25 de agosto de 2005
O "quinto poder"?
por Vital Moreira
Corre nestes dias uma animada troca de opiniões entre vários blogues nacionais sobre a função e o poder dos blogues, bem como sobre as relações entre eles e os media tradicionais. Estas questões não são propriamente inéditas. Mas tendo em conta que a questão já teve algumas repercussões na imprensa, vale a pena trazê-la para o público em geral.
Comece por afirmar-se que, apesar de crescente, a visibilidade pública dos blogues é ainda muito reduzida entre nós. É pequeno o número dos seus frequentadores regulares. São muito poucos os blogues que têm notoriedade, devendo-a vários deles ao conhecimento de que os seus autores gozam por razões exteriores à blogosfera, como políticos, comentadores, colunistas, etc. A blogosfera continua a ser, portanto, um mundo relativamente restrito de "conhecedores".
Claro que é fácil criar um blogue. É gratuito e não exige nenhum saber específico. Basta um computador e uma ligação à Internet. Alguns minutos a preencher os procedimentos, e já está. Pode-se logo escrever e publicar o primeiro poste. Imagino o fascínio de lançar para o éter o primeiro texto. O problema vem depois, ter quem os leia. A maioria dos novos blogues são nados-mortos, que vegetam até à desistência, sem chegarem a ser conhecidos para além dos seus autores. Inúmeros génios da blogosfera" para si mesmos" acabaram amargamente na frustração.
Dada a incipiência da blogosfera, o maior risco consiste em sobrestimar a sua influência, em especial no espaço público. Para começar, grande parte dos blogues não deseja ter nenhum impacte público geral. Nascem como simples meios de expressão pessoal dos seus autores. Há blogues de artistas, de músicos, de poetas, de cultores de vários saberes, desde a culinária às ciências ocultas. Quando discutimos o impacte dos blogues, queremos referir normalmente a sua influência na opinião pública, em geral, e na esfera política, em especial, nomeadamente no campo da luta ideológica e da crítica do poder político. Fora a função de proselitismo ideológico, a que muitos se limitam, qual é o verdadeiro papel dos blogues?
Não falta quem já considere a blogosfera como um novo poder, um "quinto poder", ao lado do três poderes tradicionais do Estado (poder legislativo, pode executivo, poder judicial) e do "quarto poder" representado pelos media clássicos. A função dos blogues deveria ser não somente a de fiscalização dos poderes do Estado - função principal dos media numa sociedade aberta -, mas também do poder dos media tradicionais, quer quanto à selectividade da sua agenda mediática, quer quanto ao seu tratamento. Daí a invocação que alguns fazem de uma função privilegiada dos blogues em termos de agenda setting (suscitar temas ignorados pelo poder político e/ou pelos media tradicionais) e de watchdog (função de vigilância e de denúncia dos demais poderes).
Aqui há dois anos (Outubro de 2003), o director de Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet, lançou para a discussão a necessidade de criar um "quinto poder", como forma de contraposição à crescente transformação do "quarto poder" - ou seja, os media - em instrumento de acção dos demais poderes (sobretudo do poder económico), por efeito da crescente integração em redes mundiais integradas em grupos de comunicação dominados por poderosos grupos económicos, em prejuízo da sua função tradicional de controlo do poder. Daí a necessidade de instituir um novo poder destinado a vigiar os media e a suprir a suas carências em termos de informação livre e de pluralismo de opinião, sobretudo quanto aos interesses e ideias deixados de lado pelos grupos de comunicação dominantes. Para isso, ele propunha a criação de um observatório internacional dos media (Global Media Watch), de modo a tornar a comunicação e a informação pertencentes finalmente a todos os cidadãos.
No seu texto, Ramonet não referia os blogues como candidatos a integrar esse quinto poder autónomo dos cidadãos. A blogosfera estava, porém, em vias de se tornar uma forma de expressão relevante. E se existe hoje justamente um papel que os blogues podem desempenhar, ele está justamente aí. Acessíveis a cada vez maior número de pessoas, à medida que se generalizam os computadores e a Internet, os blogues podem finalmente realizar, a uma escala nunca imaginada, a utopia democrática de permitir aos cidadãos em geral intervir directamente nas assuntos da polis. Ao contrário dos media tradicionais, que são instituições ou empresas com a sua agenda própria, que condiciona necessariamente os seus jornalistas (desde logo no momento da sua escolha), os blogues, mesmo quanto colectivos, são exercícios puros de liberdade individual. Há dias num artigo no jornal Expresso, Paulo Querido - ele próprio um blogger, que por vezes analisa os blogues na imprensa - escrevia: "E este é o futuro mais previsível da blogosfera de pendor participativo na res publica: levantar as questões que a imprensa por algum motivo está impedida de colocar (ou esqueça) e melhorar assim a accountability do poder político, que quase não tem antecedentes históricos em Portugal."
