12 de maio de 2005
Cumprir Bolonha
Por Vital Moreira
Das várias reformas legislativas pendentes sobre o ensino superior - implementação do processo de Bolonha, reforma do governo das universidades, carreira docente, etc. -, a mais urgente, e também a mais importante, é seguramente a primeira, não somente por se tratar de compromissos internacionais em que estamos atrasados, mas também pelo impacto que o processo de Bolonha tem sobre toda a arquitectura do ensino superior e sobre todos os seus protagonistas.
O elemento mais mediático da reforma de Bolonha tem a ver com o esquema dos graus académicos, obrigando a proporcionar um primeiro grau, com saídas profissionais, ao fim de três ou quatro anos, e um segundo grau (mestrado) ao fim de cinco anos, em conjunto. Exceptuam-se deste dualismo as formações, como a Medicina, que não se compadeçam com graus curtos e que exijam formações integradas de cinco ou seis anos, a que corresponderá um único grau (de mestrado).
A primeira desventura que poderia suceder ao processo de Bolonha seria supor que tudo se resume em decidir se o 1º grau deve ter a duração de três ou de quatro anos, ou se deve haver soluções diferenciadas. Bolonha é muito mais do que isso. A segunda desventura seria deixar essas decisões em auto-regulação às escolas e às profissões. Penso não ser demasiado pessimista se considerar que essa seria a receita para desperdiçar a grande oportunidade de reforma do ensino superior que Bolonha proporciona. Seria enorme a pressão para excepcionar o regime dos dois graus e multiplicar os casos de mestrados integrados (sem grau de 1º ciclo); para alinhar por cima a formação do 1.º ciclo, exigindo quatro anos de formação; para limitar ao mínimo as actividades profissionais cujo exercício seja acessível ao primeiro grau; e para não mudar mais do que o mínimo na organização dos cursos e nas matérias neles incluídas, tentando "encabidar" em quatro anos o que actualmente se lecciona em cinco anos, dificultando desse modo, em vez de facilitar, a formação superior de base.
A meu ver, o processo de Bolonha constitui uma ocasião única para: (i) aumentar substancialmente o número de pessoas com formação superior em Portugal, diminuindo o fosso que nos separa da média europeia; (ii) reduzir substancialmente a taxa de insucesso e de abandono no ensino superior, particularmente evidente nas formações de longa duração de acesso aberto, possibilitando a obtenção de um grau académico no mais curto tempo necessário, relevante em termos de saídas profissionais; (iii) facilitar o acesso a certas profissões onde os interesses corporativos fizeram elevar excessivamente os requisitos de formação académica; (iv) permitir aos jovens graduados entrar mais cedo na vida profissional, munidos de um grau de curta duração, mantendo a possibilidade de regressar mais tarde para obter um grau mais elevado, beneficiando inclusive dos créditos obtidos na actividade profissional; (v) e por fim maximizar as possibilidades de mobilidade entre escolas do mesmo país ou de países diferentes, e contribuir para a maior convergência possível a nível europeu dos graus nas mesmas áreas de formação e dos requisitos académicos para o exercício das mesmas profissões.
Ora, verificando as propostas dos diferentes grupos de trabalho constituídos na vigência do anterior governo, verifica-se a resistência de algumas áreas tradicionais do ensino universitário em aceitarem um grau de 1º ciclo, sendo o caso mais evidente o de Direito. Revela-se igualmente uma grande dificuldade em aceitar que o 1º ciclo tenha a duração de apenas três anos, havendo muitas propostas no sentido dos quatro anos, com algumas soluções híbridas em que esse grau teria de ser completado por um ano adicional de formação pós-graduada, para possibilitar o acesso a uma profissão. Por último, é notória a resistência em definir as profissões ou actividades profissionais a que daria acesso o grau de 1º ciclo, tudo se passando como se todas as actividades profissionais que hoje exigem formação longa (as actuais licenciaturas de cinco anos) continuassem a ser acessíveis somente com uma formação de segundo ciclo (mestrado), a qual aliás passa a ser mais exigente, por causa dissertação final. Desse modo, em vez de facilitar o acesso às profissões, a implementação de Bolonha contribuiria para a dificultar ainda mais em algumas áreas!
