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11 de junho de 2005

Sem rumo na tempestade 

Por Vital Moreira

Não sei se na noite de domingo houve alguma troca de felicitações recíprocas entre os líderes da frente do não -- Le Pen, De Villiers, Fabius, Arlette Laguilier e Marie-George Buffet -- para celebrarem a sua rotunda vitória no referendo do tratado constitucional da União Europeia em França. Se o pudor político prevaleceu, nem por isso deixam de se poder felicitar pelo sucesso comum.
Cumplicidades assumidas ou não entre os rejeicionistas, torna-se evidente que a constituição europeia foi vítima de uma heteróclita coligação negativa, onde se misturaram, sem tom nem som, os mais viscerais inimigos da integração europeia desde o início, alguns dos que sempre com ela estiveram e lhe deram os sucessivos impulsos para a frente e os que alegadamente a rejeitaram em nome de uma outra constituição "mais federal" ou "mais europeia". O facto de os segundos e terceiros terem ajudado os primeiros a acertar um profundo golpe na própria UE ? cujas consequências ainda resta apurar, mas cuja gravidade não pode contestada ?, diz bem dos equívocos com que se jogou este referendo. A dimensão de populismo e de demagogia que sempre acompanha os exercícios referendários, sobretudo os que têm uma amplitude ?holística? como este, permitindo aos eleitores responder às perguntas que eles próprios quiserem (mesmo que não tenham nada a ver com o objecto do referendo), ajuda a explicar estas alianças politicamente "contra-natura".
Tudo e o seu conntrario pôde ser invocado contra o texto constitucional: nacionalistas e soberanistas contra um suposto super-Estado europeu escondido por detrás da constituição, e federalistas radicais, insatisfeitos pela sua timidez no sentido integracionista; ultra-liberais, por ela não dar suficiente lugar ao mercado, e partidários do modelo social francês, denunciando a deriva neoliberal e "anglo-saxónica" da UE; católicos fundamentalistas, pela falta de referência à herança cristã da Europa, e laicistas radicais, pela referência expressa às religiões. Contra a constituição foram invocados os argumentos mais reaccionários, como a xenofobia mais rasteira e o nacionalismo mais pedestre, e os mais despropositados, como a ideia de que ela "constitucionalizaria" o modelo de economia de mercado, quando este está "constitucionalizado" desde 1957 no Tratado de Roma que instituiu as Comunidade Económica Europeia. Não faltou quem assacasse à Constituição o ela deixar margem para restaurar a pena de morte, para proibir o aborto ou para pôr em causa o laicismo francês! Houve quem o dissesse convictamente e houve ainda mais quem o acreditasse.
Parece evidente que o tratado constitucional foi sobretudo o bode expiatório dos males da França e das dificuldades que defrontam a UE. Para além do descrédito do governo de direita em França, o que contou foi o desemprego, o débil crescimento económico, as deslocalizações de empresas, o alargamento da UE a Leste, a globalização, a insegurança quanto ao futuro do modelo social francês, em particular, e europeu em geral. A infeliz e inoportuna coincidência da polémica sobre a adesão da Turquia ou sobre a directiva Bolkestein (criação do mercado interno dos serviços), bem como a entrada em vigor da liberalização das trocas comerciais com a China, tudo isso contou para o pretexto global de que foi vítima a constituição. O protesto contra o que está (e Bruxelas tem as costas largas) e o medo do desconhecido explicam o rotundo desaire sofrido pela UE em França.
O facto de a constituição não ter a ver com nada disso ? e poder ser pelo contrário um antídoto contra alguns dos males e impasses em causa ? não contou nada. Na verdade, não se tratou de rejeitá-la pelo que ela é em si mesma, mas sim como expressão do descontentamento e da insegurança dos franceses perante a crise do actual modelo económico e social. A circunstância de o provável afastamento da constituição não afastar o desemprego, nem as deslocalizações de empresas, nem a invasão dos canalizadores polacos, nem a inundação dos têxteis chineses, nem o dumping fiscal dos países do leste e o dumping social da Índia e da China, nem a liberalização dos serviços públicos, nem a necessidade de reforma do modelo social francês --, nada disso consegui parar a deriva rejeicionista. Tampouco serviu o simples pensamento de que só a constituição, para além de menos liberal e mais social do que os actuais tratados, poderia conferir às instituições da UE o ?elan? necessário para enfrentar a crise e relançar o projecto europeu.
Há evidentemente muitos argumentos politicamente coerentes para rejeitar a Constituição europeia. Ninguém se surpreende com a posição dos nacionalistas de direita ou de esquerda, ou dos comunistas e outras forças politicas contrárias à economia de mercado, com ou sem modelo social europeu. Sempre estiveram e hão-de estar contra a UE e contra o avanço da integração europeia. Votam contra a Constituição agora como teriam votado contra o tratado de Maastricht ou contra o Tratado de Roma. Louve-se-lhes a coerência. Mas existe também um argumento cínico contra a Constituição europeia, que é o dos que a rejeitam pretensamente "em nome da Europa" e de em nome de uma "outra Constituição". No seu argumentário, entre nós representado pelo Bloco de Esquerda, o tratado constitucional deve ser rejeitado não por ser uma constituição mas sim por não ser uma genuína constituição aprovada em assembleia constituinte; não por trazer Europa a mais, mas sim por trazer a menos; não por ser um avanço constitucional, mas sim por ser pouco mais do que a constitucionalização do que está, incluindo o modelo económico neoliberal; não por ser não ser melhor do que o que está, mas sim por ser muito recuada quando comparada com o que deveria ser.
Mesmo que a constituição correspondesse a essa caricatura (e não corresponde!), não existe maneira mais simples, nem mais cínica, de rejeitar qualquer avanço do que em nome de uma maximalismo consabidamente utópico, ou pura e simplesmente indefensável. Assim se justifica rejeitar a alternativa que realmente existe em nome de algo que não existe nem pode existir, para assim justificar a manutenção do que está. A verdade é que nenhum dos anteriores tratados instituidores da UE foi tão democraticamente participado na sua elaboração como este, numa "convenção" onde participaram representantes das instituições europeias e nacionais, nomeadamente do parlamento europeu e dos parlamentos nacionais, tendo sido expressamente aprovado pelo primeiro, para além de o dever ser pelos segundos; nenhum tratado anterior foi submetido a tão amplo escrutínio e a tão prolongada discussão pública; nenhum avança tão decididamente na democratização das instituições e na transparência da governação europeia (mais poderes para o parlamento europeu e para os parlamentos nacionais, iniciativa legislativa popular, reuniões públicas do conselho de ministros quando no exercício de poderes legislativos); nenhum foi tão longe na protecção dos direitos dos cidadãos europeus face às instituições europeias (constitucionalização da Carta de Direitos Fundamentais); nenhum assumiu tão decididamente a UE como entidade política autónoma na cena internacional (política externa e política de defesa comum). É tudo isso que se perde sem o tratado constitucional.
A rejeição da Constituição europeia não significará somente prescindir de uma UE mais forte, mais democrática, mais transparente, com instituições mais eficientes e, mesmo, mais social. Implica a abertura de uma crise de confiança e de desorientação que só pode traduzir-se numa paralisia mais ou menos demorada, quando a globalização, a ofensiva de hegemonia mundial dos Estados Unidos e a emergência de novos poderes de vocação mundial, como a China, mais precisam do protagonismo da Europa. Em vez de avançar com rumo, a Europa fica à deriva sem leme no meio da tempestade.

(Público, 3ª feira, 31 de Miro de 2005)

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