29 de setembro de 2005
A globalização dos direitos humanos
por Vital Moreira
No seu relatório In larger freedom, de Março deste ano, o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, incluiu a garantia dos direitos humanos e a promoção da democracia entre os grandes objectivos da ONU, a par da segurança internacional e do desenvolvimento. Apesar de as principais reformas propostas noutras áreas não terem sido acolhidas na recente cimeira das Nações Unidas (desde logo a reforma do Conselho de Segurança), já houve alguns passos positivos no caso dos direitos humanos.
As Nações Unidas estão incindivelmente ligadas à história dos direitos humanos, na medida em que a sua instituição em 1945 marca decididamente a internacionalização daqueles. Com a Carta de São Francisco os direitos humanos deixaram de ser uma questão interna para se transformarem em preocupação e objecto de protecção internacional. O preâmbulo da Carta das Nações Unidas referia explicitamente a protecção internacional dos direitos humanos. Não surpreende por isso que logo em 1946 tenha sido criada no âmbito da ONU uma Comissão dos Direitos Humanos (CDH), com sede em Genebra, como fórum de monitorização e de discussão da matéria.
Foi também no âmbito das Nações Unidas que foi aprovada em 1948 a histórica Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual, embora despida de força vinculativa, veio a afirmar-se como a base do código internacional dos direitos humanos que a partir delas viria desenvolver-se. Desse código fazem parte, entre outras, as duas convenções fundamentais de 1966, respectivamente o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais, ambos aprovados igualmente sob a égide da ONU.
As credenciais das Nações Unidas como sistema internacional de protecção dos direitos humanos estão portanto estabelecidas desde o princípio, não somente como plataforma de mundialização dos seus instrumentos normativos, mas também como instância de protecção, através dos meios acolhidos em cada uma daquelas convenções e em muitas outras. A face mais visível das Nações Unidas nesta frente é o alto-comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, bem como a referida Comissão dos Direitos Humanos, composta por 53 países, eleitos pela Assembleia Geral, tendo em conta um critério de repartição geográfica, que se reúne em Genebra, durante seis semanas, em Março/Abril de cada ano. Nela participam também as organizações não-governamentais, fazendo da comissão um grande fórum de discussão global sobre a situação e as violações dos direitos humanos. Não pode negar-se o grande papel da CDH na denúncia das violações de direitos humanos e na aprovação de padrões para a sua defesa. Entre as questões mais frequentemente analisadas constam o direito à autodeterminação, o racismo, a tortura e as execuções sumárias, a intolerância religiosa, os direitos das mulheres e das crianças, bem como dos indígenas, dos imigrantes e das minorias, etc., etc.
Sucede, porém, que os referidos mecanismos se revelaram insuficientes, incluindo por défice de meios, ou vieram a mostrar-se viciados pela sua instrumentalização por interesses alheios, se não hostis, aos direitos humanos. Tal é o caso particularmente da CDH, cujo papel foi parcialmente desacreditado pela designação de países com um péssimo currículo de violação dos direitos mais básicos, como a Líbia e o Sudão, levando ao bloqueio do agendamento de muitas situações de violação dos direitos humanos. Não admira por isso que K. Annan tenha proposto um reforço dos meios do Alto-Comissariado para os Direitos Humanos, bem como a substituição da CDH por um novo Conselho de Direitos Humanos, com regras de eleição e de funcionamento que permitiriam evitar os defeitos actuais. Entre as mudanças propostas constava a eleição desse novo órgão por maioria de 2/3 - para impedir ou dificultar a eleição daqueles países -, bem como o seu funcionamento permanente - ao contrário do que hoje sucede com a CDH, que tem uma sessão de algumas semanas -, de modo a conferir-lhe maior visibilidade e capacidade de actuação. A nova forma de eleição dos membros, levando em conta o desempenho dos países candidatos em matéria de direitos humanos, é essencial para reforçar a autoridade e a credibilidade internacional do conselho; por sua vez, o funcionamento permanente evita desde logo o sucessivo protelamento de questões de um ano para o outro, como hoje sucede muitas vezes.
A criação de um novo Conselho dos Direitos Humanos, que teve a sua origem numa proposta suíça, colheu o apoio da generalidade dos países membros da ONU, com algumas conspícuas excepções, onde avultam a Bielorrússia, Cuba, Venezuela, Birmânia, Vietname, Síria, Paquistão, etc. Um grupo pouco recomendável, como se vê.
Infelizmente, como se sabe, a cimeira foi em grande parte um insucesso, não tendo havido possibilidade de levar por diante as ousadas propostas de K. Annan, desde logo no que respeita à composição do Conselho de Segurança (com os Estados Unidos à frente da oposição). No entanto, no que respeita aos direitos humanos, a resolução que veio a ser aprovada sempre inclui a criação do novo Conselho de Direitos Humanos, ainda que remetendo a sua configuração para futura resolução da Assembleia Geral. Magra conquista, tendo em conta a proposta inicial. Mas não deixa de ser um passo em frente, que pode dar às Nações Unidas novos instrumentos de actuação na defesa dos direitos humanos.
Outra das ideias-chave do documento de Annan era a afirmação da responsabilidade dos Estados pela protecção dos civis em relação a actos de genocídio, crimes de guerra, "limpeza étnica" e crimes contra a humanidade. Trata-se de um "passo histórico" (como considerou a Human Rights Watch, uma das mais conhecidas ONG para os direitos humanos), que colhe as lições terríveis do Ruanda, da Bósnia-Herzegovina, de Timor-Leste ou do Darfur. Não é preciso sublinhar a importância desta ideia. No caso de falha dos Estados em assegurar essa protecção, fica aberto o caminho para a intervenção da comunidade internacional através das Nações Unidas.
À defesa dos direitos humanos, a proposta do secretário-geral das Nações Unidas associava a promoção da democracia, embora aí as suas propostas fossem menos ousadas, limitando-se quase somente a secundar a proposta de George Bush para a criação de um "fundo para a democracia", alimentado por contribuições voluntárias dos Estados-membros. Trata-se de institucionalizar uma solução para apoiar financeiramente países em processo de transição democrática ameaçados por graves carências de meios materiais e financeiros. Resta saber qual vai ser a resposta que os países ricos vão dar a esse desafio.
Por mais modestas que pareçam ser as medidas aprovadas, elas anunciam, porém, se vierem a ser implementadas, um importante progresso na missão das Nações Unidas em relação aos direitos humanos. Considerando o descrédito em que caiu a actual Comissão dos Direitos Humanos e as dificuldades até agora experimentadas para enfrentar as situações de violação maciça de direitos humanos, as Nações Unidas bem precisavam desta reforma. E Portugal, que apoiou essas propostas, não deve deixar de alinhar decididamente nos esforços para as pôr em prática.
(Público, Terça-Feira, 27 de Setembro de 2005)
No seu relatório In larger freedom, de Março deste ano, o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, incluiu a garantia dos direitos humanos e a promoção da democracia entre os grandes objectivos da ONU, a par da segurança internacional e do desenvolvimento. Apesar de as principais reformas propostas noutras áreas não terem sido acolhidas na recente cimeira das Nações Unidas (desde logo a reforma do Conselho de Segurança), já houve alguns passos positivos no caso dos direitos humanos.
As Nações Unidas estão incindivelmente ligadas à história dos direitos humanos, na medida em que a sua instituição em 1945 marca decididamente a internacionalização daqueles. Com a Carta de São Francisco os direitos humanos deixaram de ser uma questão interna para se transformarem em preocupação e objecto de protecção internacional. O preâmbulo da Carta das Nações Unidas referia explicitamente a protecção internacional dos direitos humanos. Não surpreende por isso que logo em 1946 tenha sido criada no âmbito da ONU uma Comissão dos Direitos Humanos (CDH), com sede em Genebra, como fórum de monitorização e de discussão da matéria.
Foi também no âmbito das Nações Unidas que foi aprovada em 1948 a histórica Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual, embora despida de força vinculativa, veio a afirmar-se como a base do código internacional dos direitos humanos que a partir delas viria desenvolver-se. Desse código fazem parte, entre outras, as duas convenções fundamentais de 1966, respectivamente o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais, ambos aprovados igualmente sob a égide da ONU.
As credenciais das Nações Unidas como sistema internacional de protecção dos direitos humanos estão portanto estabelecidas desde o princípio, não somente como plataforma de mundialização dos seus instrumentos normativos, mas também como instância de protecção, através dos meios acolhidos em cada uma daquelas convenções e em muitas outras. A face mais visível das Nações Unidas nesta frente é o alto-comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, bem como a referida Comissão dos Direitos Humanos, composta por 53 países, eleitos pela Assembleia Geral, tendo em conta um critério de repartição geográfica, que se reúne em Genebra, durante seis semanas, em Março/Abril de cada ano. Nela participam também as organizações não-governamentais, fazendo da comissão um grande fórum de discussão global sobre a situação e as violações dos direitos humanos. Não pode negar-se o grande papel da CDH na denúncia das violações de direitos humanos e na aprovação de padrões para a sua defesa. Entre as questões mais frequentemente analisadas constam o direito à autodeterminação, o racismo, a tortura e as execuções sumárias, a intolerância religiosa, os direitos das mulheres e das crianças, bem como dos indígenas, dos imigrantes e das minorias, etc., etc.
