11 de junho de 2005
Dez anos depois
Quando a meio da década de noventa começámos a estudar o problema de endividamento dos consumidores, a nossa preocupação principal era a de compreender as causas sistémicas que estavam na origem da ?colonização? do sistema judicial pela cobrança de dívidas. A solução tinha de ser procurada a montante, fazendo diminuir a procura ou desviando-a para outras instâncias de resolução de litígios, e não apenas na reforma do sistema.
Na verdade, a liberalização do sistema financeiro, a democratização do acesso ao crédito, a descida das taxas de juro, a estabilidade da zona euro e o aumento dos salários reais permitiam perceber que o fenómeno do endividamento iria ampliar-se a um ritmo muito acelerado. Não era uma questão conjuntural, tocando fugazmente consumidores deslumbrados por uma súbita folga no rendimento disponível. Tinha causas difíceis de remover, como a ausência de um mercado de arrendamento, que fazia do crédito para a aquisição de habitação a parte principal do endividamento. Reflectia, além disso, uma mudança nas atitudes, valores e estilos de vida das famílias urbanas, particularmente nas áreas metropolitanas. Essa mudança viria para ficar e não era o reflexo de uma suposta ?irresponsabilidade? de um qualquer governo, como se veio a provar.
Nesses anos dourados do consumo, o sobreendividamento não era um problema. A palavra era quase desconhecida e os estudos sobre o fenómeno praticamente inexistentes em Portugal. Não havia estatísticas onde elas deveriam estar a ser preparadas (no Banco de Portugal e no INE) o que, de resto, continua a acontecer.
Seguindo uma tradição que nos é própria, resolveu-se então responder ao problema pelo lado mais fácil, começando pelo fim, em vez de ser pelo princípio. Anunciou-se uma lei para a reestruturação das dívidas dos sobreendividados. Não se sabia quantos eram e tudo indicava até que não seriam muitos. Pior do que isso. O projecto que então circulou e que não chegou a ser finalizado previa um processo judicial complexo, caro na sua implementação e com toda a probabilidade de ser excessivamente moroso na resolução de um problema que por definição não se compadece com grandes atrasos.
Num colóquio internacional que então organizámos em Coimbra, saudámos a atenção dada pelo Governo ao problema, mas criticámos a solução proposta, sugerindo algumas alternativas para a gestão do risco do sobreendividamento. Desenvolver de forma organizada e interactiva a observação, a prevenção e a reestruturação, no caso de excesso de dívidas não solváveis, foi o caminho que nos pareceu mais adequado.
A observação permitiria obter e analisar a informação sobre o problema, identificar os perfis de risco, propor medidas, monitorizá-las e avaliá-las. Deveria ser repartida por uma rede povoada de diferentes entidades, desde as que podem recolher informação estatística, às mais vocacionadas para estudos qualitativos.
A prevenção, por sua vez, incluiria várias frentes de batalha: desde um código de conduta para instituições de crédito, à transparência da informação, com especial relevo para a educação financeira. Sustentámos, então, que era na prevenção que deveria incidir a maior atenção das instituições responsáveis pela defesa do consumidor.
Aconselhava-se, ainda, que se pensasse no remédio e que o processo de reestruturação das dívidas, em caso de sobreendividamento, incluísse sempre uma hipótese prévia de mediação, de preferência desjudicializada..
Entre 1998 e 2002, ainda se iniciou algum trabalho. Com a mudança de governo a questão foi enterrada, mas de nada valeu ignorar o problema. Nem a recessão fez travar o aumento contínuo da taxa de endividamento nos anos que se seguiram.
Assim chegámos a 2005. O tempo deu-nos razão. Mas, neste caso, melhor fora que tal não tivesse acontecido. Relembrar hoje esta história serve para mostrar que, apesar dos anos perdidos, não é tarde para começar. Há disponibilidade das associações de instituições financeiras (ASFAC e APB) para uma parceria no domínio da prevenção (voltarei a ela em outra oportunidade). Há alguma experiência acumulada no trabalho da DECO em matéria de mediação. E, no que nos diz respeito, há algum conhecimento adquirido no Observatório do Endividamento, contactos e experiências internacionais realizadas. Se unirmos os nossos esforços não resolveremos o problema de uma vez, mas começaremos a geri-lo como deve ser: observando com informação, prevenindo com a ética e a educação e tratando o sobreendividamento com o remédio adequado, sempre que não haja outra solução.