Penso que a implementação de Bolonha pressupõe uma definição das saídas profissionais para o grau de 1º ciclo, pelo menos no que diz respeito às profissões reguladas, não podendo essa tarefa ser deixada à auto-regulação das organizações profissionais e das escolas. Trata-se de uma tarefa pública, que o Estado não pode nem deve alienar, se bem que deva ser desempenhada com a maior participação dos interessados. De outro modo, seria de prever que praticamente nenhuma actividade profissional fosse acessível por via da formação básica do ensino superior, para além daquelas que já estão abertas aos portadores de bacharelato do ensino politécnico. Por aqui passa um dos grandes testes do processo de Bolonha. A partir do momento em que deixe assentar sem contestação a ideia de que em certas áreas não há saídas profissionais para uma formação de primeiro ciclo - apesar dos exemplos em contrário de outros países -, isso é sinal de que as corporações e o malthusianismo profissional, por um lado, e autocomplacência académica, por outro lado, terão levado a melhor.
Entendo também que a duração do primeiro ciclo (três ou quatro anos) não deve ser deixada livremente às escolas e às profissões, pelo menos se não forem removidos ou contrariados os factores que inexoravelmente levarão à escolha do período mais longo. E são vários esses factores: primeiro, há a tendência para mexer o menos possível nos planos de curso, dado que a solução 3+2 obrigaria a desenhar um primeiro ciclo "novinho em folha", enquanto a solução 4+1 premeia a inércia e favorece o imobilismo, bastando algumas adaptações menores dos programas em vigor; segundo, há a vontade dos reitores, por razões financeiras, de manter o máximo de estudantes durante o máximo de tempo, impedindo a saída prematura e a perda de receitas que um ciclo de três anos implicaria; terceiro, há o temor de muitos professores em relação à perda de lugares, se o 1º ciclo, com mais alunos, ocupasse três anos somente.
Não é por acaso que o CRUP (conselho de reitores) se pronunciou inicialmente por uma solução 4+2, que não tinha cabimento no esquema de Bolonha, e continue a dar preferência à solução de 4 anos para o 1º ciclo. E também não admira que as ordens e demais organismos profissionais, sempre temerosas da invasão de novos graduados, prefiram maioritariamente aquela solução, em vez de aceitarem uma diferenciação entre as actividades profissionais para cujo exercício é suficiente um grau de curta duração e aquelas que, sendo mais exigentes, devem continuar a exigir uma formação de 2º grau, aliás agora majorada (mestrado).
Desde o princípio que me manifestei no sentido de uma solução 3+2 em relação a todos os cursos, tanto no ensino universitário como no politécnico, ressalvadas as áreas em que, excepcionalmente, se impõe um único grau de mestrado integrado. Entre as razões dessa preferência está o facto de desde há muito termos entre nós essa solução, no ensino politécnico, sem que se tenha provado que as formações de curta duração não sejam prestáveis, correndo-se o risco de, alterando o paradigma da duração dos graus, assistirmos também a uma corrida do ensino politécnico para os quatro anos no 1.º ciclo, o que seria um lamentável retrocesso. Acresce que, estando nós atrasados na implementação do processo de Bolonha, dá agora para ver que a solução 3+2 é aquela que foi adoptada por maior número de países.
