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18 de agosto de 2005

Que país, este! 

Vital Moreira

Há dias, no PÚBLICO, a propósito dos incêndios florestais, Paulo Varela Gomes referia "o território dos armazéns mais ou menos ilegais, cheios de materiais de obra, roupas, mobiliário, coisas de pirotecnia, encostados a casas ou escondidos nos eucaliptais, o território dos parques de sucata entre pinheiros, rodeados de charcos de óleo, poças de gasolina, garrafas de gás, o território dos lugares que nem aldeias são, debruados a lixeiras, paletes de madeira a apodrecer, bermas atafulhadas de papel velho, embalagens, ervas secas (...), o território onde, à beira de cada estradeca, no sopé de casa encosta, convenientemente escondido dos olhares pelas silvas e os tufos espessos de arbustos, há milhares - literalmente milhares - de lixeiras clandestinas, mobília velha, garrafas de plástico, madeiras de obras (é verdade, embora poucos o saibam: o campo, em Portugal, é muito mais sujo que as cidades)".
Trata-se de um retrato implacável da fealdade e da sujidade terceiro-mundista do nosso país, que, infelizmente, não se limita ao backyard suburbano, mas que pode ser encontrado por esse país fora, por montanhas e vales, incluindo áreas protegidas, onde sempre aparecem, omnipresentes, os sinais da má-criação das pessoas e do desleixo das autoridades. Quem tem a oportunidade de caminhar pelas serras não pode deixar de se surpreender desagradavelmente por encontrar por todo o lado, mesmo nos sítios mais recônditos e nos barrancos mais inacessíveis, as inevitáveis garrafas e sacos de plástico, garrafas de cerveja, latas de Coca-Cola, restos de comida, fraldas descartáveis, etc.
No Verão, são as praias as principais vítimas da invasão dos vândalos da natureza. E não me refiro às praias de pescadores, esses modelos inultrapassáveis de imundície, onde se acumulam caoticamente restos de embarcações e de redes, pescado apodrecido, caixas de plástico, latas de óleo e bidões de combustível, e tudo o resto. Mesmo as praias mais afastadas são vítimas dos detritos deixados pelos veraneantes ou alijados pelos barcos de passagem e depositados pelas marés, sem que ninguém os recolha. A esse triste fado não escapam as áreas protegidas nem os parques naturais. É incrível a quantidade infindável e a enorme variedade de porcaria que pode encontrar-se, por exemplo, no périplo de uma ilha da ria Formosa, incluindo vários electrodomésticos ferrugentos ou mesmo um velho aparelho de televisão "perdidos" nas dunas! À falta de escrúpulos e irresponsabilidade das pessoas soma-se a incapacidade, inépcia ou negligência das autoridades marítimas e ambientais. Imaginemos se não fosse um parque natural!
Um outro flagelo do país é a construção e o urbanismo selvagem (como Varela Gomes também referiu). Constrói-se em todo o lado, a esmo, casas, barracões, oficinas, fábricas, em terrenos agrícolas e em florestas, nas dunas e nas encostas. A reserva agrícola nacional vai sendo diariamente ocupada, incluindo os melhores terrenos nas lezírias do Tejo, nos campos das bacias do Liz, do Mondego, do Vouga, etc. As florestas escondem vivendas e armazéns, numa mistura sem critério. As serras e as arribas e dunas litorais vão ficando pintalgadas de casas de segunda habitação, de arquitectura quase sempre pirosa, muitas vezes aproveitando a criminosa falta de planos de protecção ou violando impunemente os que existem.
A essa sina não fogem, mais uma vez, as áreas protegidas e os parques naturais. Com a agravante de, em vários casos, se tratar de ocupação selvagem do domínio público. Em nenhum lugar isso é tão revoltante como nas ilhas-barreira da ria Formosa, na corda que vai de Faro a Tavira. A única ilha que resta sem ocupação (por isso popularmente conhecida por "ilha deserta") é a ilha da Barreta, em frente de Faro, e mesmo aí depois da demolição nos anos 80 de um aglomerado urbano iniciado na sua ponta leste, junto à barra Faro-Olhão. Tem havido vários anúncios políticos de, pelo menos, parar o crescimento das implantações existentes. Mas quem visita regulamente as ilhas verifica facilmente que, todos os anos, há numerosas casas novas em todas elas, seja como reconstrução, seja como construção de raiz. É possível, por exemplo, observar, à vista de todos, a descarga, com máquinas pesadas, de enormes batelões com muitas toneladas de ferro para construção junto a uma dessas povoações, numa actividade perfeitamente organizada. O recente plano de ordenamento da zona prevê não somente a contenção da expansão urbanística, mas inclusive a "renaturalização" de algumas áreas ocupadas. Mas quando não se nota a mínima capacidade para estancar novas ocupações não se pode seriamente pretender que há vontade política para "renaturalizar" o que quer que seja.
O que se passa no Algarve - e noutras zonas do país - é o triste resultado da falta de escrúpulos privados, da insuficiência de meios de vigilância no terreno e da ausência de determinação política dos governos na defesa do ambiente e do património público. A passagem do tempo não faz mais do que consolidar factos consumados e animar expectativas de protecção dos "interesses legítimos" criados. A inércia só fomenta o sentimento de impunidade para novos atentados. Um Governo como o actual, que mostrou tanta determinação na luta contra pretensos direitos adquiridos de funcionários públicos, bem poderia mostrar uma pequena dose da mesma no combate à destruição do património natural e à ocupação selvagem do património público por esse país fora.
Portugal enfrenta, desde há muito, os desafios do desenvolvimento e da modernização, que a integração da União Europeia simultaneamente tornou mais exigente (dado o nosso atraso de partida) e mais fácil (dadas as ajudas comunitárias). Mesmo com as presentes dificuldades económicas e financeiras, há razões para alguma satisfação com o que se conseguiu e para expectativa de melhores progressos no futuro. Há domínios, porém, em que resistências atávicas parecem desafiar todos os esforços de modernização. Continua a cuspir-se no chão ou a atirar piriscas para o lado, a jogar jornais pela janela do carro, a deixar para trás os restos de um piquenique, a depositar electrodomésticos velhos na ribanceira mais próxima, a alimentar clandestinamente as milhentas lixeiras clandestinas que conspurcam a paisagem, poluem os rios e desfeiam as praias e as serras. Continua a haver construção clandestina por todo o lado, mesmo em terrenos da colectividade.
Queixamo-nos, com razão, de falta de capital, de formação profissional, de produtividade, de espírito empresarial - tudo razões para explicar os nossos inêxitos no campo do desenvolvimento económico. Mas falta-nos ainda mais educação ambiental, civismo, responsabilidade pessoal e respeito pelo património colectivo. Enquanto esse défice de educação e de carácter não for superado, Portugal nunca pode deixar de ser aquilo que continua a ser: um país feio, sujo e desordenado para além de toda a escala admissível na Europa.
(Público, Terça-feira, 16 de Agosto de 2005)

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