5 de maio de 2005
Ensino básico a tempo inteiro
Por Vital Moreira
Se tivesse de destacar uma das providências anunciadas pelo novo Governo em várias áreas - desde a liberalização da venda de medicamentos que não estão sujeitos a receita médica até à redução das férias judiciais - eu seleccionaria o alargamento do horário de funcionamento das escolas do 1º ciclo do ensino básico, até às 17h30. Parece pouca coisa, mas pode ser uma pequena revolução.
Há dois argumentos essenciais a favor dessa ampliação. Primeiro, a escola primária não deve ser somente um espaço de leccionação, mas também um espaço de estudo e de actividades lúdicas. Há muitas crianças que não dispõem em casa de condições de estudo adequadas. A escola pode e deve ser uma plataforma de fomento da igualdade de oportunidades quando ao acesso a livros e outros instrumentos de estudo, incluindo computadores, de que só uma parte dos alunos pode dispor em casa. Segundo, numa sociedade em que ambos os progenitores muitas vezes trabalham, a escola pode e deve ser o espaço de ocupação e de socialização das crianças enquanto os pais estão no emprego. Por isso, aliás, a medida peca por defeito, devendo ser alargada de modo a reter os alunos até que os pais possam buscar os filhos depois do seu horário de trabalho.
O horário reduzido das escolas do 1º ciclo do ensino básico, levado ao extremo nos casos de funcionamento em dois turnos, ocupando cada um deles somente uma manhã ou uma tarde, constitui um dos grandes factores de discriminação social e de privatização furtiva desse grau de ensino. Discriminação social, por um lado, visto que são as famílias em que ambos os progenitores trabalham que mais dificuldades têm em compatibilizar a sua ocupação com a escola dos filhos, se não tiverem meios para contratar uma empregada doméstica para cuidar deles até ao seu regresso do trabalho. Privatização furtiva, por outro lado, dado que essa limitação força muitas famílias a optar por escolas privadas para os filhos, com os inerentes encargos adicionais, para poderem garantir a sua ocupação na escola enquanto os pais se encontram no trabalho.
É evidente que as famílias são livres de preferir escolas privadas às escolas públicas, por várias razões (busca de um ensino de elite, motivos religiosos, indisponibilidade dos pais, dificuldades dos alunos, etc.), arcando com as respectivas despesas suplementares. Isso faz parte da liberdade de ensino, constitucionalmente garantida. Diferente disso é forçar as pessoas a escolher escolas privadas só porque as escolas públicas não preenchem requisitos mínimos de horários, de meios disponíveis, ou de qualidade adequada. Isso traduz uma incapacidade do Estado para cumprir as suas obrigações constitucionais em matéria de direito ao ensino público. Entre nós, a escola privada é uma liberdade, a escola pública um direito.
Sabe-se bem, infelizmente, que o desvio da escola pública não tem a ver somente com questões de horário, mas também com questões de qualidade e de disciplina. Existem relatos inquietantes de incompetência de professores (incluindo em Português), de indisciplina e de insegurança. Todas estas vertentes têm de ser encaradas se se quiser fazer da escola pública aquilo que ela deve ser, ou seja, um espaço de aprendizagem e de formação, de integração e de coesão social e de igualdade de oportunidades. Não pode consentir-se passivamente a degradação das escolas do ensino público básico, deixando-o transformar progressivamente num ensino "de segunda", destinado aos que não têm possibilidades de frequentar as escolas privadas de melhor qualidade.
Não podemos continuar a assistir à "brasileirização" do ensino público básico e secundário. De facto, é sabido que no Brasil a baixa qualidade do ensino público torna-o um gueto dos filhos dos mais pobres, que não podem suportar os elevados custos das escolas privadas, com a consequência de que no fim do ensino secundário a maior parte dos alunos do ensino público não têm qualquer possibilidade de aceder às universidades públicas, mesmo que estas sejam as de melhor qualidade e sejam gratuitas (mesmo para a formação pós-graduada!). Se os filhos dos menos abastados quiserem frequentar o ensino superior têm de ir para universidade privadas, de muito pior qualidade e muito caras. É uma total inversão dos princípios da justiça social. O Estado não investe no ensino público básico e secundário, que é frequentado pelos mais pobres, e depois sustenta integralmente as universidades, quase exclusivamente reservadas para a elite social que pode pagar o ensino básico e secundário privado. Penalização dos pobres, privilégio dos ricos.