Essa função de suprimento das insuficiências dos media tradicionais é particularmente relevante ao nível do local, onde existe um grande défice de pluralismo de imprensa, sendo raros, em muitas regiões, os jornais e as rádios locais, com a agravante de que frequentemente eles são dominados ou estão financeiramente dependentes do próprio poder local (subsídios, publicidade oficial, convites para viagens oficiais, etc.). Uma vertente ainda pouco conhecida da blogosfera é justamente o aparecimento de numerosos blogues locais, que criam pela primeira vez em muitos municípios um verdadeiro espaço de discussão das políticas públicas.
Uma das questões mais controversas em matéria de accountability do poder público tem que ver com a problemática do whistle blowing, ou seja, o do papel da denúncia de corrupção ou e abusos do poder por parte dos que trabalham nos próprios serviços públicos. Há vários países, como a Grã-Bretanha, onde a lei encoraja as denúncias, protegendo os autores das informações de perseguição disciplinar ou outra, desde que feitas de boa-fé e em prol do bem público. Ora, a blogosfera proporciona condições óptimas para que os colaboradores dos serviços levem ao conhecimentos público os casos de corrupção ou de violação das leis em geral, aproveitando-se do seu conhecimento interno. É aqui que se levanta o controverso tema do anonimato na blogosfera, muito frequente, que recorrentemente vem à tona. De facto, se nuns casos o anonimato constitui uma compreensível protecção do autor, sem a qual as suas informações e advertências não viriam a público, noutros muitos casos o anonimato é apenas a cobertura para patifarias de toda a espécie.
A blogosfera não parece ser uma moda, condenada a desaparecer como outras. A sua relevância é crescente, e estimável, particularmente na esfera política. Mas, por enquanto, dada a sua reduzida dimensão e influência, é pelo menos excessivo falar num "novo poder". Só o tempo pode dizer se algum dia o será.
(Público, terça-feira, 23 de Agosto de 2005)
Corre nestes dias uma animada troca de opiniões entre vários blogues nacionais sobre a função e o poder dos blogues, bem como sobre as relações entre eles e os media tradicionais. Estas questões não são propriamente inéditas. Mas tendo em conta que a questão já teve algumas repercussões na imprensa, vale a pena trazê-la para o público em geral.
Comece por afirmar-se que, apesar de crescente, a visibilidade pública dos blogues é ainda muito reduzida entre nós. É pequeno o número dos seus frequentadores regulares. São muito poucos os blogues que têm notoriedade, devendo-a vários deles ao conhecimento de que os seus autores gozam por razões exteriores à blogosfera, como políticos, comentadores, colunistas, etc. A blogosfera continua a ser, portanto, um mundo relativamente restrito de "conhecedores".
Claro que é fácil criar um blogue. É gratuito e não exige nenhum saber específico. Basta um computador e uma ligação à Internet. Alguns minutos a preencher os procedimentos, e já está. Pode-se logo escrever e publicar o primeiro poste. Imagino o fascínio de lançar para o éter o primeiro texto. O problema vem depois, ter quem os leia. A maioria dos novos blogues são nados-mortos, que vegetam até à desistência, sem chegarem a ser conhecidos para além dos seus autores. Inúmeros génios da blogosfera" para si mesmos" acabaram amargamente na frustração.
Dada a incipiência da blogosfera, o maior risco consiste em sobrestimar a sua influência, em especial no espaço público. Para começar, grande parte dos blogues não deseja ter nenhum impacte público geral. Nascem como simples meios de expressão pessoal dos seus autores. Há blogues de artistas, de músicos, de poetas, de cultores de vários saberes, desde a culinária às ciências ocultas. Quando discutimos o impacte dos blogues, queremos referir normalmente a sua influência na opinião pública, em geral, e na esfera política, em especial, nomeadamente no campo da luta ideológica e da crítica do poder político. Fora a função de proselitismo ideológico, a que muitos se limitam, qual é o verdadeiro papel dos blogues?
