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15 de agosto de 2005

A Europa pela Paz no Aceh 

Por Ana Gomes

Sete meses depois do tsunami, a devastação ultrapassa ainda tudo o que se imagine. Sobrevoando os 300 km de costa entre Banda Aceh e Meulaboh, apunhala pensar nos 200.000 mortos e ver as terras alagadas, pejadas de destroços, pontuadas pelas lajes das casas arrancadas e pelos desolados acampamentos à sombra de coqueiros contorcidos. Em contraste com o azul do mar, a alvura da areia e o verde das imponentes montanhas atrás. A fragilidade psicológica das pessoas ainda choca mais, apesar do sorriso que, de pequenos, todos treinaram para poupar o interlocutor à ofensa da sua dor: a dor insuportável de ter sobrevivido, sem poder salvar filhos, mulher, marido, pais, irmãos, amigos, vizinhos.
Mas os acehneses já passaram por muito ao longo de séculos e nos últimos 26 anos de injustiça e opressão. Resistir, reorganizar, reconstruir está-lhes na massa do sangue. E a solidariedade mundial ajudou-os, até moralmente. A presença das agências internacionais e ONGs, além de inestimável na reabilitação, oferece uma protecção nunca antes conhecida. E com a nomeação por Jacarta, há dois meses, de um Coordenador para a Reconstrução, Kuntoro - sem papas na língua, com mangas arregaçadas e plenos poderes contra a hidra burocrática - finalmente a reconstrução começa a ver-se. Mas exige planeamento e vai levar uns anos.
A ajuda europeia impressiona, em montante e impacte estruturante (conforta ver Portugal envolvido, em notável acção da OIKOS com apoio governamental). A UE está, por exemplo, a acelerar a resolução de um problema fundamental da reconstrução, com fotografias de satélite que reconstituirão o antes sobre o depois, para determinar e certificar a propriedade das terras.
Mas a mais sensível ajuda da UE vai incidir no processo de paz, retomado em Helsinquia sob mediação do ex-Presidente Matti Attisahri. No Aceh, como em Jacarta, são elevadas como nunca as expectativas de que o Acordo seja assinado a 15 de Agosto e envolva a renúncia pelo GAM à independência e a entrega das armas, em troca da transformação em partido político local, amnistia e reintegração social dos combatentes, e da retirada da maior parte das tropas do Aceh. Com as expectativas co-existe algum cepticismo, natural para quem já viu acordo semelhante falhar em 2003 e o Aceh voltar à lei marcial; ou a impotência dos Observadores (filipinos e tailandeses) perante a desconfiança entre as partes e a má-fé de muitos, determinados a não perder os beneficios do conflito (promoções para o TNI e todo o tipo de extorsões e comércios legais e ilegais para os dois lados); ou a receita das milicias Merah-Putih já preparada no Aceh ...
As partes pediram à UE (e à ASEAN) Observadores para a aplicação do acordo, em principio a partir de Setembro. É preciso assegurar que o mandato deles levará em conta as lições do passado, incluindo as da UNAMET. É preciso que os Observadores, ainda que não armados, tenham olho para ver o que os militares sabem ver e o que os defensores dos direitos humanos, vendo, não calam. E que haja mecanismos para investigar, identificar e punir responsáveis por violações. Em suma: que o mandato confira capacidade de intervir aos Observadores e de persuação política de topo sobre as partes. Porque os sabotadores vão, inevitavelmente, tentar intimidar e responsabilizar os Observadores (em Timor-Leste começaram pelos jornalistas, lembram-se?...) .
Claro que o Aceh não é Timor-Leste. Logo pelo recorte legal internacional: nenhum país contesta que seja parte da Indonésia. E o GAM nada tem a ver com a disciplina política e o apoio popular das FALENTIL. Outras condições são diferentes: a tragédia pressiona as partes a minorararem o sofrimento dos acehneses; o tsunami matou muitos militares e funcionários estatais, mas também debilitou o GAM, já enfraquecido na campanha militar de 2003/4; por outro lado, a Indonésia nunca teve líderes com tanta legitimidade democrática, autoridade e empenho na paz no Aceh, como os actuais Presidente SB Yudhoyono e Vice-Presidente Yusuf Kalla; no Parlamento, só o partido de Megawati se opõe. A extracção militar do Presidente permite-lhe antecipar as armadilhas dos sabotadores ? conhece-os de gingeira, a umas e outros....
Trabalhei de perto com o Presidente SBY e vi-o fazer a diferença, a partir de 2000, por um novo relacionamento entre a Indonésia e Timor-Leste. Ele há muito que tirou as lições que havia a tirar e por isso tem dito que o que está em jogo no Aceh vai além do Aceh: respeita à governação da Indonésia, à capacidade de «ganhar os corações e as mentes». Dos acehneses e não só. Ele quer reconstruir o Aceh, mas melhor que antes. A Paz faz toda a diferença.

(Versão integral de texto publicado no «Courrier Internacional», edição de 5.8.2005, coluna «Todo-o-terreno», sob o título «Pela Paz no Aceh»).

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