Sucede, porém, que os referidos mecanismos se revelaram insuficientes, incluindo por défice de meios, ou vieram a mostrar-se viciados pela sua instrumentalização por interesses alheios, se não hostis, aos direitos humanos. Tal é o caso particularmente da CDH, cujo papel foi parcialmente desacreditado pela designação de países com um péssimo currículo de violação dos direitos mais básicos, como a Líbia e o Sudão, levando ao bloqueio do agendamento de muitas situações de violação dos direitos humanos. Não admira por isso que K. Annan tenha proposto um reforço dos meios do Alto-Comissariado para os Direitos Humanos, bem como a substituição da CDH por um novo Conselho de Direitos Humanos, com regras de eleição e de funcionamento que permitiriam evitar os defeitos actuais. Entre as mudanças propostas constava a eleição desse novo órgão por maioria de 2/3 - para impedir ou dificultar a eleição daqueles países -, bem como o seu funcionamento permanente - ao contrário do que hoje sucede com a CDH, que tem uma sessão de algumas semanas -, de modo a conferir-lhe maior visibilidade e capacidade de actuação. A nova forma de eleição dos membros, levando em conta o desempenho dos países candidatos em matéria de direitos humanos, é essencial para reforçar a autoridade e a credibilidade internacional do conselho; por sua vez, o funcionamento permanente evita desde logo o sucessivo protelamento de questões de um ano para o outro, como hoje sucede muitas vezes.
A criação de um novo Conselho dos Direitos Humanos, que teve a sua origem numa proposta suíça, colheu o apoio da generalidade dos países membros da ONU, com algumas conspícuas excepções, onde avultam a Bielorrússia, Cuba, Venezuela, Birmânia, Vietname, Síria, Paquistão, etc. Um grupo pouco recomendável, como se vê.
Infelizmente, como se sabe, a cimeira foi em grande parte um insucesso, não tendo havido possibilidade de levar por diante as ousadas propostas de K. Annan, desde logo no que respeita à composição do Conselho de Segurança (com os Estados Unidos à frente da oposição). No entanto, no que respeita aos direitos humanos, a resolução que veio a ser aprovada sempre inclui a criação do novo Conselho de Direitos Humanos, ainda que remetendo a sua configuração para futura resolução da Assembleia Geral. Magra conquista, tendo em conta a proposta inicial. Mas não deixa de ser um passo em frente, que pode dar às Nações Unidas novos instrumentos de actuação na defesa dos direitos humanos.
Outra das ideias-chave do documento de Annan era a afirmação da responsabilidade dos Estados pela protecção dos civis em relação a actos de genocídio, crimes de guerra, "limpeza étnica" e crimes contra a humanidade. Trata-se de um "passo histórico" (como considerou a Human Rights Watch, uma das mais conhecidas ONG para os direitos humanos), que colhe as lições terríveis do Ruanda, da Bósnia-Herzegovina, de Timor-Leste ou do Darfur. Não é preciso sublinhar a importância desta ideia. No caso de falha dos Estados em assegurar essa protecção, fica aberto o caminho para a intervenção da comunidade internacional através das Nações Unidas.
À defesa dos direitos humanos, a proposta do secretário-geral das Nações Unidas associava a promoção da democracia, embora aí as suas propostas fossem menos ousadas, limitando-se quase somente a secundar a proposta de George Bush para a criação de um "fundo para a democracia", alimentado por contribuições voluntárias dos Estados-membros. Trata-se de institucionalizar uma solução para apoiar financeiramente países em processo de transição democrática ameaçados por graves carências de meios materiais e financeiros. Resta saber qual vai ser a resposta que os países ricos vão dar a esse desafio.
Por mais modestas que pareçam ser as medidas aprovadas, elas anunciam, porém, se vierem a ser implementadas, um importante progresso na missão das Nações Unidas em relação aos direitos humanos. Considerando o descrédito em que caiu a actual Comissão dos Direitos Humanos e as dificuldades até agora experimentadas para enfrentar as situações de violação maciça de direitos humanos, as Nações Unidas bem precisavam desta reforma. E Portugal, que apoiou essas propostas, não deve deixar de alinhar decididamente nos esforços para as pôr em prática.
(Público, Terça-Feira, 27 de Setembro de 2005)
18 de setembro de 2005
A Europa da Defesa
Por Ana Gomes
A União Europeia nas suas relações externas tem como objectivos defender a Paz e promover os direitos humanos, a democracia e a estabilidade na boa-governação. Na gestão de crises procura intervir através de uma combinação de persuasão diplomática, cooperação para o desenvolvimento, assistência humanitária, comércio, assistência técnica, apoio à reforma dos sectores de segurança, reconstrução e integração regional. No entanto, em situações extremas, a União tem de estar preparada para contribuições mais 'musculadas', incluindo a intervenção militar - como na operação ARTEMIS, em 2003, em que forças europeias pela primeira vez avançaram para travar massacres iminentes na República Democrática do Congo (no quadro de um mandato da ONU, mas sem acompanhamento de parceiros transatlânticos, indisponíveis).
Como o Ruanda e os Balcãs tristemente ilustraram pela ausência de acção internacional a tempo, a intervenção militar é também uma ferramenta, de ultimo recurso, que deve ser posta ao serviço do direito internacional e do multilateralismo. Ao serviço da «responsabilidade de proteger» que Kofi Annan vem promovendo como principio estruturante de uma ONU reformada, consequência dos direitos humanos e do objectivo da Paz. Principio que decorre do conceito de «segurança humana» e pode assim sobrepor-se à velha «soberania dos Estados».
Na Estratégia Europeia de Defesa que Javier Solana apresentou em 2003 sustenta-se que "temos de desenvolver uma cultura estratégica que promova uma intervenção precoce, rápida e, se necessário, enérgica". A Estratégia identifica o terrorismo, os conflitos regionais e os Estados-falhados como fontes de insegurança que se alimentam mutuamente e por isso, por vezes exigem uma resposta militar da comunidade internacional. O exemplo paradigmático deste nexo era então o Afeganistão, em que tensões regionais, a ausência de um poder central e a presença de movimentos extremistas criaram ambiente fértil para o treino e exportação do 'know-how' terrorista com vários alvos, o mais espectacularmente devastador desferido a 11 de Setembro de 2001. A série de atentados terroristas desde então, incluindo recentemente Londres, demonstram que os fanáticos se multiplicaram, sofisticaram e disseminaram globalmente. A defesa da Europa e do mundo exige assim que a UE esteja preparada para contribuir, no quadro do direito internacional, para a resolução de conflitos regionais e para a estabilização de Estados frágeis, inclusivé por meios militares.
A dimensão militar da Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD) amadureceu consideravelmente desde o seu nascimento no fim da década de 90 (em consequência do falhanço nos Balcãs, porque justamente antes a Europa não tinha ainda PESC nem PESD). A União impôs-se objectivos ambiciosos quanto à geração de forças de carácter expedicionário e de intervenção rápida em situações de crise. Mas a realidade é que os 25 Estados Membros somam actualmente 2 milhões de tropas, das quais só entre 3% e 4% podem ser projectados fora do continente europeu.
Num contexto de fraco crescimento económico como o actual, e apesar da percepção das ameaças acrescidas, não será fácil que os cidadãos aceitem afectar mais recursos orçamentais à área da defesa, enquanto as Forças Armadas dos 25 Estados Membros não demonstrarem que gastam melhor os ?160 biliões globalmente já à sua disposição. E isso exige que se transformem, adaptem às novas necessidades, se especializem em áreas de excelência e, acima de tudo, que invistam em capacidades de projecção estratégica de forças.
E a melhor maneira de começar é gastar mais racionalmente os cerca de 30 biliões de EUROS que os 25 Estados Membros dedicam à aquisição de material militar. É difícil aceitar 25 políticas de aquisição militar paralelas, concebidas e aplicadas autonomamente, descoordenadamente, muitas vezes em sobreposição, com apenas esporádica cooperação em projectos como o Eurofighter e o A400M. Para além disso, a relutância dos 25 Estados Membros em abrir os mercados nacionais de material militar às regras de concorrência que prevalecem no mercado interno europeu contribui para estratégias de aquisição politicamente ultrapassadas, economicamente ineficientes, opacas do ponto de vista legal e logo, propiciadoras da corrupção. E, acima de tudo, incompatíveis com os objectivos da União no que respeita à PESD.
Mas as doutrinas de defesa estão a mudar e com elas mudarão as políticas de aquisição nacionais. O papel da recém-criada Agência Europeia de Defesa pode e deve ser determinante nesse sentido. A adesão dos Estados Membros da União ao conceito dos 'Battlegroups' - unidades de forças expedicionárias compostas por 1.500 militares de um ou mais países da UE, com vocação para a gestão de crises em cenários hostis e longínquos - revela uma tomada de consciência das prioridades.
Nessa linha, o Ministro da Defesa português sublinhou em entrevista recente ao «Expresso» que as FA portuguesas precisavam de "mais capacidade expedicionária. E mais capacidade conjunta, mais complementaridade, capacidade de modulação e interoperabilidade entre as forças." Em termos de doutrina militar, Luis Amado sublinhou que "precisamos de passar de uma visão, em certos sectores, ainda muito estática e muito territorial das FA, para uma outra com configuração dinâmica, flexível, de reacção rápida e projecção de força, de interoperabilidade e de acção conjunta." Tem razão o Ministro.
Conviria também admitirmos que Portugal tem cometido erros - com responsabilidades partilhadas entre o PSD e o PS - na aquisição de equipamento militar, à luz do contexto em que missões conjuntas impõem interoperabilidade, cooperação e partilha de responsabilidades como prioridades. O contrato de aquisição de submarinos, por exemplo, não responde a qualquer necessidade no contexto da Aliança Atlântica e muito menos no contexto da PESD.
Outro exemplo, resultado da ânsia colaboracionista com a Administração Bush de Paulo Portas, foi a retirada de Portugal do mais emblemático dos projectos militares europeus - o avião de transporte A400M da Airbus - em troca da aquisição de Hercules C-130J da Lockheed Martin (que afinal não concretizou, por se ter sabido das deficiências tecnológicas de que enfermam). A participação nacional no projecto europeu, para além das capacidades tecnológicas de ponta que promoveria no tecido industrial do país, era também estratégica politicamente: tratava-se de inserir Portugal entre as nações que se juntaram para dotar a Europa de um meio militar fundamental - o transporte estratégico - e assim colmatar lacunas graves na autonomia estratégica europeia. Esperemos que o actual governo concretize a alteração de rumo que o Ministro Luis Amado sugeriu. Tanto mais que o retorno ao projecto A400M implicará dar entretanto mais trabalho às OGMA com o «up-grading» dos Hercules C-130 já propriedade da FAP - trabalho que as OGMA estão, de resto, a fazer nos aviões do mesmo tipo pertencentes à Força Aérea Francesa (e para o efeito não lhes falha o apoio técnico da Lockheed Martin).