Está desencadeado o processo legislativo para implementar o processo de Bolonha, começando pela necessária alteração da lei de bases. As soluções a adoptar depois não devem ser necessariamente as que interessam imediatamente às escolas e às profissões, mas sim as que interessam sobretudo ao progresso do ensino superior e ao desenvolvimento do país. Professor universitário
(Publico, 3ª feira, 10 de Maio de 2005)
Das várias reformas legislativas pendentes sobre o ensino superior - implementação do processo de Bolonha, reforma do governo das universidades, carreira docente, etc. -, a mais urgente, e também a mais importante, é seguramente a primeira, não somente por se tratar de compromissos internacionais em que estamos atrasados, mas também pelo impacto que o processo de Bolonha tem sobre toda a arquitectura do ensino superior e sobre todos os seus protagonistas.
O elemento mais mediático da reforma de Bolonha tem a ver com o esquema dos graus académicos, obrigando a proporcionar um primeiro grau, com saídas profissionais, ao fim de três ou quatro anos, e um segundo grau (mestrado) ao fim de cinco anos, em conjunto. Exceptuam-se deste dualismo as formações, como a Medicina, que não se compadeçam com graus curtos e que exijam formações integradas de cinco ou seis anos, a que corresponderá um único grau (de mestrado).
A primeira desventura que poderia suceder ao processo de Bolonha seria supor que tudo se resume em decidir se o 1º grau deve ter a duração de três ou de quatro anos, ou se deve haver soluções diferenciadas. Bolonha é muito mais do que isso. A segunda desventura seria deixar essas decisões em auto-regulação às escolas e às profissões. Penso não ser demasiado pessimista se considerar que essa seria a receita para desperdiçar a grande oportunidade de reforma do ensino superior que Bolonha proporciona. Seria enorme a pressão para excepcionar o regime dos dois graus e multiplicar os casos de mestrados integrados (sem grau de 1º ciclo); para alinhar por cima a formação do 1.º ciclo, exigindo quatro anos de formação; para limitar ao mínimo as actividades profissionais cujo exercício seja acessível ao primeiro grau; e para não mudar mais do que o mínimo na organização dos cursos e nas matérias neles incluídas, tentando "encabidar" em quatro anos o que actualmente se lecciona em cinco anos, dificultando desse modo, em vez de facilitar, a formação superior de base.
A meu ver, o processo de Bolonha constitui uma ocasião única para: (i) aumentar substancialmente o número de pessoas com formação superior em Portugal, diminuindo o fosso que nos separa da média europeia; (ii) reduzir substancialmente a taxa de insucesso e de abandono no ensino superior, particularmente evidente nas formações de longa duração de acesso aberto, possibilitando a obtenção de um grau académico no mais curto tempo necessário, relevante em termos de saídas profissionais; (iii) facilitar o acesso a certas profissões onde os interesses corporativos fizeram elevar excessivamente os requisitos de formação académica; (iv) permitir aos jovens graduados entrar mais cedo na vida profissional, munidos de um grau de curta duração, mantendo a possibilidade de regressar mais tarde para obter um grau mais elevado, beneficiando inclusive dos créditos obtidos na actividade profissional; (v) e por fim maximizar as possibilidades de mobilidade entre escolas do mesmo país ou de países diferentes, e contribuir para a maior convergência possível a nível europeu dos graus nas mesmas áreas de formação e dos requisitos académicos para o exercício das mesmas profissões.
Ora, verificando as propostas dos diferentes grupos de trabalho constituídos na vigência do anterior governo, verifica-se a resistência de algumas áreas tradicionais do ensino universitário em aceitarem um grau de 1º ciclo, sendo o caso mais evidente o de Direito. Revela-se igualmente uma grande dificuldade em aceitar que o 1º ciclo tenha a duração de apenas três anos, havendo muitas propostas no sentido dos quatro anos, com algumas soluções híbridas em que esse grau teria de ser completado por um ano adicional de formação pós-graduada, para possibilitar o acesso a uma profissão. Por último, é notória a resistência em definir as profissões ou actividades profissionais a que daria acesso o grau de 1º ciclo, tudo se passando como se todas as actividades profissionais que hoje exigem formação longa (as actuais licenciaturas de cinco anos) continuassem a ser acessíveis somente com uma formação de segundo ciclo (mestrado), a qual aliás passa a ser mais exigente, por causa dissertação final. Desse modo, em vez de facilitar o acesso às profissões, a implementação de Bolonha contribuiria para a dificultar ainda mais em algumas áreas!
