11 de junho de 2005
Território, autarquias locais e serviços públicos
Por Vital Moreira
Na onda reformista do actual Governo, o ministro António Costa anunciou o propósito de fusão de freguesias e de municípios que tenham população diminuta, que são muitos, sobretudo no caso das freguesias. É uma reforma importante. Mas a questão do ordenamento institucional do território não se limita ao número e dimensão territorial das autarquias locais, abrangendo também a distribuição territorial dos serviços e estabelecimentos públicos. Sobre esta matéria tem-se debatido pouco.
A ideia de fundir ou agregar autarquias locais de dimensão reduzida é uma boa notícia. São impressionantes os números divulgados sobre o número de freguesias com menos de 1000 habitantes (incluindo em áreas urbanas entretanto despovoadas) e de municípios rurais com pouco mais do que isso. A concentração de autarquias permite poupar meios (instalações, equipamento, pessoal, etc.), simplificar a organização territorial e, sobretudo, reforçar as estruturas do poder local. De facto, freguesias e municípios sem dimensão adequada não podem dispor dos meios humanos, técnicos e materiais necessários para o bom desempenho das suas tarefas.
A fusão ou agregação territorial justificam-se ainda mais nas áreas urbanas do que nas zonas rurais, visto que nestas há que ter em conta as distâncias geográficas e não somente a população. Por melhores que sejam hoje os meios de comunicação e de transporte, a distância é sempre um factor negativo. Além disso, nas zonas rurais os factores de identidade local são mais fortes do que nas zonas urbanas, o que joga contra a concentração. Por isso justifica-se uma consideração diferenciada das duas situações.
É evidente que uma operação de concentração de autarquias locais não pode ser feita sem vencer as inevitáveis resistências locais, a começar pelos actuais ou potenciais candidatos a autarcas. Cada freguesia ou município a menos significa umas dezenas de lugares públicos a menos, entre membros de juntas de freguesia e assembleias de freguesia, bem como de câmaras municipais e assembleias municipais. Trata-se sempre de um terreno fértil para a demagogia e o populismo, jogando com as questões de desgraduação local e de rivalidade com as povoações vizinhas.
A definição e implementação de uma reforma destas é tanto mais árdua quanto ela contraria a tendência até agora prevalecente, que tem consistido na criação de novos municípios e de novas freguesias, muitas vezes sem nenhuma justificação racional em termos de administração local, ressalvados os interesses pessoais dos previsíveis candidatos a futuros autarcas. Por isso, a anunciada concentração de freguesias e de municípios deveria ser acompanhada de um congelamento da criação de novas autarquias (e, já agora, do congelamento também da ridícula multiplicação de vilas e cidades com que a Assembleia da República tem desperdiçado o seu tempo, só para satisfazer fúteis interesses localistas...).
Não é menos necessária nem menos complicada a racionalização territorial dos serviços e estabelecimentos públicos locais do Estado nos mais variados domínios (educação, saúde, segurança social, justiça, etc.). A perda de população em muitas regiões do interior, por um lado, e a pressão de interesses locais, por outro, criaram um excesso de equipamentos e de serviços públicos em relação às necessidades em diversas regiões. Há escolas sem número suficiente de alunos, hospitais sem doentes que os justifiquem, maternidades sem parturientes que as mantenham em actividade regular, tribunais sem número de processos bastante, estabelecimentos sociais sem utentes que justifiquem a sua subsistência.
Sucede que, para além da enorme desproporção entre gastos com os meios envolvidos (instalações, equipamentos, pessoal, etc.) em relação aos serviços efectivamente prestados, a qualidade destes deixa muitas vezes a desejar, justamente por falta de escala (instalações inadequadas ou degradadas, equipamentos insuficientes ou antiquados, desmotivação do pessoal, incapacidade para fixar pessoal qualificado, etc.). Os prejudicados são aqueles que alegadamente se quer servir, ou seja, os utentes, que ficariam mais bem servidos noutros estabelecimentos em melhores condições, a troco de um serviço de transportes adequado. A maior parte das vezes a maior proximidade é satisfeita à custa da pior qualidade dos serviços.
É evidente que não pode ignorar-se o princípio constitucional da desconcentração administrativa e o valor da proximidade dos serviços públicos em relação aos utentes. No caso das zonas rurais mais despovoadas, onde a concentração territorial de serviços públicos pode implicar enormes distâncias entre eles, justifica-se mesmo uma política de "discriminação positiva". Impõe-se aqui um sensato equilíbrio e sentido de proporcionalidade. Mas há limites para a dispersão e para o paroquialismo. Há que superar definitivamente a visão de que não pode haver aldeia sem escola primária, município sem tribunal nem hospital, maternidades a esmo, serviços de urgência a meia hora de outros, universidades à porta de casa, etc. O lado reverso de uma excessiva dispersão de serviços e estabelecimentos públicos, para além do seu custo financeiro incomportável (o que se torna mais pesado em tempos de austeridade financeira), é a escassez dos mesmos nas regiões de maior concentração populacional, o desaproveitamento de meios humanos e técnicos escassos e a má qualidade dos serviços prestados.