10 anos depois de Srebrenica, a UE já tem hoje a Missão ALTHEA, com 7.000 homens das EUFOR, na Bosnia-Herzegovina. À medida que as Forças Armadas europeias forem abandonando doutrinas militares baseadas na defesa territorial e que a integração europeia for contribuindo para uma convergência de interesses estratégicos e da percepção de ameaças, mais os governos serão pressionados a partilhar meios militares, cooperar sistematicamente na aquisição de equipamentos e investir na divisão de tarefas e especialização. Só assim a Europa deixará de ser o gigante económico que globalmente se projecta como anão no plano político. Os europeus precisam de melhor Defesa e esperam mais coerência e eficácia da acção da UE na esfera internacional. E o mundo também precisa de mais e melhor Europa, incluindo a da Defesa.
(Escrito em 19.07.05, publicado no «EXPRESSO» em 6.8.05)
A União Europeia nas suas relações externas tem como objectivos defender a Paz e promover os direitos humanos, a democracia e a estabilidade na boa-governação. Na gestão de crises procura intervir através de uma combinação de persuasão diplomática, cooperação para o desenvolvimento, assistência humanitária, comércio, assistência técnica, apoio à reforma dos sectores de segurança, reconstrução e integração regional. No entanto, em situações extremas, a União tem de estar preparada para contribuições mais 'musculadas', incluindo a intervenção militar - como na operação ARTEMIS, em 2003, em que forças europeias pela primeira vez avançaram para travar massacres iminentes na República Democrática do Congo (no quadro de um mandato da ONU, mas sem acompanhamento de parceiros transatlânticos, indisponíveis).
Como o Ruanda e os Balcãs tristemente ilustraram pela ausência de acção internacional a tempo, a intervenção militar é também uma ferramenta, de ultimo recurso, que deve ser posta ao serviço do direito internacional e do multilateralismo. Ao serviço da «responsabilidade de proteger» que Kofi Annan vem promovendo como principio estruturante de uma ONU reformada, consequência dos direitos humanos e do objectivo da Paz. Principio que decorre do conceito de «segurança humana» e pode assim sobrepor-se à velha «soberania dos Estados».
Na Estratégia Europeia de Defesa que Javier Solana apresentou em 2003 sustenta-se que "temos de desenvolver uma cultura estratégica que promova uma intervenção precoce, rápida e, se necessário, enérgica". A Estratégia identifica o terrorismo, os conflitos regionais e os Estados-falhados como fontes de insegurança que se alimentam mutuamente e por isso, por vezes exigem uma resposta militar da comunidade internacional. O exemplo paradigmático deste nexo era então o Afeganistão, em que tensões regionais, a ausência de um poder central e a presença de movimentos extremistas criaram ambiente fértil para o treino e exportação do 'know-how' terrorista com vários alvos, o mais espectacularmente devastador desferido a 11 de Setembro de 2001. A série de atentados terroristas desde então, incluindo recentemente Londres, demonstram que os fanáticos se multiplicaram, sofisticaram e disseminaram globalmente. A defesa da Europa e do mundo exige assim que a UE esteja preparada para contribuir, no quadro do direito internacional, para a resolução de conflitos regionais e para a estabilização de Estados frágeis, inclusivé por meios militares.
A dimensão militar da Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD) amadureceu consideravelmente desde o seu nascimento no fim da década de 90 (em consequência do falhanço nos Balcãs, porque justamente antes a Europa não tinha ainda PESC nem PESD). A União impôs-se objectivos ambiciosos quanto à geração de forças de carácter expedicionário e de intervenção rápida em situações de crise. Mas a realidade é que os 25 Estados Membros somam actualmente 2 milhões de tropas, das quais só entre 3% e 4% podem ser projectados fora do continente europeu.
Num contexto de fraco crescimento económico como o actual, e apesar da percepção das ameaças acrescidas, não será fácil que os cidadãos aceitem afectar mais recursos orçamentais à área da defesa, enquanto as Forças Armadas dos 25 Estados Membros não demonstrarem que gastam melhor os ?160 biliões globalmente já à sua disposição. E isso exige que se transformem, adaptem às novas necessidades, se especializem em áreas de excelência e, acima de tudo, que invistam em capacidades de projecção estratégica de forças.
E a melhor maneira de começar é gastar mais racionalmente os cerca de 30 biliões de EUROS que os 25 Estados Membros dedicam à aquisição de material militar. É difícil aceitar 25 políticas de aquisição militar paralelas, concebidas e aplicadas autonomamente, descoordenadamente, muitas vezes em sobreposição, com apenas esporádica cooperação em projectos como o Eurofighter e o A400M. Para além disso, a relutância dos 25 Estados Membros em abrir os mercados nacionais de material militar às regras de concorrência que prevalecem no mercado interno europeu contribui para estratégias de aquisição politicamente ultrapassadas, economicamente ineficientes, opacas do ponto de vista legal e logo, propiciadoras da corrupção. E, acima de tudo, incompatíveis com os objectivos da União no que respeita à PESD.
Mas as doutrinas de defesa estão a mudar e com elas mudarão as políticas de aquisição nacionais. O papel da recém-criada Agência Europeia de Defesa pode e deve ser determinante nesse sentido. A adesão dos Estados Membros da União ao conceito dos 'Battlegroups' - unidades de forças expedicionárias compostas por 1.500 militares de um ou mais países da UE, com vocação para a gestão de crises em cenários hostis e longínquos - revela uma tomada de consciência das prioridades.
Nessa linha, o Ministro da Defesa português sublinhou em entrevista recente ao «Expresso» que as FA portuguesas precisavam de "mais capacidade expedicionária. E mais capacidade conjunta, mais complementaridade, capacidade de modulação e interoperabilidade entre as forças." Em termos de doutrina militar, Luis Amado sublinhou que "precisamos de passar de uma visão, em certos sectores, ainda muito estática e muito territorial das FA, para uma outra com configuração dinâmica, flexível, de reacção rápida e projecção de força, de interoperabilidade e de acção conjunta." Tem razão o Ministro.
Conviria também admitirmos que Portugal tem cometido erros - com responsabilidades partilhadas entre o PSD e o PS - na aquisição de equipamento militar, à luz do contexto em que missões conjuntas impõem interoperabilidade, cooperação e partilha de responsabilidades como prioridades. O contrato de aquisição de submarinos, por exemplo, não responde a qualquer necessidade no contexto da Aliança Atlântica e muito menos no contexto da PESD.
Outro exemplo, resultado da ânsia colaboracionista com a Administração Bush de Paulo Portas, foi a retirada de Portugal do mais emblemático dos projectos militares europeus - o avião de transporte A400M da Airbus - em troca da aquisição de Hercules C-130J da Lockheed Martin (que afinal não concretizou, por se ter sabido das deficiências tecnológicas de que enfermam). A participação nacional no projecto europeu, para além das capacidades tecnológicas de ponta que promoveria no tecido industrial do país, era também estratégica politicamente: tratava-se de inserir Portugal entre as nações que se juntaram para dotar a Europa de um meio militar fundamental - o transporte estratégico - e assim colmatar lacunas graves na autonomia estratégica europeia. Esperemos que o actual governo concretize a alteração de rumo que o Ministro Luis Amado sugeriu. Tanto mais que o retorno ao projecto A400M implicará dar entretanto mais trabalho às OGMA com o «up-grading» dos Hercules C-130 já propriedade da FAP - trabalho que as OGMA estão, de resto, a fazer nos aviões do mesmo tipo pertencentes à Força Aérea Francesa (e para o efeito não lhes falha o apoio técnico da Lockheed Martin).
10 anos depois de Srebrenica, a UE já tem hoje a Missão ALTHEA, com 7.000 homens das EUFOR, na Bosnia-Herzegovina. À medida que as Forças Armadas europeias forem abandonando doutrinas militares baseadas na defesa territorial e que a integração europeia for contribuindo para uma convergência de interesses estratégicos e da percepção de ameaças, mais os governos serão pressionados a partilhar meios militares, cooperar sistematicamente na aquisição de equipamentos e investir na divisão de tarefas e especialização. Só assim a Europa deixará de ser o gigante económico que globalmente se projecta como anão no plano político. Os europeus precisam de melhor Defesa e esperam mais coerência e eficácia da acção da UE na esfera internacional. E o mundo também precisa de mais e melhor Europa, incluindo a da Defesa.
(Escrito em 19.07.05, publicado no «EXPRESSO» em 6.8.05)
ONU - desmascarar o bluff
Por Ana Gomes
Em 2000, na ONU, os Chefes de Estado de todo o Mundo comprometeram-se pelos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio. Esta semana, 5 anos depois, na Cimeira comemorativa do 60º aniversário das Nações Unidas, deveriam fazer o balanço do caminho percorrido e decidir reformar a ONU para fazer face às novas ameaças globais (terrorismo, proliferação de conflitos e de ADM, pobreza, violação dos direitos humanos, degradação ambiental, etc...).
O caminho foi preparado por dois excelentes relatórios, um encomendado por Kofi Annan a um Painel de Alto Nível, e outro apresentado pelo próprio Secretário Geral.