Penso que a implementação de Bolonha pressupõe uma definição das saídas profissionais para o grau de 1º ciclo, pelo menos no que diz respeito às profissões reguladas, não podendo essa tarefa ser deixada à auto-regulação das organizações profissionais e das escolas. Trata-se de uma tarefa pública, que o Estado não pode nem deve alienar, se bem que deva ser desempenhada com a maior participação dos interessados. De outro modo, seria de prever que praticamente nenhuma actividade profissional fosse acessível por via da formação básica do ensino superior, para além daquelas que já estão abertas aos portadores de bacharelato do ensino politécnico. Por aqui passa um dos grandes testes do processo de Bolonha. A partir do momento em que deixe assentar sem contestação a ideia de que em certas áreas não há saídas profissionais para uma formação de primeiro ciclo - apesar dos exemplos em contrário de outros países -, isso é sinal de que as corporações e o malthusianismo profissional, por um lado, e autocomplacência académica, por outro lado, terão levado a melhor.
Entendo também que a duração do primeiro ciclo (três ou quatro anos) não deve ser deixada livremente às escolas e às profissões, pelo menos se não forem removidos ou contrariados os factores que inexoravelmente levarão à escolha do período mais longo. E são vários esses factores: primeiro, há a tendência para mexer o menos possível nos planos de curso, dado que a solução 3+2 obrigaria a desenhar um primeiro ciclo "novinho em folha", enquanto a solução 4+1 premeia a inércia e favorece o imobilismo, bastando algumas adaptações menores dos programas em vigor; segundo, há a vontade dos reitores, por razões financeiras, de manter o máximo de estudantes durante o máximo de tempo, impedindo a saída prematura e a perda de receitas que um ciclo de três anos implicaria; terceiro, há o temor de muitos professores em relação à perda de lugares, se o 1º ciclo, com mais alunos, ocupasse três anos somente.
Não é por acaso que o CRUP (conselho de reitores) se pronunciou inicialmente por uma solução 4+2, que não tinha cabimento no esquema de Bolonha, e continue a dar preferência à solução de 4 anos para o 1º ciclo. E também não admira que as ordens e demais organismos profissionais, sempre temerosas da invasão de novos graduados, prefiram maioritariamente aquela solução, em vez de aceitarem uma diferenciação entre as actividades profissionais para cujo exercício é suficiente um grau de curta duração e aquelas que, sendo mais exigentes, devem continuar a exigir uma formação de 2º grau, aliás agora majorada (mestrado).
Desde o princípio que me manifestei no sentido de uma solução 3+2 em relação a todos os cursos, tanto no ensino universitário como no politécnico, ressalvadas as áreas em que, excepcionalmente, se impõe um único grau de mestrado integrado. Entre as razões dessa preferência está o facto de desde há muito termos entre nós essa solução, no ensino politécnico, sem que se tenha provado que as formações de curta duração não sejam prestáveis, correndo-se o risco de, alterando o paradigma da duração dos graus, assistirmos também a uma corrida do ensino politécnico para os quatro anos no 1.º ciclo, o que seria um lamentável retrocesso. Acresce que, estando nós atrasados na implementação do processo de Bolonha, dá agora para ver que a solução 3+2 é aquela que foi adoptada por maior número de países.
Está desencadeado o processo legislativo para implementar o processo de Bolonha, começando pela necessária alteração da lei de bases. As soluções a adoptar depois não devem ser necessariamente as que interessam imediatamente às escolas e às profissões, mas sim as que interessam sobretudo ao progresso do ensino superior e ao desenvolvimento do país. Professor universitário
(Publico, 3ª feira, 10 de Maio de 2005)