Também aqui não é de esperar uma estrada real para as mudanças que se impõem. Primeiro, porque uma tal perspectiva vai ao arrepio de um longo período de laxismo e de injustificável dispersão territorial de onerosos serviços e estabelecimentos públicos, de que o triângulo hospitalar Abrantes-Tomar-Torres Novas e a Universidade de Viseu são bons exemplos. Segundo, porque nenhuma povoação gosta de perder estabelecimentos ou serviços públicos, existindo uma cultura de direitos adquiridos nesta área. A reacção aos projectos do anterior governo, de concentração de maternidades e de delegações de serviços de saúde em algumas zonas do país (só para citar a área da saúde), mostra como os interesses locais podem opor uma fortíssima resistência e mobilizar com êxito os sentimentos populares.
Mas, que se saiba, nenhuma reforma que valha a pena pode vingar sem vencer resistências. Há sempre quem tenha vantagens em conservar o "statu quo", ainda que raramente sejam os habituais "suspeitos", ou seja, os utentes. Mas somente em nome dos utentes e dos contribuintes é que merece a pena encetar reformas e levá-las até ao seu termo.
Blogposts (causa-nossa.blogspot.com)
1. Para os opositores à Constituição europeia que acumulam essa posição com um filo-americanismo (ou melhor: filobushismo) primário (e são muitos), a França passou rapidamente de besta a bestial. Quando liderou a oposição europeia à intervenção norte-americana no Iraque ela era a expressão de chauvinismo estreito e de falta de solidariedade ocidental da "Europa velha". Agora que o referendo francês chumbou a Constituição europeia, a França passou a representar o que de mais sensato e virtuoso pode existir na Europa. Tanto assim que no seu entendimento a rejeição francesa pode mesmo dispensar uma decisão portuguesa sobre o tratado constitucional, como se a França nos pudesse representar mesmo sem mandato...
2. As incríveis declarações de A. J. Jardim sobre os que escrevem nos jornais continentais não é somente mais exemplo de rotunda má-criação, mas também de total ausência de sentido de responsabilidade pública e de dignidade institucional. Por que maldição teremos de continuar a aturar os dislates desta criatura? Professor universitário
(Público, 3ª feira, 7 de Junho de 2005)
Na onda reformista do actual Governo, o ministro António Costa anunciou o propósito de fusão de freguesias e de municípios que tenham população diminuta, que são muitos, sobretudo no caso das freguesias. É uma reforma importante. Mas a questão do ordenamento institucional do território não se limita ao número e dimensão territorial das autarquias locais, abrangendo também a distribuição territorial dos serviços e estabelecimentos públicos. Sobre esta matéria tem-se debatido pouco.
A ideia de fundir ou agregar autarquias locais de dimensão reduzida é uma boa notícia. São impressionantes os números divulgados sobre o número de freguesias com menos de 1000 habitantes (incluindo em áreas urbanas entretanto despovoadas) e de municípios rurais com pouco mais do que isso. A concentração de autarquias permite poupar meios (instalações, equipamento, pessoal, etc.), simplificar a organização territorial e, sobretudo, reforçar as estruturas do poder local. De facto, freguesias e municípios sem dimensão adequada não podem dispor dos meios humanos, técnicos e materiais necessários para o bom desempenho das suas tarefas.
A fusão ou agregação territorial justificam-se ainda mais nas áreas urbanas do que nas zonas rurais, visto que nestas há que ter em conta as distâncias geográficas e não somente a população. Por melhores que sejam hoje os meios de comunicação e de transporte, a distância é sempre um factor negativo. Além disso, nas zonas rurais os factores de identidade local são mais fortes do que nas zonas urbanas, o que joga contra a concentração. Por isso justifica-se uma consideração diferenciada das duas situações.
É evidente que uma operação de concentração de autarquias locais não pode ser feita sem vencer as inevitáveis resistências locais, a começar pelos actuais ou potenciais candidatos a autarcas. Cada freguesia ou município a menos significa umas dezenas de lugares públicos a menos, entre membros de juntas de freguesia e assembleias de freguesia, bem como de câmaras municipais e assembleias municipais. Trata-se sempre de um terreno fértil para a demagogia e o populismo, jogando com as questões de desgraduação local e de rivalidade com as povoações vizinhas.
A definição e implementação de uma reforma destas é tanto mais árdua quanto ela contraria a tendência até agora prevalecente, que tem consistido na criação de novos municípios e de novas freguesias, muitas vezes sem nenhuma justificação racional em termos de administração local, ressalvados os interesses pessoais dos previsíveis candidatos a futuros autarcas. Por isso, a anunciada concentração de freguesias e de municípios deveria ser acompanhada de um congelamento da criação de novas autarquias (e, já agora, do congelamento também da ridícula multiplicação de vilas e cidades com que a Assembleia da República tem desperdiçado o seu tempo, só para satisfazer fúteis interesses localistas...).