Ninguém mais do que a Administração Bush clamou por reformas da ONU e do Direito Internacional. A inacção da ONU havia sido argumento invocado por Washington para justificar a ofensiva contra o Iraque sem respaldo do Conselho de Segurança e no Direito Internacional. Também, ninguém denegriu mais as capacidades da ONU - ainda em Junho no Congresso, o Republicano Henry Hyde ameaçava que, sem profunda reforma da ONU, os EUA deixariam de pagar contribuições (representando 20% do orçamento da ONU) .
Mas, afinal, era tudo «bluff»! Os governantes dos EUA, tal como os da China e Russia, não querem reforma nenhuma da ONU. Como está, serve-lhes: ora de bode expiatório, ora de cortina de fumo, para a própria incoerência, os seus dois pesos e duas medidas e a sua própria inacção. Há muito que se percebia que não iriam viabilizar o alargamento do Conselho de Segurança (Portugal apoiou o quarteto pretendente, Alemanha, Japão, Brasil e India, quando o que importava era defender o que os cidadãos europeus querem e a construção da Europa impõe - um lugar de membro permanente para a UE; com a vantagem de que essa exigência, se assumida pela maioria dos governos europeus, tornaria realmente imparável a reforma do CS).
Mas a prova, provadinha, de que por parte da Administração Bush não interessa apoiar e modernizar a ONU, antes descredibilizá-la e, assim, desarticular o multilateralismo, reside nos três arrasadores torpedos que lhe lançou nas últimas semanas:
- O primeiro foi a nomeação pelo Presidente Bush do «ultra neo-con» John Bolton para embaixador na ONU, ultrapassando o Congresso. O mesmo que na Comissão dos Direitos Humanos, em Genebra, onde o conheci, dizia que «não há nada disso de Nações Unidas. Há comunidade internacional, que ocasionalmente pode ser liderada pela única superpotência, os EUA, se isso servir os nossos interesses e se conseguirmos fazer os outros seguir-nos». O mesmo que defendeu (como Osama Bin Laden decerto não desdenharia), que a sede da ONU, com 38 andares, «se perdesse dez, não fazia diferença nenhuma..."
- O segundo foi a «performance» de lançamento de Bolton: as 700 e tal propostas de emenda ao texto que estava há meses a ser negociado para ser aprovado nesta Cimeira, esvaziando os mais importantes compromissos assumidos em 2000 e as vias de reforma da ONU que já reuniam amplo consenso. Bolton propôs, por exemplo, eliminar referências aos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, ao Tribunal Penal Internacional, ao Protocolo de Kyoto e ao desarmamento. É sintomática a cruzada contra o desarmamento - a que os EUA estão vinculados, designamente, no âmbito do Tratado de Não Proliferação Nuclear (cuja revisão, em Maio passado, também frustraram): o desígnio é armar, conceber e utilizar novas gerações de armas nucleares ? mesmo que a proliferação inerente conduza a Humanidade ao holocausto nuclear.
- O terceiro torpedo destinava-se a silenciar quem tem autoridade, credibilidade e conhecimento para defender a ONU e o Direito Internacional. Quem precisava de ser punido por ter ousado denunciar a guerra do Iraque como ilegal. E por isso foi agora divulgado o Relatório Volcker, a pretexto da falta de controlo das ineficiências e abusos do Programa «Oil for Food» para o Iraque de Saddam (praticados com o assentimento de todos os P5 e em beneficio das suas empresas e governos clientes). No «timing» ideal para intimidar Kofi Annan - o Secretário-Geral da ONU que desde sempre mais reformas empreendeu, o que melhor as pensou e soube promover. (Ironicamente, e não obstante este e outros ataques, diversas agências da ONU, vocacionadas para a ajuda exclusiva aos países em desenvolvimento, acorreram a ajudar cidadãos do mais rico país do mundo afectados pelo Katrina e deixados cair pela escandalosa inoperância da sua Administração face a uma mais que anunciada catástrofe).
Claro que nas negociações nesta Cimeira houve complicações criadas por outros países para entravar o consenso sobre reformas substanciais. Os africanos, por exemplo, não endossaram o G-4, e Cuba, Paquistão e Egipto, entre outros, agarraram-se às emendas de Bolton para baralhar mais a negociação. Mas, nem outra coisa seria de esperar, com os EUA, a Russia e a China a darem os sinais que deram... Era aí, justamente, que a liderança de uma grande potência poderia ter feito toda a diferença para criar uma dinâmica irresístivel.
Pouco será, assim, de esperar da Cimeira. O que mostra, no fundo, tal como o Katrina, a falta de visão e de capacidade estratégica dos EUA, a superpotência que resta mas já em «imperial overstrecht. A sua actual Administração despreza e desperdiça um poderoso instrumento para legitimar e efectivar o poderio americano à escala planetária - a ONU e a via multilateral em geral. O «bluff» da reforma da ONU, tal como o «bluff» da preparação de emergência que o Katrina expôs (revelando também alarmante impreparação para acorrer a vítimas de um ataque terrorista), põem de facto a nu a incompetência e desastrosa governação da Administração Bush. E os custos não são apenas suportados pelos americanos: paga-os toda a Humanidade. Em insegurança global.
(Escrito em 12.9.05, publicado no «COURRIER INTERNACIONAL»,16.9.05)
Em 2000, na ONU, os Chefes de Estado de todo o Mundo comprometeram-se pelos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio. Esta semana, 5 anos depois, na Cimeira comemorativa do 60º aniversário das Nações Unidas, deveriam fazer o balanço do caminho percorrido e decidir reformar a ONU para fazer face às novas ameaças globais (terrorismo, proliferação de conflitos e de ADM, pobreza, violação dos direitos humanos, degradação ambiental, etc...).
O caminho foi preparado por dois excelentes relatórios, um encomendado por Kofi Annan a um Painel de Alto Nível, e outro apresentado pelo próprio Secretário Geral.
Ninguém mais do que a Administração Bush clamou por reformas da ONU e do Direito Internacional. A inacção da ONU havia sido argumento invocado por Washington para justificar a ofensiva contra o Iraque sem respaldo do Conselho de Segurança e no Direito Internacional. Também, ninguém denegriu mais as capacidades da ONU - ainda em Junho no Congresso, o Republicano Henry Hyde ameaçava que, sem profunda reforma da ONU, os EUA deixariam de pagar contribuições (representando 20% do orçamento da ONU) .
Mas, afinal, era tudo «bluff»! Os governantes dos EUA, tal como os da China e Russia, não querem reforma nenhuma da ONU. Como está, serve-lhes: ora de bode expiatório, ora de cortina de fumo, para a própria incoerência, os seus dois pesos e duas medidas e a sua própria inacção. Há muito que se percebia que não iriam viabilizar o alargamento do Conselho de Segurança (Portugal apoiou o quarteto pretendente, Alemanha, Japão, Brasil e India, quando o que importava era defender o que os cidadãos europeus querem e a construção da Europa impõe - um lugar de membro permanente para a UE; com a vantagem de que essa exigência, se assumida pela maioria dos governos europeus, tornaria realmente imparável a reforma do CS).
Mas a prova, provadinha, de que por parte da Administração Bush não interessa apoiar e modernizar a ONU, antes descredibilizá-la e, assim, desarticular o multilateralismo, reside nos três arrasadores torpedos que lhe lançou nas últimas semanas:
- O primeiro foi a nomeação pelo Presidente Bush do «ultra neo-con» John Bolton para embaixador na ONU, ultrapassando o Congresso. O mesmo que na Comissão dos Direitos Humanos, em Genebra, onde o conheci, dizia que «não há nada disso de Nações Unidas. Há comunidade internacional, que ocasionalmente pode ser liderada pela única superpotência, os EUA, se isso servir os nossos interesses e se conseguirmos fazer os outros seguir-nos». O mesmo que defendeu (como Osama Bin Laden decerto não desdenharia), que a sede da ONU, com 38 andares, «se perdesse dez, não fazia diferença nenhuma..."
- O segundo foi a «performance» de lançamento de Bolton: as 700 e tal propostas de emenda ao texto que estava há meses a ser negociado para ser aprovado nesta Cimeira, esvaziando os mais importantes compromissos assumidos em 2000 e as vias de reforma da ONU que já reuniam amplo consenso. Bolton propôs, por exemplo, eliminar referências aos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, ao Tribunal Penal Internacional, ao Protocolo de Kyoto e ao desarmamento. É sintomática a cruzada contra o desarmamento - a que os EUA estão vinculados, designamente, no âmbito do Tratado de Não Proliferação Nuclear (cuja revisão, em Maio passado, também frustraram): o desígnio é armar, conceber e utilizar novas gerações de armas nucleares ? mesmo que a proliferação inerente conduza a Humanidade ao holocausto nuclear.
- O terceiro torpedo destinava-se a silenciar quem tem autoridade, credibilidade e conhecimento para defender a ONU e o Direito Internacional. Quem precisava de ser punido por ter ousado denunciar a guerra do Iraque como ilegal. E por isso foi agora divulgado o Relatório Volcker, a pretexto da falta de controlo das ineficiências e abusos do Programa «Oil for Food» para o Iraque de Saddam (praticados com o assentimento de todos os P5 e em beneficio das suas empresas e governos clientes). No «timing» ideal para intimidar Kofi Annan - o Secretário-Geral da ONU que desde sempre mais reformas empreendeu, o que melhor as pensou e soube promover. (Ironicamente, e não obstante este e outros ataques, diversas agências da ONU, vocacionadas para a ajuda exclusiva aos países em desenvolvimento, acorreram a ajudar cidadãos do mais rico país do mundo afectados pelo Katrina e deixados cair pela escandalosa inoperância da sua Administração face a uma mais que anunciada catástrofe).
Claro que nas negociações nesta Cimeira houve complicações criadas por outros países para entravar o consenso sobre reformas substanciais. Os africanos, por exemplo, não endossaram o G-4, e Cuba, Paquistão e Egipto, entre outros, agarraram-se às emendas de Bolton para baralhar mais a negociação. Mas, nem outra coisa seria de esperar, com os EUA, a Russia e a China a darem os sinais que deram... Era aí, justamente, que a liderança de uma grande potência poderia ter feito toda a diferença para criar uma dinâmica irresístivel.
