente a natureza do sistema de governo constitucionalmente estabelecido entre nós. No momento em que se inicia um novo ciclo governativo caracterizado por mais uma, rara, maioria parlamentar monopartidária absoluta e pela próxima mudança de presidente da República, importa revisitar o tema.
Comecemos pela segunda parte da tese acima exposta. Não é simplesmente verdade que entre nós o primeiro-ministro seja eleito por sufrágio universal e directo, como o presidente da República. Não é assim constitucionalmente; não é assim politicamente, por mais que as eleições parlamentares se tenham vindo a personalizar crescentemente à volta dos "candidatos a primeiro-ministro". Como é próprio dos sistemas parlamentares, o chefe do governo é nomeado pelo chefe do Estado de acordo com os resultados eleitorais para o parlamento, ou melhor, de acordo com a composição parlamentar. Mas não tem que ser o líder do partido mais votado, se este não quiser ou não tiver condições para formar governo.
Aliás, se o primeiro-ministro fosse eleito directamente, como é que Santana Lopes tinha sido primeiro-ministro, ele que nem sequer se tinha submetido a eleições parlamentares? E como é que ele poderia ter defendido, como defendeu nas últimas eleições, que, no caso de o PS ganhar sem maioria absoluta e sem ter mais deputados do que a soma da coligação PSD-CDS, o Presidente da República deveria convidar o líder do PSD a formar governo, e não o líder do partido vencedor? Estranhamente, Santana Lopes vem afinal alinhar contraditoriamente com os que, principalmente à esquerda, defenderam no Verão passado que ele não deveria ser nomeado para chefe do Governo por não ter sido eleito para o cargo. O Presidente da República não se deixou impressionar com esse argumento; e mesmo que tivesse optado por convocar eleições nessa altura, não teria sido seguramente com base nele. Triunfou então a lógica genuinamente parlamentar do sistema de governo.
Não é menos abstrusa a primeira parte da tese do ex-primeiro-ministro, segunda a qual existe uma "dualidade no poder executivo", personificado cumulativamente pelo Presidente da República e pelo primeiro-ministro. Isto não passa de uma versão primária da tese semipresidencialista gaulesa, como se Portugal não passasse de uma reedição da V República Francesa. Nada mais longe da realidade, porém. Mesmo os que, entre nós, persistem em usar equivocamente a designação de "semipresidencialismo" têm o cuidado de apontar imediatamente as consideráveis diferenças do nosso sistema de governo em relação ao francês, que passam justamente pela missão e poderes do Presidente da República e pela sua relação com o Governo.
A diferença essencial reside em que em França o Presidente da República compartilha efectivamente do poder executivo com o Governo, havendo portanto uma bicefalia do executivo, que pode revestir versões divergentes, conforme haja ou não coincidência entre a maioria presidencial e a maioria parlamentar-governamental. O Presidente da República assume-se como líder da maioria política, estabelece as linhas de orientação do executivo, preside ao conselho de ministros, superintende ele mesmo nos assuntos de defesa e das relações externas. Não é por acaso que é ele quem participa nas reuniões do Conselho Europeu. Em caso de "coabitação" de maiorias divergentes, o Presidente vê comprometidas as suas funções de direcção política e reduzidas as demais, mas a lógica do sistema não se altera.
No caso português tudo é diferente. O Presidente da República não integra o poder executivo, que pertence exclusivamente ao Governo; não preside ao conselho de ministros; não lhe compete definir as grandes orientações do Governo; não tem competências privativas na área da defesa e das relações externas (ainda que os seus poderes institucionais sejam mais intensos nessas áreas). A noção de "maioria presidencial" é estranha à nossa conceptologia política, e não por acaso. O Presidente da República não é simultaneamente chefe do Estado e chefe de uma maioria partidária. Não existe portanto dualidade no poder executivo, nem o conceito francês de "coabitação" pode ser transposto para a nossa realidade político-constitucional, justamente por isso.
Um dos campos em que a diferença é notória tem a ver com a dissolução parlamentar. Em França a dissolução é um poder instrumental do PR para conseguir uma maioria parlamentar-governamental que lhe seja afecta, ou então para renovar ou reforçar a sua própria maioria parlamentar. Daí a frequência da dissolução imediatamente a seguir às eleições presidenciais, quando a maioria parlamentar existente seja divergente da nova maioria presidencial. A coabitação é considerada uma situação anómala, que deve ser eliminada sempre que possível. Entre nós nada disso sucede. Nenhum Presidente se considera autorizado a dissolver a AR só porque a maioria parlamentar é de outra área político-partidária. A dissolução parlamentar, ainda que constitucionalmente discricionária, só deve ser utilizada para superar crises políticas ou situações de grave degradação política e institucional, como sucedeu justamente na sua última edição.
O ex-primeiro-ministro perfilha a tese de que no seu segundo mandato os presidentes da República tudo fazem para favorecer o seu próprio campo político e para fazer a vida negra aos governos de cor diferente, incluindo a interrupção da legislatura e a convocação de eleições antecipadas. Ele próprio teria sido vítima desta insidiosa vocação por parte de Sampaio. Todavia, isto releva da pura cegueira política. Parece evidente para todos que não teria havido eleições antecipadas se Durão Barroso tivesse permanecido como primeiro-ministro ou se o próprio Santana Lopes não tivesse transformado o governo numa "nave de loucos" descomandada. Ele só foi vítima de si próprio, da sua patente incompetência e irresponsabilidade como primeiro-ministro. Para comprovar retroactivamente a sua tese do "desvio de poder" na dissolução parlamentar, ele vai ao ponto de apontar como exemplo a dissolução de 1985, pelo Presidente Eanes, que abriu caminho ao protagonismo (aliás efémero) do PRD. Mas trata-se de uma inaceitável mistificação. Houve dissolução não para pôr fim ao governo do bloco central, mas sim porque este foi derrubado pelo PSD de Cavaco Silva, aliás com a prestimosa ajuda de Santana Lopes, não deixando outra saída que não a antecipação de eleições. Haja memória, e já agora pudor...
Sempre fui avesso à leitura do nosso sistema de governo em chave semipresidencialista, que considero responsável pelos maiores equívocos. Se o nosso sistema de governo não é um típico sistema parlamentar -- embora o seja essencialmente --, as distorções não resultam de nenhuma mistura do modelo presidencialista, mas sim do papel do Presidente da República enquanto titular de um "quarto poder", a par dos três poderes clássicos, que evoca irresistivelmente o velho "poder moderador" de Benjamin Constant. Aquilo que no nosso sistema de governo não enquadra numa explicação puramente parlamentar tem menos a ver com a Constituição francesa (e ainda menos com a Constituição norte-americana) do que com a nossa Carta Constitucional de 1826 e com a própria Constituição de 1933, que aliás teve por fonte a primeira no que respeita ao desenho da função presidencial.
Ao fim de quase 30 anos de vigência -- uma já invejável estabilidade constitucional -- é tempo de deixar de olhar para Paris para compreender o sistema político da CRP de 1976.
(Publico, 3ª feira, 5 de Abril de 2005)