Não é menos necessária nem menos complicada a racionalização territorial dos serviços e estabelecimentos públicos locais do Estado nos mais variados domínios (educação, saúde, segurança social, justiça, etc.). A perda de população em muitas regiões do interior, por um lado, e a pressão de interesses locais, por outro, criaram um excesso de equipamentos e de serviços públicos em relação às necessidades em diversas regiões. Há escolas sem número suficiente de alunos, hospitais sem doentes que os justifiquem, maternidades sem parturientes que as mantenham em actividade regular, tribunais sem número de processos bastante, estabelecimentos sociais sem utentes que justifiquem a sua subsistência.
Sucede que, para além da enorme desproporção entre gastos com os meios envolvidos (instalações, equipamentos, pessoal, etc.) em relação aos serviços efectivamente prestados, a qualidade destes deixa muitas vezes a desejar, justamente por falta de escala (instalações inadequadas ou degradadas, equipamentos insuficientes ou antiquados, desmotivação do pessoal, incapacidade para fixar pessoal qualificado, etc.). Os prejudicados são aqueles que alegadamente se quer servir, ou seja, os utentes, que ficariam mais bem servidos noutros estabelecimentos em melhores condições, a troco de um serviço de transportes adequado. A maior parte das vezes a maior proximidade é satisfeita à custa da pior qualidade dos serviços.
É evidente que não pode ignorar-se o princípio constitucional da desconcentração administrativa e o valor da proximidade dos serviços públicos em relação aos utentes. No caso das zonas rurais mais despovoadas, onde a concentração territorial de serviços públicos pode implicar enormes distâncias entre eles, justifica-se mesmo uma política de "discriminação positiva". Impõe-se aqui um sensato equilíbrio e sentido de proporcionalidade. Mas há limites para a dispersão e para o paroquialismo. Há que superar definitivamente a visão de que não pode haver aldeia sem escola primária, município sem tribunal nem hospital, maternidades a esmo, serviços de urgência a meia hora de outros, universidades à porta de casa, etc. O lado reverso de uma excessiva dispersão de serviços e estabelecimentos públicos, para além do seu custo financeiro incomportável (o que se torna mais pesado em tempos de austeridade financeira), é a escassez dos mesmos nas regiões de maior concentração populacional, o desaproveitamento de meios humanos e técnicos escassos e a má qualidade dos serviços prestados.
Também aqui não é de esperar uma estrada real para as mudanças que se impõem. Primeiro, porque uma tal perspectiva vai ao arrepio de um longo período de laxismo e de injustificável dispersão territorial de onerosos serviços e estabelecimentos públicos, de que o triângulo hospitalar Abrantes-Tomar-Torres Novas e a Universidade de Viseu são bons exemplos. Segundo, porque nenhuma povoação gosta de perder estabelecimentos ou serviços públicos, existindo uma cultura de direitos adquiridos nesta área. A reacção aos projectos do anterior governo, de concentração de maternidades e de delegações de serviços de saúde em algumas zonas do país (só para citar a área da saúde), mostra como os interesses locais podem opor uma fortíssima resistência e mobilizar com êxito os sentimentos populares.
Mas, que se saiba, nenhuma reforma que valha a pena pode vingar sem vencer resistências. Há sempre quem tenha vantagens em conservar o "statu quo", ainda que raramente sejam os habituais "suspeitos", ou seja, os utentes. Mas somente em nome dos utentes e dos contribuintes é que merece a pena encetar reformas e levá-las até ao seu termo.
Blogposts (causa-nossa.blogspot.com)
1. Para os opositores à Constituição europeia que acumulam essa posição com um filo-americanismo (ou melhor: filobushismo) primário (e são muitos), a França passou rapidamente de besta a bestial. Quando liderou a oposição europeia à intervenção norte-americana no Iraque ela era a expressão de chauvinismo estreito e de falta de solidariedade ocidental da "Europa velha". Agora que o referendo francês chumbou a Constituição europeia, a França passou a representar o que de mais sensato e virtuoso pode existir na Europa. Tanto assim que no seu entendimento a rejeição francesa pode mesmo dispensar uma decisão portuguesa sobre o tratado constitucional, como se a França nos pudesse representar mesmo sem mandato...
2. As incríveis declarações de A. J. Jardim sobre os que escrevem nos jornais continentais não é somente mais exemplo de rotunda má-criação, mas também de total ausência de sentido de responsabilidade pública e de dignidade institucional. Por que maldição teremos de continuar a aturar os dislates desta criatura? Professor universitário
(Público, 3ª feira, 7 de Junho de 2005)