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27 de junho de 2005

Equívocos da reforma política 

por Vital Moreira

Em declarações públicas o dirigente do Bloco de Esquerda (BE), Francisco Louçã, manifestou a sua enérgica oposição a duas medidas de reforma política anunciadas pela maioria socialista, ou seja, a reforma do sistema eleitoral dos deputados, criando círculos eleitorais uninominais, e a reforma do sistema de governo das autarquias locais, criando órgãos executivos monopartidários. Mas as duas coisas não podem ser metidas no mesmo saco, nem podem ser apreciadas com a mesma grelha de análise.
A possibilidade de criar círculos uninominais - onde é eleito somente um deputado - nas eleições para a Assembleia da República consta da Constituição desde a revisão constitucional de 1997. A sua primeira concretização em projecto legislativo foi efectuada no primeiro Governo de António Guterres, pelo então ministro dos Assuntos Parlamentares, António Costa. O projecto não vingou essencialmente porque o PSD, cujo apoio é necessário para aprovar tal reforma - já que ela carece de 2/3 de votos -, condicionou o seu apoiou a uma redução do número de deputados, que o PS não podia aceitar.
Na sua oposição à reforma, Louçã disse textualmente, segundo relata "A Capital", que instituiria a "bipartidarização total do sistema político, porque só PS e PSD elegeriam deputados, ficando as centenas de milhares de cidadãos que votam no BE, no PCP ou mesmo no CDS/PP sem voz na Assembleia da República". Esta declaração não tem, contudo, o mínimo fundamento. Primeiro, no sistema proposto, os deputados que passariam a ser eleitos em círculos uninominais seriam menos de metade, continuando os demais a ser eleitos em círculos distritais e num círculo nacional, plurinominais, tal como hoje. Segundo, os eleitores teriam dois votos, um para eleger o "deputado local" no seu círculo uninominal, e outro para eleger os deputados nos círculos distritais/nacional. Terceiro, e mais importante, a repartição dos deputados pelos partidos seria sempre feita globalmente de forma proporcional, ou seja, tendo em conta somente o "segundo voto" dos eleitores e não pelo "voto uninominal", servindo este apenas para escolher os deputados locais, que seriam sempre contabilizados na quota de cada partido.
Portanto, mesmo que os círculos uninominais provocassem uma relativa bipolarização do voto na eleição dos deputados "locais", não existe nenhuma razão para temer que tal efeito contaminasse em larga escala o "segundo voto", provocando uma bipolarização geral do sistema eleitoral. É de lembrar que o sistema eleitoral que serviu de referência à referida reforma eleitoral é o da Alemanha, que revela um índice de proporcionalidade muito elevado e no qual as limitações à representação partidária no parlamento derivam, sim, da "cláusula-barreira" do mínimo de cinco por cento de votos, como condição de acesso ao Parlamento, e não do sistema eleitoral.
No que respeita ao sistema de governo das autarquias locais, os problemas são essencialmente diversos, não devendo ser confundidos. Também aqui, a proposta socialista constitui uma renovação de projectos antigos. As suas principais medidas são conhecidas: (i) acabar com a eleição proporcional da câmara municipal, que hoje faz coabitar a maioria e a oposição no órgão executivo municipal; (ii) fazer eleger o presidente da câmara municipal em conjunto com a assembleia municipal, numa única eleição, sendo presidente o primeiro nome da lista mais votada para a assembleia; (iii) permitir ao presidente da câmara municipal escolher livremente os vereadores, que deixariam de ser eleitos; (iv) reforçar os poderes de controlo da assembleia municipal sobre o executivo municipal.
Sempre manifestei uma frontal oposição a esta reforma, mas por razões muito diferentes das que são normalmente aduzidas pelos partidos que defendem a manutenção da composição pluripartidária da câmara municipal. De facto, considero que nenhum princípio democrático pode reclamar a existência de órgãos executivos pluripartidários (fora dos casos de coligação). A regra, pelo contrário, é a de que os órgãos executivos devem caber aos partidos maioritários, sob controlo das assembleias, essas sim pluripartidárias e dotadas dos meios necessários para esse efeito.
Não considero, por isso, pertinente essa questão nas razões contra a referida reforma. Pelo contrário, penso mesmo que a coabitação obrigatória da oposição com a maioria na câmara municipal tem sido uma das principais razões para a falta de verdadeira oposição na maior parte dos municípios - dado o compromisso dos vereadores da oposição com o governo da maioria, para não falar dos casos de verdadeira "cooptação" a troco de lugares de vereador remunerado ou de administração de empresas públicas - e para a neutralização da assembleia municipal, que foi reduzida a um órgão decorativo, em vez de ser, como devia ser, o verdadeiro parlamento municipal.
O que é inaceitável no projecto de reforma do Partido Socialista são duas razões essenciais: (i) o presidencialismo municipal anómalo que a reforma criaria, concentrando todo o poder no presidente da câmara, que passaria a ser o único verdadeiro titular do poder executivo, incluindo a livre escolha dos vereadores; (ii) a eleição conjunta do presidente da câmara e da assembleia municipal, acabando com a actual eleição separada.
Na verdade, se esta reforma fosse para a frente, deixaria de ter sentido falar em câmara municipal, que ficaria reduzida ao presidente, "assessorado" por alguns vereadores/ajudantes, que ele escolheria e substituiria com quase total liberdade. Mais grave do que isso, a eleição conjunta implicaria a natural "bipolarização" não somente na eleição do presidente da câmara municipal, mas também ao nível da eleição da assembleia municipal, garantindo na maior parte dos casos uma maioria fiel e obediente ao presidente, tanto mais que o candidato a presidente se encarregaria de controlar a composição da lista a que ele próprio irá presidir. A ameaça à democracia municipal desta proposta de reforma está na inaudita concentração do poder nas mãos do presidente da câmara e na domesticação política das assembleias municipais.
Se se quer ter um regime presidencialista no governo municipal, então impõe-se ser coerente, de acordo com os seguintes requisitos: (i) eleição separada do presidente da câmara e da assembleia; (ii) redução dos actuais poderes da câmara municipal; (iii) reforço dos meios de controlo do executivo pela assembleia. É pena que os pequenos partidos, agarrados à ilusória ideia de manterem alguns vereadores em câmaras municipais, não se dêem conta do verdadeiro risco que os projectos de reforma do PS e o PSD implicam para a democracia local.

(Público, 3ª feira, 21 de Junho de 2005)

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