Pouco será, assim, de esperar da Cimeira. O que mostra, no fundo, tal como o Katrina, a falta de visão e de capacidade estratégica dos EUA, a superpotência que resta mas já em «imperial overstrecht. A sua actual Administração despreza e desperdiça um poderoso instrumento para legitimar e efectivar o poderio americano à escala planetária - a ONU e a via multilateral em geral. O «bluff» da reforma da ONU, tal como o «bluff» da preparação de emergência que o Katrina expôs (revelando também alarmante impreparação para acorrer a vítimas de um ataque terrorista), põem de facto a nu a incompetência e desastrosa governação da Administração Bush. E os custos não são apenas suportados pelos americanos: paga-os toda a Humanidade. Em insegurança global.
(Escrito em 12.9.05, publicado no «COURRIER INTERNACIONAL»,16.9.05)
15 de setembro de 2005
O poder local como problema
por Vital Moreira
É inegável que o conceito público do poder local se modificou consideravelmente ao longo da sua evolução desde o 25 de Abril. Se, no princípio, era unanimemente considerado como uma das conquistas exemplares do novo regime democrático, são hoje muitas as vozes que sublinham as suas deficiências e que reclamam a sua profunda reforma. Nas vésperas de eleições locais, importa analisar os motivos para esta mudança.
São conhecidas as razões que fizeram do poder local uma história de sucesso. Em primeiro lugar, a proximidade em relação aos cidadãos fez dele a mais óbvia expressão da democracia, tanto mais que o sistema de governo local incluiu a escolha directa dos presidentes dos órgãos executivos (juntas de freguesia e câmaras municipais) e não somente das assembleias representativas. Em segundo lugar, as funções alargadas e os novos meios financeiros conferidos aos municípios permitiram que eles se tornassem os protagonistas mais visíveis do progresso económico e social do país, nomeadamente no que se refere aos serviços públicos essenciais (água, saneamento, transportes colectivos, etc.) e a infra-estruturas básicas (estradas, equipamentos sociais, piscinas, complexos culturais e desportivos, etc.). Enquanto o Governo e a administração central foram passando por ciclos económicos e financeiros desfavoráveis, o poder local, mercê de um regime financeiro propício, conseguiu manter uma capacidade regular de investimento e de crescimento de despesa pública, que o resguardou da erosão política do Governo central.
Contudo, com o tempo foram-se manifestando alguns traços menos favoráveis do poder local. Entre eles avultam a falta de renovação política em muitas autarquias, havendo presidentes de câmara municipal que se mantêm no cargo desde as primeiras eleições em 1976; o urbanismo caótico e a desorganização urbana em muitas zonas do país; a preferência pela obra física visível, secundarizando a menos visível (como o saneamento básico e o ambiente); as "ligações perigosas" entre o poder local, o sector imobiliário e o futebol; a ocorrência de algumas graves situações de caciquismo populista, de corrupção e de financiamento irregular de partidos políticos; a acumulação de prerrogativas e de privilégios dos autarcas (por exemplo, regime de pensões e de acumulações); o empolamento dos quadros de pessoal; as frequentes acusações de favoritismo político-partidário, ou mesmo de gritante nepotismo, no recrutamento de pessoal e na contratação de bens e serviços.
Na verdade, existe hoje um relativo consenso sobre os principais problemas do poder local. A lista é longa, mas entre eles contam-se seguramente os seguintes: défice de renovação política no mundo autárquico, de que os "dinossauros" são a face mais visível; incongruência crescente do sistema de governo, entre o modelo de órgãos colegiais previstos na Constituição e o crescente presidencialismo do poder local; a excessiva dependência de recursos financeiros do Orçamento do Estado, conjugada com um défice de responsabilidade financeira das autarquias e a demasiada importância do sector imobiliário como fonte de receitas municipais; a ineficiência dos mecanismos de controlo endógeno e exógeno do poder local, dada a ineficácia das assembleias locais, a falta de meios de escrutínio popular externo e a impotência dos meios de tutela estadual; a relativa opacidade e falta de critérios da administração municipal em várias áreas, designadamente no recrutamento de pessoal, nos contratos de aquisição de bens e serviços, nos licenciamentos, no apoio a particulares e a iniciativas privadas; a referida promiscuidade com os interesses imobiliários; a proliferação de entidades de administração indirecta, como empresas municipais e fundações municipais, que tornam a gestão municipal mais imune ao escrutínio público.
Não admira, por tudo isto, que a reforma do poder local esteja na agenda política pública desde há vários anos, especialmente centrada sobre os temas mais visíveis, como a limitação do número de mandatos, a reforma do sistema de governo e a revisão das finanças locais. Mas, bem vistas as coisas, tudo ou quase tudo no regime do poder local carece de revisão mais ou menos profunda, desde o regime de criação e extinção de autarquias até à tutela governamental, desde os serviços municipais até ao regime das empresas públicas municipais.
A actual maioria parlamentar já tomou algumas medidas que não podem deixar de ser aplaudidas, como a limitação dos mandatos dos presidentes dos órgãos executivos locais - que não poderão ultrapassar três mandatos consecutivos - e o fim de alguns privilégios em matéria de regime de pensões e de acumulações dos autarcas. São duas mudanças emblemáticas, que eliminam dois dos principais fundamentos para a má imagem do poder local, acima referidos. Foi também anunciada, e importa retomar, a ideia de extinção de freguesias e municípios que deixaram de ter substrato mínimo, por efeito de alterações demográficas.
Os próximos passos devem incluir a reforma da lei das finanças locais e do regime de governo local. Quanto à primeira, existe grande convergência de opiniões sobre as linhas de reforma: reforço dos meios financeiros próprios dos municípios e diminuição das transferências do Orçamento do Estado; redução do peso dos impostos e taxas derivados do sector imobiliário, tornando os municípios menos dependentes dele; maior visibilidade pública dos impostos e das taxas de serviços municipais, de modo a aumentar a responsabilidade política dos governantes locais em relação às finanças locais. Definitivamente, as eleições locais devem passar a versar não somente sobre as despesas públicas a realizar, mas também sobre o modo de obter os recursos necessários para as financiar.
Por sua vez, a questão do sistema de governo local está na agenda da reforma política pelo menos desde a revisão constitucional de 1997, que desconstitucionalizou em grande parte essa matéria, deixando para a lei o seu desenho concreto, lei que carece de uma maioria de 2/3, exigindo portanto um compromisso entre o PS e o PSD. As posições dos dois principais partidos convergem no sentido de haver uma só eleição para escolha simultânea do presidente da câmara municipal e da assembleia municipal, assegurando ao partido vencedor pelo menos uma maioria absoluta no executivo municipal (PSD) ou mesmo a totalidade da sua composição (PS). Pessoalmente, tenho combatido a primeira das ideias referidas, por entender que, se se quer enveredar por um genuíno presidencialismo local, então isso tem de passar por eleições separadas da assembleia e do presidente da câmara. Nas versões dos dois partidos existe um evidente risco de criação de uma espécie de despotismo do presidente do executivo municipal, que só pode "legalizar" e agravar a situação presente.
Seja como for, quase trinta anos depois da instauração do poder local democrático entre nós, é tempo de tirar as lições da experiência, proceder às mudanças que se impõem, vencer as resistências instaladas, estabilizar e consolidar o quadro jurídico do poder local. Tradicionalmente, o poder local entre nós era regulado por um instrumento normativo abrangente, o "código administrativo". Com o 25 de Abril, o Código Administrativo de 1940, que regulou a administração local até ao fim do Estado Novo, foi rapidamente substituído, quase integralmente, por um crescente número de leis avulsas (eleições locais, atribuições e competências, finanças locais, tutela do poder local, estatuto dos eleitos locais, empresas municipais, etc., etc.). É tempo de pensar em congregar de novo o corpo normativo regulador do poder local num único instrumento legislativo. Com o largo horizonte temporal deste Governo, até 2009, não seria despropositado pensar em lançar ombros, finalmente, à tarefa de elaboração de um novo código de poder local.
(Público, Terça-feira, 13 de Setembro de 2005)
É inegável que o conceito público do poder local se modificou consideravelmente ao longo da sua evolução desde o 25 de Abril. Se, no princípio, era unanimemente considerado como uma das conquistas exemplares do novo regime democrático, são hoje muitas as vozes que sublinham as suas deficiências e que reclamam a sua profunda reforma. Nas vésperas de eleições locais, importa analisar os motivos para esta mudança.
São conhecidas as razões que fizeram do poder local uma história de sucesso. Em primeiro lugar, a proximidade em relação aos cidadãos fez dele a mais óbvia expressão da democracia, tanto mais que o sistema de governo local incluiu a escolha directa dos presidentes dos órgãos executivos (juntas de freguesia e câmaras municipais) e não somente das assembleias representativas. Em segundo lugar, as funções alargadas e os novos meios financeiros conferidos aos municípios permitiram que eles se tornassem os protagonistas mais visíveis do progresso económico e social do país, nomeadamente no que se refere aos serviços públicos essenciais (água, saneamento, transportes colectivos, etc.) e a infra-estruturas básicas (estradas, equipamentos sociais, piscinas, complexos culturais e desportivos, etc.). Enquanto o Governo e a administração central foram passando por ciclos económicos e financeiros desfavoráveis, o poder local, mercê de um regime financeiro propício, conseguiu manter uma capacidade regular de investimento e de crescimento de despesa pública, que o resguardou da erosão política do Governo central.