Só existe um meio de evitar o desenvolvimento entre nós de um "apartheid" social semelhante, que é investir adequadamente na universalidade e na qualidade do ensino público básico e secundário. Não se trata somente de uma imposição constitucional, mas também de uma elementar exigência de equidade social. A escola pública é um valor em si mesma, enquanto espaço não confessional de pluralismo social e cultural, de neutralidade política e ideológica, de inclusão e convivência cívica.
O anúncio da referida medida governamental suscitou imediatamente a reacção negativa dos sindicatos do sector. Vieram logo os "direitos adquiridos" e a necessidade de compensação financeira pelo trabalho acrescido. Ora, que se saiba, o que não falta são professores vinculados sem horário distribuído ou com horário reduzido, até pelo encerramento de muitas escolas, sobretudo no interior, por falta de alunos. E há também o horário não lectivo dos professores, que não poderia ter melhor utilização do que cuidar dos alunos na escola para além das aulas. É sabido que os professores do ensino básico são comparativamente dos mais bem remunerados da Europa. O mínimo que se pode esperar é que não tenham de receber suplemento de vencimento pelo cumprimento das suas obrigações normais.
O funcionamento alargado das escolas do 1º ciclo do ensino básico é uma providência de elementar racionalidade, que só perde pela demora na sua implementação. Urge tomar as medidas adequadas, incluindo as necessárias mexidas no ordenamento da rede escolar e no regime laboral dos professores e demais pessoal. As escolas existem para os alunos e não para os professores.
(Público, 3ª feira, 3 de Maio de 2005)
Se tivesse de destacar uma das providências anunciadas pelo novo Governo em várias áreas - desde a liberalização da venda de medicamentos que não estão sujeitos a receita médica até à redução das férias judiciais - eu seleccionaria o alargamento do horário de funcionamento das escolas do 1º ciclo do ensino básico, até às 17h30. Parece pouca coisa, mas pode ser uma pequena revolução.
Há dois argumentos essenciais a favor dessa ampliação. Primeiro, a escola primária não deve ser somente um espaço de leccionação, mas também um espaço de estudo e de actividades lúdicas. Há muitas crianças que não dispõem em casa de condições de estudo adequadas. A escola pode e deve ser uma plataforma de fomento da igualdade de oportunidades quando ao acesso a livros e outros instrumentos de estudo, incluindo computadores, de que só uma parte dos alunos pode dispor em casa. Segundo, numa sociedade em que ambos os progenitores muitas vezes trabalham, a escola pode e deve ser o espaço de ocupação e de socialização das crianças enquanto os pais estão no emprego. Por isso, aliás, a medida peca por defeito, devendo ser alargada de modo a reter os alunos até que os pais possam buscar os filhos depois do seu horário de trabalho.
O horário reduzido das escolas do 1º ciclo do ensino básico, levado ao extremo nos casos de funcionamento em dois turnos, ocupando cada um deles somente uma manhã ou uma tarde, constitui um dos grandes factores de discriminação social e de privatização furtiva desse grau de ensino. Discriminação social, por um lado, visto que são as famílias em que ambos os progenitores trabalham que mais dificuldades têm em compatibilizar a sua ocupação com a escola dos filhos, se não tiverem meios para contratar uma empregada doméstica para cuidar deles até ao seu regresso do trabalho. Privatização furtiva, por outro lado, dado que essa limitação força muitas famílias a optar por escolas privadas para os filhos, com os inerentes encargos adicionais, para poderem garantir a sua ocupação na escola enquanto os pais se encontram no trabalho.