Não falta quem já considere a blogosfera como um novo poder, um "quinto poder", ao lado do três poderes tradicionais do Estado (poder legislativo, pode executivo, poder judicial) e do "quarto poder" representado pelos media clássicos. A função dos blogues deveria ser não somente a de fiscalização dos poderes do Estado - função principal dos media numa sociedade aberta -, mas também do poder dos media tradicionais, quer quanto à selectividade da sua agenda mediática, quer quanto ao seu tratamento. Daí a invocação que alguns fazem de uma função privilegiada dos blogues em termos de agenda setting (suscitar temas ignorados pelo poder político e/ou pelos media tradicionais) e de watchdog (função de vigilância e de denúncia dos demais poderes).
Aqui há dois anos (Outubro de 2003), o director de Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet, lançou para a discussão a necessidade de criar um "quinto poder", como forma de contraposição à crescente transformação do "quarto poder" - ou seja, os media - em instrumento de acção dos demais poderes (sobretudo do poder económico), por efeito da crescente integração em redes mundiais integradas em grupos de comunicação dominados por poderosos grupos económicos, em prejuízo da sua função tradicional de controlo do poder. Daí a necessidade de instituir um novo poder destinado a vigiar os media e a suprir a suas carências em termos de informação livre e de pluralismo de opinião, sobretudo quanto aos interesses e ideias deixados de lado pelos grupos de comunicação dominantes. Para isso, ele propunha a criação de um observatório internacional dos media (Global Media Watch), de modo a tornar a comunicação e a informação pertencentes finalmente a todos os cidadãos.
No seu texto, Ramonet não referia os blogues como candidatos a integrar esse quinto poder autónomo dos cidadãos. A blogosfera estava, porém, em vias de se tornar uma forma de expressão relevante. E se existe hoje justamente um papel que os blogues podem desempenhar, ele está justamente aí. Acessíveis a cada vez maior número de pessoas, à medida que se generalizam os computadores e a Internet, os blogues podem finalmente realizar, a uma escala nunca imaginada, a utopia democrática de permitir aos cidadãos em geral intervir directamente nas assuntos da polis. Ao contrário dos media tradicionais, que são instituições ou empresas com a sua agenda própria, que condiciona necessariamente os seus jornalistas (desde logo no momento da sua escolha), os blogues, mesmo quanto colectivos, são exercícios puros de liberdade individual. Há dias num artigo no jornal Expresso, Paulo Querido - ele próprio um blogger, que por vezes analisa os blogues na imprensa - escrevia: "E este é o futuro mais previsível da blogosfera de pendor participativo na res publica: levantar as questões que a imprensa por algum motivo está impedida de colocar (ou esqueça) e melhorar assim a accountability do poder político, que quase não tem antecedentes históricos em Portugal."
Essa função de suprimento das insuficiências dos media tradicionais é particularmente relevante ao nível do local, onde existe um grande défice de pluralismo de imprensa, sendo raros, em muitas regiões, os jornais e as rádios locais, com a agravante de que frequentemente eles são dominados ou estão financeiramente dependentes do próprio poder local (subsídios, publicidade oficial, convites para viagens oficiais, etc.). Uma vertente ainda pouco conhecida da blogosfera é justamente o aparecimento de numerosos blogues locais, que criam pela primeira vez em muitos municípios um verdadeiro espaço de discussão das políticas públicas.
Uma das questões mais controversas em matéria de accountability do poder público tem que ver com a problemática do whistle blowing, ou seja, o do papel da denúncia de corrupção ou e abusos do poder por parte dos que trabalham nos próprios serviços públicos. Há vários países, como a Grã-Bretanha, onde a lei encoraja as denúncias, protegendo os autores das informações de perseguição disciplinar ou outra, desde que feitas de boa-fé e em prol do bem público. Ora, a blogosfera proporciona condições óptimas para que os colaboradores dos serviços levem ao conhecimentos público os casos de corrupção ou de violação das leis em geral, aproveitando-se do seu conhecimento interno. É aqui que se levanta o controverso tema do anonimato na blogosfera, muito frequente, que recorrentemente vem à tona. De facto, se nuns casos o anonimato constitui uma compreensível protecção do autor, sem a qual as suas informações e advertências não viriam a público, noutros muitos casos o anonimato é apenas a cobertura para patifarias de toda a espécie.
A blogosfera não parece ser uma moda, condenada a desaparecer como outras. A sua relevância é crescente, e estimável, particularmente na esfera política. Mas, por enquanto, dada a sua reduzida dimensão e influência, é pelo menos excessivo falar num "novo poder". Só o tempo pode dizer se algum dia o será.
(Público, terça-feira, 23 de Agosto de 2005)