Contudo, com o tempo foram-se manifestando alguns traços menos favoráveis do poder local. Entre eles avultam a falta de renovação política em muitas autarquias, havendo presidentes de câmara municipal que se mantêm no cargo desde as primeiras eleições em 1976; o urbanismo caótico e a desorganização urbana em muitas zonas do país; a preferência pela obra física visível, secundarizando a menos visível (como o saneamento básico e o ambiente); as "ligações perigosas" entre o poder local, o sector imobiliário e o futebol; a ocorrência de algumas graves situações de caciquismo populista, de corrupção e de financiamento irregular de partidos políticos; a acumulação de prerrogativas e de privilégios dos autarcas (por exemplo, regime de pensões e de acumulações); o empolamento dos quadros de pessoal; as frequentes acusações de favoritismo político-partidário, ou mesmo de gritante nepotismo, no recrutamento de pessoal e na contratação de bens e serviços.
Na verdade, existe hoje um relativo consenso sobre os principais problemas do poder local. A lista é longa, mas entre eles contam-se seguramente os seguintes: défice de renovação política no mundo autárquico, de que os "dinossauros" são a face mais visível; incongruência crescente do sistema de governo, entre o modelo de órgãos colegiais previstos na Constituição e o crescente presidencialismo do poder local; a excessiva dependência de recursos financeiros do Orçamento do Estado, conjugada com um défice de responsabilidade financeira das autarquias e a demasiada importância do sector imobiliário como fonte de receitas municipais; a ineficiência dos mecanismos de controlo endógeno e exógeno do poder local, dada a ineficácia das assembleias locais, a falta de meios de escrutínio popular externo e a impotência dos meios de tutela estadual; a relativa opacidade e falta de critérios da administração municipal em várias áreas, designadamente no recrutamento de pessoal, nos contratos de aquisição de bens e serviços, nos licenciamentos, no apoio a particulares e a iniciativas privadas; a referida promiscuidade com os interesses imobiliários; a proliferação de entidades de administração indirecta, como empresas municipais e fundações municipais, que tornam a gestão municipal mais imune ao escrutínio público.
Não admira, por tudo isto, que a reforma do poder local esteja na agenda política pública desde há vários anos, especialmente centrada sobre os temas mais visíveis, como a limitação do número de mandatos, a reforma do sistema de governo e a revisão das finanças locais. Mas, bem vistas as coisas, tudo ou quase tudo no regime do poder local carece de revisão mais ou menos profunda, desde o regime de criação e extinção de autarquias até à tutela governamental, desde os serviços municipais até ao regime das empresas públicas municipais.
A actual maioria parlamentar já tomou algumas medidas que não podem deixar de ser aplaudidas, como a limitação dos mandatos dos presidentes dos órgãos executivos locais - que não poderão ultrapassar três mandatos consecutivos - e o fim de alguns privilégios em matéria de regime de pensões e de acumulações dos autarcas. São duas mudanças emblemáticas, que eliminam dois dos principais fundamentos para a má imagem do poder local, acima referidos. Foi também anunciada, e importa retomar, a ideia de extinção de freguesias e municípios que deixaram de ter substrato mínimo, por efeito de alterações demográficas.
Os próximos passos devem incluir a reforma da lei das finanças locais e do regime de governo local. Quanto à primeira, existe grande convergência de opiniões sobre as linhas de reforma: reforço dos meios financeiros próprios dos municípios e diminuição das transferências do Orçamento do Estado; redução do peso dos impostos e taxas derivados do sector imobiliário, tornando os municípios menos dependentes dele; maior visibilidade pública dos impostos e das taxas de serviços municipais, de modo a aumentar a responsabilidade política dos governantes locais em relação às finanças locais. Definitivamente, as eleições locais devem passar a versar não somente sobre as despesas públicas a realizar, mas também sobre o modo de obter os recursos necessários para as financiar.
Por sua vez, a questão do sistema de governo local está na agenda da reforma política pelo menos desde a revisão constitucional de 1997, que desconstitucionalizou em grande parte essa matéria, deixando para a lei o seu desenho concreto, lei que carece de uma maioria de 2/3, exigindo portanto um compromisso entre o PS e o PSD. As posições dos dois principais partidos convergem no sentido de haver uma só eleição para escolha simultânea do presidente da câmara municipal e da assembleia municipal, assegurando ao partido vencedor pelo menos uma maioria absoluta no executivo municipal (PSD) ou mesmo a totalidade da sua composição (PS). Pessoalmente, tenho combatido a primeira das ideias referidas, por entender que, se se quer enveredar por um genuíno presidencialismo local, então isso tem de passar por eleições separadas da assembleia e do presidente da câmara. Nas versões dos dois partidos existe um evidente risco de criação de uma espécie de despotismo do presidente do executivo municipal, que só pode "legalizar" e agravar a situação presente.
Seja como for, quase trinta anos depois da instauração do poder local democrático entre nós, é tempo de tirar as lições da experiência, proceder às mudanças que se impõem, vencer as resistências instaladas, estabilizar e consolidar o quadro jurídico do poder local. Tradicionalmente, o poder local entre nós era regulado por um instrumento normativo abrangente, o "código administrativo". Com o 25 de Abril, o Código Administrativo de 1940, que regulou a administração local até ao fim do Estado Novo, foi rapidamente substituído, quase integralmente, por um crescente número de leis avulsas (eleições locais, atribuições e competências, finanças locais, tutela do poder local, estatuto dos eleitos locais, empresas municipais, etc., etc.). É tempo de pensar em congregar de novo o corpo normativo regulador do poder local num único instrumento legislativo. Com o largo horizonte temporal deste Governo, até 2009, não seria despropositado pensar em lançar ombros, finalmente, à tarefa de elaboração de um novo código de poder local.
(Público, Terça-feira, 13 de Setembro de 2005)
8 de setembro de 2005
A rentrée
por Vital Moreira
Com meio ano de mandato decorrido, onde nem tudo resultou pelo melhor, o modo como o Governo e o partido governamental conduzirem o arranque do novo ano político que agora se inicia é decisivo para o resto da legislatura e para o êxito, ou não, do Governo de José Sócrates.
Há coisas que não correram bem ao Governo, umas por culpa própria, outras por factores alheios. O receio de prejudicar a vitória eleitoral pactuou com algum "branqueamento" da situação financeira e económica do país antes das eleições e com a falta da previsão de medidas de austeridade que depois vieram a tornar-se inevitáveis (como a subida da carga fiscal). A saída prematura do ministro das Finanças - um caso evidente de fragilidade política - abalou transitoriamente a confiança na firmeza da política de disciplina das finanças públicas. A nomeação de um ou outro dirigente partidário sem credenciais bastantes para cargos de administração de empresas públicas (em que sobressai o lamentável caso da CGD) exaltou a susceptibilidade existente contra a aplicação do regime de spoil system ao sector empresarial do Estado. O anúncio de grandes investimentos em infra-estruturas de transportes públicos, desacompanhado dos estudos que as justificam e do esclarecimento sobre os seus custos e benefícios, suscitou uma desnecessária controvérsia. A isso somou-se a natural resistência dos sectores prejudicados pela perda de privilégios e regalias no âmbito da reforma da função pública, em geral, e dos regimes especiais, em especial.
Mas as circunstâncias envolventes da actividade governativa, que não dependem do Governo, foram tudo menos favoráveis. As previsões sobre o crescimento da economia europeia, de que a economia nacional é altamente dependente, continuaram em baixa. O preço do petróleo prosseguiu a sua subida para o céu, acentuando os factores recessivos da economia e provocando uma crescente sobrecarga da factura energética na balança comercial, aumento do preço de bens e serviços, entre os quais os transportes e a electricidade, etc. A prolongada seca aniquilou boa parte da produção agrícola, com os consequentes reflexos na subida dos preços e no aumento das importações. E até a longa e devastadora época dos fogos florestais consumiu grande dose de energia governamental e degradou ainda mais o clima de pessimismo nacional em relação à saída da crise.
E no entanto o saldo político do Governo tem a seu favor um notável conjunto de medidas, tanto no ataque à crise orçamental como na concretização de uma série de corajosas reformas no âmbito da função pública (nomeadamente o desaparecimento dos múltiplos regimes especiais), da sustentabilidade da segurança social (convergência do sector público com o regime geral, entre outras medidas), da saúde (sobretudo na área dos medicamentos), do ensino (aumento do tempo escolar no ensino básico, ensino precoce do inglês, lançamento do "processo de Bolonha" no ensino superior, etc.), da justiça (diminuição das férias judiciais), da comunicação social (projectos de lei da nova entidade reguladora do sector e revisão da lei de imprensa) e ainda no campo político (onde sobressai a aprovação da limitação dos mandatos dos autarcas e o fim do regime de pensões adicionais pelo exercício de cargos políticos).
Até agora o foco da opinião pública esteve indubitavelmente concentrado nas questões financeiras e nas medidas relativas à função pública. Essas áreas vão naturalmente continuar a reclamar as atenções, sobretudo as primeiras, na perspectiva do próximo orçamento para 2006, que terá de implementar as opções necessárias para reduzir o défice para o nível previsto no programa de consolidação orçamental enviado para Bruxelas. Mas, se quer romper o círculo em que corre o risco de ficar acossado, o Governo tem de ampliar a agenda política, dando maior visibilidade a outras áreas do seu programa, como as reformas políticas, da justiça e da administração pública.
Começando pela administração pública, do que se trata é de a tornar mais eficiente e mais célere, menos exigente em procedimentos e em custos, mais amiga das empresas e das pessoas, mais transparente e responsável e mais resistente à corrupção que a ameaça em todos os níveis (a luta contra a corrupção deveria estar no topo das prioridades políticas). As medidas de simplificação administrativa já adoptadas (como a simbólica "empresa na hora") ou anunciadas para breve (documento único automóvel e cartão único do cidadão) são um bom começo para uma tarefa tão abrangente quanto imprescindível para a modernização do Estado e do país. A recente iniciativa relativa à avaliação dos serviços da administração central não pode arrastar-se; tem de ser recuperada a avaliação dos institutos públicos, que vem do Governo anterior.