É evidente que as famílias são livres de preferir escolas privadas às escolas públicas, por várias razões (busca de um ensino de elite, motivos religiosos, indisponibilidade dos pais, dificuldades dos alunos, etc.), arcando com as respectivas despesas suplementares. Isso faz parte da liberdade de ensino, constitucionalmente garantida. Diferente disso é forçar as pessoas a escolher escolas privadas só porque as escolas públicas não preenchem requisitos mínimos de horários, de meios disponíveis, ou de qualidade adequada. Isso traduz uma incapacidade do Estado para cumprir as suas obrigações constitucionais em matéria de direito ao ensino público. Entre nós, a escola privada é uma liberdade, a escola pública um direito.
Sabe-se bem, infelizmente, que o desvio da escola pública não tem a ver somente com questões de horário, mas também com questões de qualidade e de disciplina. Existem relatos inquietantes de incompetência de professores (incluindo em Português), de indisciplina e de insegurança. Todas estas vertentes têm de ser encaradas se se quiser fazer da escola pública aquilo que ela deve ser, ou seja, um espaço de aprendizagem e de formação, de integração e de coesão social e de igualdade de oportunidades. Não pode consentir-se passivamente a degradação das escolas do ensino público básico, deixando-o transformar progressivamente num ensino "de segunda", destinado aos que não têm possibilidades de frequentar as escolas privadas de melhor qualidade.
Não podemos continuar a assistir à "brasileirização" do ensino público básico e secundário. De facto, é sabido que no Brasil a baixa qualidade do ensino público torna-o um gueto dos filhos dos mais pobres, que não podem suportar os elevados custos das escolas privadas, com a consequência de que no fim do ensino secundário a maior parte dos alunos do ensino público não têm qualquer possibilidade de aceder às universidades públicas, mesmo que estas sejam as de melhor qualidade e sejam gratuitas (mesmo para a formação pós-graduada!). Se os filhos dos menos abastados quiserem frequentar o ensino superior têm de ir para universidade privadas, de muito pior qualidade e muito caras. É uma total inversão dos princípios da justiça social. O Estado não investe no ensino público básico e secundário, que é frequentado pelos mais pobres, e depois sustenta integralmente as universidades, quase exclusivamente reservadas para a elite social que pode pagar o ensino básico e secundário privado. Penalização dos pobres, privilégio dos ricos.
Só existe um meio de evitar o desenvolvimento entre nós de um "apartheid" social semelhante, que é investir adequadamente na universalidade e na qualidade do ensino público básico e secundário. Não se trata somente de uma imposição constitucional, mas também de uma elementar exigência de equidade social. A escola pública é um valor em si mesma, enquanto espaço não confessional de pluralismo social e cultural, de neutralidade política e ideológica, de inclusão e convivência cívica.
O anúncio da referida medida governamental suscitou imediatamente a reacção negativa dos sindicatos do sector. Vieram logo os "direitos adquiridos" e a necessidade de compensação financeira pelo trabalho acrescido. Ora, que se saiba, o que não falta são professores vinculados sem horário distribuído ou com horário reduzido, até pelo encerramento de muitas escolas, sobretudo no interior, por falta de alunos. E há também o horário não lectivo dos professores, que não poderia ter melhor utilização do que cuidar dos alunos na escola para além das aulas. É sabido que os professores do ensino básico são comparativamente dos mais bem remunerados da Europa. O mínimo que se pode esperar é que não tenham de receber suplemento de vencimento pelo cumprimento das suas obrigações normais.
O funcionamento alargado das escolas do 1º ciclo do ensino básico é uma providência de elementar racionalidade, que só perde pela demora na sua implementação. Urge tomar as medidas adequadas, incluindo as necessárias mexidas no ordenamento da rede escolar e no regime laboral dos professores e demais pessoal. As escolas existem para os alunos e não para os professores.
(Público, 3ª feira, 3 de Maio de 2005)