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11 de agosto de 2005

Resposta a Mário Pinto 

por Vital Moreira

O artigo de Mário Pinto (M.P.) no PÚBLICO da semana passada - o segundo artigo que dedica a contestar o meu artigo sobre a escola pública de há umas semanas - merece algumas notas de comentário.
Para desqualificar a discussão, ele começa por me acusar de "parti pris" contra a Igreja Católica. Debalde o faz. Por mais que a história e a prática da Igreja Católica justifiquem preconceitos, eu não tenho nenhum. Limito-me a combater as suas tentativas, e dos seus representantes, para parasitar o Estado ou manter ou conquistar privilégios públicos ilegítimos. Mas não deixa de ser lastimável que sempre que alguém critica as posições da Igreja (o que nem é o caso nesta controvérsia...), os seus porta-vozes recorram logo ao velho anátema de anticatolicismo. Atavismos...
Não existe nenhum "monopólio da escola pública" entre nós, ao contrário do que o meu opositor insiste em proclamar, contra toda a evidência. A prova são, desde logo, as muitas escolas católicas, incluindo a Universidade Católica, para além de escolas sem caracterização religiosa. É certo que uma parte das escolas privadas se deve a insuficiência ou deficiência das escolas públicas (por exemplo, a limitação do horário das escolas primárias). Mas não tenho dúvidas de que em outros casos a preferência de escolas privadas se deve a outros motivos (motivos religiosos, prestígio social, qualidade, etc.). É um direito que assiste a quem quer e pode, tal como sucede, por exemplo, com a escolha de clínicas privadas, em vez dos hospitais do SNS. Em Portugal existe liberdade de criação de escolas privadas, bem como a liberdade de as frequentar, para quem prefira não aproveitar o ensino público.
Em matéria de ensino, tal como em matéria de cuidados de saúde ou e segurança social, o Estado não concorre com as entidades privadas. O ensino público, tal como o SNS ou a segurança social pública, não é uma actividade comercial sujeita ao mercado. O Estado limita-se a cumprir obrigações constitucionais. Falar em "concorrência desleal" pelo facto de o ensino público ser gratuito (tal como é o SNS) e o Estado não financiar igualmente o ensino privado (ou as clínicas privadas) é pelo menos despropositado.
É certo que a teoria do Estado social não exige que seja o Estado, ele mesmo, a proceder à prestação de serviços públicos. Estes podem ser prestados por entidades privadas em regime de concessão ou outra forma de contratualização de serviços públicos e de financiamento público de serviços prestados por entidades privadas. Esses esquemas são desde sempre conhecidos no campo das "utilities" (electricidade, água, transportes, etc.). Mas nada impede a sua utilização em relação aos serviços "não comerciais". Em muitos países os serviços de saúde são predominantemente assegurados por entidades privadas, mediante esquemas de contratualização ou de financiamento público.
No caso do ensino, porém, pelo menos nos países de tradição laica, o serviço público de ensino precede em muito as ideias do Estado social e sempre esteve associado à escola pública, como espaço aberto, plural e não confessional. A ideia básica é a de que cabe à escola pública assegurar a formação da cidadania e a coesão social em condições de igualdade, sem discriminações de nenhuma espécie, não devendo o Estado fomentar nem favorecer esquemas de segregação escolar de acordo com linhas de clivagem social, étnica ou religiosa, como sucede em países de tradição de ensino religioso.
Surpreendentemente, Mário Pinto considera uma limitação da escola pública o impedimento constitucional de o Estado programar o ensino público de acordo com quaisquer directivas filosóficas, ideológicas ou religiosas, em contraposição com as escola privadas, que não estão naturalmente sujeitas a essa restrição. Só que aquilo que ele considera uma limitação é o grande argumento a favor da escola pública, obrigada que está a abordar todas as perspectivas, sem exclusões nem privilégios. Em vez de poderem seguir uma cartilha ideológica ou doutrinária, as escolas públicas têm de ser espaços abertos, facultando o confronto de ideias e de perspectivas. De resto, só assim podem ser as coisas, num Estado constitucionalmente baseado num princípio de não-indentificação com nenhuma linha ideológica ou doutrinária.
É isso que faz a singularidade da escola pública no contexto dos demais serviços públicos, cujas prestações são em geral substituíveis, sem prejuízo, por prestações idênticas de entidades privadas (por exemplo, cuidados de saúde) e que por isso podem ser livremente "externalizadas" ou subcontratadas a fornecedores privados. É também por isso que, nos casos em que, por défice de oferta da rede escolar pública, a lei consente a contratualização de serviço público de ensino com escolas privadas ("contratos de associação"), o Estado tem a obrigação de garantir que esse ensino seja prestado em condições que emulem o mais aproximadamente possível o ensino público. Assim, se o Estado não tem o poder de programar o ensino público sob o ponto de vista religioso (não confessionalidade do ensino público) não pode ter também o poder de contratualizar com escolas privadas a prestação de ensino confessionalmente identificado.
Neste contexto, os adversários da escola pública invocam sempre a liberdade de aprender e de ensinar. Contra si inadvertidamente o fazem, porém. A liberdade de aprender e de ensinar não se confunde com a liberdade de criação de escolas privadas e com inerente liberdade da sua orientação, aspectos que a Constituição distingue devidamente. A liberdade de aprender e de ensinar protege especificamente a liberdade individual de professores e de estudantes no que respeita à orientação do ensino ministrado ou recebido, respectivamente. Ora, é evidente que, nesta perspectiva, a escola pública pede meças às escolas privadas confessionais, visto que nem professores nem estudantes estão sujeitos a orientações nem a directivas ideológicas ou doutrinárias. A não discriminação na selecção de professores e de estudantes constitui a principal garantia de respeito dessa liberdade na escola pública, coisa que as escolas confessionais não podem obviamente assegurar.
Em desespero de causa, os adversários da escola pública defendem que o Estado não deve encarregar-se do ensino, nem de outros direitos sociais ou culturais, devendo limitar-se às "tarefas soberanas". É obviamente livre a opinião sobre as tarefas do Estado. Mas quem as define é a Constituição e o voto dos eleitores e não os opinion makers, sobretudo quando são parte interessada. A Constituição diz o que diz e não o que o lobby do ensino privado queria que ela dissesse.
(Público, terça-feira, 9 de Agosto de 2005)

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