Outra área prioritária é a justiça, que é um dos sectores mais resistentes à mudança (desde logo pela força dos respectivos grupos profissionais), onde são necessárias medidas resolutas para corrigir a sua lentidão e melhorar a sua eficiência e capacidade de resposta em todas as frentes.
No campo da reforma política, há duas áreas que não podem ser adiadas. A primeira tem a ver com a descentralização e desconcentração da administração territorial, bem como a racionalização da administração territorial do Estado. Há que atacar decididamente a macrocefalia e a centralização administrativa, harmonizar as circunscrições territoriais das inúmeras administrações desconcentradas, gerar mecanismos de coordenação da administração regional do Estado, transferir novas responsabilidades para os municípios.
Todavia, na esfera política em sentido estrito, é altura de desencadear a reforma porventura mais emblemática e mais estruturante, que é a reforma do sistema eleitoral, no sentido da criação de círculos de um só deputado (círculos uninominais) para a eleição de uma parte substancial dos deputados, sem prejuízo de manutenção de um sistema globalmente proporcional. Não se trata somente de gerar uma categoria de deputados mais próximos dos seus eleitores, eleitos segundo uma racionalidade mais "personalizada" e por isso mais responsáveis perante aqueles. Trata-se também de favorecer um novo método de escolha de candidatos, menos dependente das direcções nacionais e distritais dos partidos e mais conforme com os méritos dos potenciais candidatos.
É certo que no horizonte temporal próximo estão também as eleições locais e as eleições presidenciais (para além do referendo da despenalização do aborto, que o PS não pode abandonar), podendo haver a tentação para "evitar ondas" que pudessem afectar os resultados eleitorais. Essa tentação não deve prevalecer. O Governo e o PS ganharam as eleições na base de um compromisso de mudança, de reforma e de modernização do país. Quanto mais evidente for a sua convicção e determinação nessa direcção, melhores condições se criarão para encarar airosamente os escolhos eleitorais ou para superar qualquer eventual desaire eleitoral, como "efeito colateral" das difíceis medidas que tem vindo a tomar. Mas é também para isso que servem as maiorias absolutas. O juízo eleitoral que o Governo deve temer é somente o de aqui a quatro anos. Até lá tem todas as possibilidades de tirar partido das reformas que agora toma e reverter mais tarde a situação em seu favor.
Ai dos governos que, em circunstâncias adversas e com um programa de reformas exigente e susceptível de criar descontentamentos sectoriais, governarem em função das sondagens eleitorais de cada momento ou das perdas de popularidade transitórias. Dificilmente chegarão ao fim da viagem, e sem a missão cumprida.
(Público, terça-feira, 6 de Setembro de 2005)
Com meio ano de mandato decorrido, onde nem tudo resultou pelo melhor, o modo como o Governo e o partido governamental conduzirem o arranque do novo ano político que agora se inicia é decisivo para o resto da legislatura e para o êxito, ou não, do Governo de José Sócrates.
Há coisas que não correram bem ao Governo, umas por culpa própria, outras por factores alheios. O receio de prejudicar a vitória eleitoral pactuou com algum "branqueamento" da situação financeira e económica do país antes das eleições e com a falta da previsão de medidas de austeridade que depois vieram a tornar-se inevitáveis (como a subida da carga fiscal). A saída prematura do ministro das Finanças - um caso evidente de fragilidade política - abalou transitoriamente a confiança na firmeza da política de disciplina das finanças públicas. A nomeação de um ou outro dirigente partidário sem credenciais bastantes para cargos de administração de empresas públicas (em que sobressai o lamentável caso da CGD) exaltou a susceptibilidade existente contra a aplicação do regime de spoil system ao sector empresarial do Estado. O anúncio de grandes investimentos em infra-estruturas de transportes públicos, desacompanhado dos estudos que as justificam e do esclarecimento sobre os seus custos e benefícios, suscitou uma desnecessária controvérsia. A isso somou-se a natural resistência dos sectores prejudicados pela perda de privilégios e regalias no âmbito da reforma da função pública, em geral, e dos regimes especiais, em especial.
Mas as circunstâncias envolventes da actividade governativa, que não dependem do Governo, foram tudo menos favoráveis. As previsões sobre o crescimento da economia europeia, de que a economia nacional é altamente dependente, continuaram em baixa. O preço do petróleo prosseguiu a sua subida para o céu, acentuando os factores recessivos da economia e provocando uma crescente sobrecarga da factura energética na balança comercial, aumento do preço de bens e serviços, entre os quais os transportes e a electricidade, etc. A prolongada seca aniquilou boa parte da produção agrícola, com os consequentes reflexos na subida dos preços e no aumento das importações. E até a longa e devastadora época dos fogos florestais consumiu grande dose de energia governamental e degradou ainda mais o clima de pessimismo nacional em relação à saída da crise.
E no entanto o saldo político do Governo tem a seu favor um notável conjunto de medidas, tanto no ataque à crise orçamental como na concretização de uma série de corajosas reformas no âmbito da função pública (nomeadamente o desaparecimento dos múltiplos regimes especiais), da sustentabilidade da segurança social (convergência do sector público com o regime geral, entre outras medidas), da saúde (sobretudo na área dos medicamentos), do ensino (aumento do tempo escolar no ensino básico, ensino precoce do inglês, lançamento do "processo de Bolonha" no ensino superior, etc.), da justiça (diminuição das férias judiciais), da comunicação social (projectos de lei da nova entidade reguladora do sector e revisão da lei de imprensa) e ainda no campo político (onde sobressai a aprovação da limitação dos mandatos dos autarcas e o fim do regime de pensões adicionais pelo exercício de cargos políticos).
Até agora o foco da opinião pública esteve indubitavelmente concentrado nas questões financeiras e nas medidas relativas à função pública. Essas áreas vão naturalmente continuar a reclamar as atenções, sobretudo as primeiras, na perspectiva do próximo orçamento para 2006, que terá de implementar as opções necessárias para reduzir o défice para o nível previsto no programa de consolidação orçamental enviado para Bruxelas. Mas, se quer romper o círculo em que corre o risco de ficar acossado, o Governo tem de ampliar a agenda política, dando maior visibilidade a outras áreas do seu programa, como as reformas políticas, da justiça e da administração pública.
Começando pela administração pública, do que se trata é de a tornar mais eficiente e mais célere, menos exigente em procedimentos e em custos, mais amiga das empresas e das pessoas, mais transparente e responsável e mais resistente à corrupção que a ameaça em todos os níveis (a luta contra a corrupção deveria estar no topo das prioridades políticas). As medidas de simplificação administrativa já adoptadas (como a simbólica "empresa na hora") ou anunciadas para breve (documento único automóvel e cartão único do cidadão) são um bom começo para uma tarefa tão abrangente quanto imprescindível para a modernização do Estado e do país. A recente iniciativa relativa à avaliação dos serviços da administração central não pode arrastar-se; tem de ser recuperada a avaliação dos institutos públicos, que vem do Governo anterior.
Outra área prioritária é a justiça, que é um dos sectores mais resistentes à mudança (desde logo pela força dos respectivos grupos profissionais), onde são necessárias medidas resolutas para corrigir a sua lentidão e melhorar a sua eficiência e capacidade de resposta em todas as frentes.
No campo da reforma política, há duas áreas que não podem ser adiadas. A primeira tem a ver com a descentralização e desconcentração da administração territorial, bem como a racionalização da administração territorial do Estado. Há que atacar decididamente a macrocefalia e a centralização administrativa, harmonizar as circunscrições territoriais das inúmeras administrações desconcentradas, gerar mecanismos de coordenação da administração regional do Estado, transferir novas responsabilidades para os municípios.
Todavia, na esfera política em sentido estrito, é altura de desencadear a reforma porventura mais emblemática e mais estruturante, que é a reforma do sistema eleitoral, no sentido da criação de círculos de um só deputado (círculos uninominais) para a eleição de uma parte substancial dos deputados, sem prejuízo de manutenção de um sistema globalmente proporcional. Não se trata somente de gerar uma categoria de deputados mais próximos dos seus eleitores, eleitos segundo uma racionalidade mais "personalizada" e por isso mais responsáveis perante aqueles. Trata-se também de favorecer um novo método de escolha de candidatos, menos dependente das direcções nacionais e distritais dos partidos e mais conforme com os méritos dos potenciais candidatos.
É certo que no horizonte temporal próximo estão também as eleições locais e as eleições presidenciais (para além do referendo da despenalização do aborto, que o PS não pode abandonar), podendo haver a tentação para "evitar ondas" que pudessem afectar os resultados eleitorais. Essa tentação não deve prevalecer. O Governo e o PS ganharam as eleições na base de um compromisso de mudança, de reforma e de modernização do país. Quanto mais evidente for a sua convicção e determinação nessa direcção, melhores condições se criarão para encarar airosamente os escolhos eleitorais ou para superar qualquer eventual desaire eleitoral, como "efeito colateral" das difíceis medidas que tem vindo a tomar. Mas é também para isso que servem as maiorias absolutas. O juízo eleitoral que o Governo deve temer é somente o de aqui a quatro anos. Até lá tem todas as possibilidades de tirar partido das reformas que agora toma e reverter mais tarde a situação em seu favor.
Ai dos governos que, em circunstâncias adversas e com um programa de reformas exigente e susceptível de criar descontentamentos sectoriais, governarem em função das sondagens eleitorais de cada momento ou das perdas de popularidade transitórias. Dificilmente chegarão ao fim da viagem, e sem a missão cumprida.