Na verdade, a liberalização do sistema financeiro, a democratização do acesso ao crédito, a descida das taxas de juro, a estabilidade da zona euro e o aumento dos salários reais permitiam perceber que o fenómeno do endividamento iria ampliar-se a um ritmo muito acelerado. Não era uma questão conjuntural, tocando fugazmente consumidores deslumbrados por uma súbita folga no rendimento disponível. Tinha causas difíceis de remover, como a ausência de um mercado de arrendamento, que fazia do crédito para a aquisição de habitação a parte principal do endividamento. Reflectia, além disso, uma mudança nas atitudes, valores e estilos de vida das famílias urbanas, particularmente nas áreas metropolitanas. Essa mudança viria para ficar e não era o reflexo de uma suposta ?irresponsabilidade? de um qualquer governo, como se veio a provar.
Nesses anos dourados do consumo, o sobreendividamento não era um problema. A palavra era quase desconhecida e os estudos sobre o fenómeno praticamente inexistentes em Portugal. Não havia estatísticas onde elas deveriam estar a ser preparadas (no Banco de Portugal e no INE) o que, de resto, continua a acontecer.
Seguindo uma tradição que nos é própria, resolveu-se então responder ao problema pelo lado mais fácil, começando pelo fim, em vez de ser pelo princípio. Anunciou-se uma lei para a reestruturação das dívidas dos sobreendividados. Não se sabia quantos eram e tudo indicava até que não seriam muitos. Pior do que isso. O projecto que então circulou e que não chegou a ser finalizado previa um processo judicial complexo, caro na sua implementação e com toda a probabilidade de ser excessivamente moroso na resolução de um problema que por definição não se compadece com grandes atrasos.
Num colóquio internacional que então organizámos em Coimbra, saudámos a atenção dada pelo Governo ao problema, mas criticámos a solução proposta, sugerindo algumas alternativas para a gestão do risco do sobreendividamento. Desenvolver de forma organizada e interactiva a observação, a prevenção e a reestruturação, no caso de excesso de dívidas não solváveis, foi o caminho que nos pareceu mais adequado.
A observação permitiria obter e analisar a informação sobre o problema, identificar os perfis de risco, propor medidas, monitorizá-las e avaliá-las. Deveria ser repartida por uma rede povoada de diferentes entidades, desde as que podem recolher informação estatística, às mais vocacionadas para estudos qualitativos.
A prevenção, por sua vez, incluiria várias frentes de batalha: desde um código de conduta para instituições de crédito, à transparência da informação, com especial relevo para a educação financeira. Sustentámos, então, que era na prevenção que deveria incidir a maior atenção das instituições responsáveis pela defesa do consumidor.
Aconselhava-se, ainda, que se pensasse no remédio e que o processo de reestruturação das dívidas, em caso de sobreendividamento, incluísse sempre uma hipótese prévia de mediação, de preferência desjudicializada..
Entre 1998 e 2002, ainda se iniciou algum trabalho. Com a mudança de governo a questão foi enterrada, mas de nada valeu ignorar o problema. Nem a recessão fez travar o aumento contínuo da taxa de endividamento nos anos que se seguiram.
Assim chegámos a 2005. O tempo deu-nos razão. Mas, neste caso, melhor fora que tal não tivesse acontecido. Relembrar hoje esta história serve para mostrar que, apesar dos anos perdidos, não é tarde para começar. Há disponibilidade das associações de instituições financeiras (ASFAC e APB) para uma parceria no domínio da prevenção (voltarei a ela em outra oportunidade). Há alguma experiência acumulada no trabalho da DECO em matéria de mediação. E, no que nos diz respeito, há algum conhecimento adquirido no Observatório do Endividamento, contactos e experiências internacionais realizadas. Se unirmos os nossos esforços não resolveremos o problema de uma vez, mas começaremos a geri-lo como deve ser: observando com informação, prevenindo com a ética e a educação e tratando o sobreendividamento com o remédio adequado, sempre que não haja outra solução.