(Público, terça-feira, 6 de Setembro de 2005)
2 de setembro de 2005
Para além de Gaza
por Vital Moreira
Ainda ontem, poucos dias depois de consumada a retirada dos colonatos da faixa de Gaza, o Governo de Sharon anunciava a intensificação de um megacolonato na Cisjordânia. Se era precisa uma prova de que a retirada de Gaza não faz parte de uma súbita conversão de Israel ao "roteiro para paz" na Palestina, ela aí está. Infelizmente, só podem surpreender-se os crédulos.
De facto, a decisão unilateral de desmantelar os esparsos colonatos da pequena e superpovoada faixa de terra entre Israel e o mar Mediterrâneo não foi produto de uma repentina benevolência do Governo israelita nem em relação à comunidade internacional, que pressiona Israel para a descolonização dos territórios ocupados, nem muito menos em relação aos palestinianos. Como foi devidamente explicado, Gaza custava a Israel mais do que valia. Garantir a segurança de alguns escassos milhares de colonos judeus, em uns poucos colonatos espalhados no meio de mais de dois milhões de palestinianos, era demasiado exigente em termos militares e financeiros.
É certo que, com essa retirada, Sharon, que foi ele mesmo outrora o instigador da política de colonização judaica dos territórios ocupados, provocou a ira e o ódio dos colonos e o fanatismo dos fundamentalistas religiosos, partidários do Grande Israel, desde o Mediterrâneo ao Jordão. Mas tal utopia revelou-se em qualquer caso impossível, face à radical hostilidade encontrada e à desigual taxa de crescimento da população judaica e palestiniana, trazendo a prazo a certeza de uma maioria palestiniana dentro desse espaço. Excluída a possibilidade da sua deportação maciça para os países árabes vizinhos, como sucedeu no início da formação do Estado judaico - "solução final" que, porém, continua a ser acarinhada pelos extremistas do Grande Israel -, a opção realista só pode estar numa separação territorial que permita uma separação populacional.
Gaza foi o primeiro território a ser deixado para essa missão de "reserva de palestinianos". Ora, ao contrário do que sucedeu em Gaza, onde a colonização sempre fora reduzida, na Cisjordânia ela não tem cessado de se intensificar sob o Governo de Sharon. São regulares as notícias de ampliação dos colonatos existentes ou do estabelecimento de novos assentamentos israelitas. O mesmo se passa em Jerusalém. Trata-se em geral de colonatos contíguos com o território israelita, quase contínuos entre si, portanto muito mais fáceis de defender e de integrar do que os de Gaza. A construção do muro de separação - cuja edificação avançou, apesar da sua patente ilegalidade, como foi reconhecido pelo Tribunal Internacional de Justiça, na Haia - pretendeu dar ares de carácter definitivo a uma nova fronteira rasgada bem dentro dos territórios ocupados, colocando "do lado de Israel" uma parte considerável da Cisjordânia, incluindo seguramente as suas melhores terras.
É bom de ver que, nos projectos israelitas, a política de retirada de Gaza não é em nada contraditória com a intensificação da colonização na Cisjordânia. Pelo contrário, é instrumental. Do que se trata é de trocar objectivos revelados impossíveis - a anexação e colonização integral da Palestina - por um objectivo menos ambicioso, mas, julga Sharon, com melhores possibilidades de ser realizado. Mas é esse plano viável?
Só o seria, se os palestinianos o aceitassem sem resistência como facto consumado. Contudo, estas quatro décadas de ocupação violenta deveriam já ter convencido toda a gente de que tal não é possível. Por maior que seja o poderio militar dos ocupantes, o certo é que nas condições da Palestina, onde à humilhação da ocupação e da opressão se juntam as divisões éticas e religiosas dos dois povos, não faz sentido esperar a rendição e a aceitação do Diktat israelita. Nenhuma potência ocupante tem direito a esperar a aceitação da ocupação, seja na Palestina, no Iraque ou em Timor. A força pode conter ou mesmo eliminar transitoriamente a resistência. Mas basta um pequeno rastilho para que a insurreição retome a sua dinâmica própria.
Por este motivo, são tão irrealistas as exigências israelitas de fim da resistência palestiniana, como a intenção de levar a cabo pela força o projecto de anexação territorial, o qual só pode prometer a continuação indefinida do conflito, até que, como sucedeu agora com Gaza, Telavive se convença de que a paz só pode ser alcançada mediante a troca do reconhecimento do Estado palestiniano, nas fronteiras dos territórios ocupados (incluindo Jerusalém Oriental), com a segurança das fronteiras internacionalmente reconhecidas do próprio Estado de Israel. A frustração do projecto de colonização judaica e de anexação definitiva de todos os territórios ocupados -, eis porventura a grande consequência da manifesta impossibilidade de subjugar a resistência palestiniana ao longo de todos estes anos de política de ocupação e opressão nos territórios ocupados. O problema está em que Israel não admitiu até agora nunca trocar a paz pelo regresso às fronteiras territoriais de 1967. O mais próximo que esteve foi nas frustradas negociações de Camp David, onde, contudo, ficou aquém de ceder na questão da divisão de Jerusalém, questão inegociável para os palestinianos e que ditou (juntamente com a questão dos refugiados) o lamentável fracasso dessa cimeira, realizada sob os auspícios do presidente Clinton.
Enquanto houver em Israel quem pense em anexar definitivamente uma parte da Palestina ocupada, estarão legitimados também os sectores extremistas palestinianos que se recusam a aceitar a própria existência de Israel e não discriminam nos meios para o revelar. A referida troca - que, aliás, é a única solução conforme com o direito internacional e com as resoluções das Nações Unidas sobre a questão - juntamente com um compromisso equitativo na questão dos refugiados - abdicando os palestinianos do direito de regresso, a troco de adequada compensação pelos suas terras e haveres deixados em Israel (não vai pagar o Governo israelita generosíssimas compensações aos colonos forçados a abandonar a faixa de Gaza?) - são as únicas bases realistas em que pode assentar uma solução justa para o problema palestiniano.
Independentemente da retirada de Gaza, é legítimo e devido exigir à Autoridade Palestiniana que combata as acções terroristas e as facções extremistas que as praticam. Mas a renúncia ao terrorismo não pode significar pedir aos palestinos em geral, nem à Autoridade Palestiniana em especial, que abdiquem de todas as formas de luta contra a ocupação israelita. É evidente que, se o fizessem, estariam a aceitar irremediavelmente a anexação em curso. As potências ocupantes e coloniais tendem sempre a generalizar o conceito de terrorismo, para designar todas as acções de luta contra elas (recorde-se o que sucedeu entre nós com a guerra colonial, onde as forças nacionalistas eram geralmente apodadas de "terroristas", sem distinção da natureza das suas acções). Ora, nem tudo na resistência palestiniana é terrorismo, noção que tem a ver necessariamente com o ataque a civis. Não é terrorismo, porém, a desobediência civil, a Intifada das pedras, o ataque, mesmo armado, a objectivos militares ou das forças de segurança, ou a estabelecimentos, equipamentos e infra-estruturas do ocupante, etc. Tal como Israel recorre à violência para tentar consumar a sua anexação dos territórios ocupados, é mais do que legítimo ripostar com idênticos meios para repelir a ocupação. Estender o conceito de terrorismo a todas as formas de resistência é uma operação intelectualmente pouco honesta e politicamente inconsequente.
Parece evidente, em qualquer caso, que a intensificação da colonização israelita constitui no actual contexto uma qualificada e arrogante "provocação", que não pode esperar a passividade do lado palestiniano. Por isso, para além de Gaza resta todo o conflito para resolver, sem fim à vista.
(Público, Terça-feira, 30 de Agosto de 2005)
Ainda ontem, poucos dias depois de consumada a retirada dos colonatos da faixa de Gaza, o Governo de Sharon anunciava a intensificação de um megacolonato na Cisjordânia. Se era precisa uma prova de que a retirada de Gaza não faz parte de uma súbita conversão de Israel ao "roteiro para paz" na Palestina, ela aí está. Infelizmente, só podem surpreender-se os crédulos.
De facto, a decisão unilateral de desmantelar os esparsos colonatos da pequena e superpovoada faixa de terra entre Israel e o mar Mediterrâneo não foi produto de uma repentina benevolência do Governo israelita nem em relação à comunidade internacional, que pressiona Israel para a descolonização dos territórios ocupados, nem muito menos em relação aos palestinianos. Como foi devidamente explicado, Gaza custava a Israel mais do que valia. Garantir a segurança de alguns escassos milhares de colonos judeus, em uns poucos colonatos espalhados no meio de mais de dois milhões de palestinianos, era demasiado exigente em termos militares e financeiros.
É certo que, com essa retirada, Sharon, que foi ele mesmo outrora o instigador da política de colonização judaica dos territórios ocupados, provocou a ira e o ódio dos colonos e o fanatismo dos fundamentalistas religiosos, partidários do Grande Israel, desde o Mediterrâneo ao Jordão. Mas tal utopia revelou-se em qualquer caso impossível, face à radical hostilidade encontrada e à desigual taxa de crescimento da população judaica e palestiniana, trazendo a prazo a certeza de uma maioria palestiniana dentro desse espaço. Excluída a possibilidade da sua deportação maciça para os países árabes vizinhos, como sucedeu no início da formação do Estado judaico - "solução final" que, porém, continua a ser acarinhada pelos extremistas do Grande Israel -, a opção realista só pode estar numa separação territorial que permita uma separação populacional.
Gaza foi o primeiro território a ser deixado para essa missão de "reserva de palestinianos". Ora, ao contrário do que sucedeu em Gaza, onde a colonização sempre fora reduzida, na Cisjordânia ela não tem cessado de se intensificar sob o Governo de Sharon. São regulares as notícias de ampliação dos colonatos existentes ou do estabelecimento de novos assentamentos israelitas. O mesmo se passa em Jerusalém. Trata-se em geral de colonatos contíguos com o território israelita, quase contínuos entre si, portanto muito mais fáceis de defender e de integrar do que os de Gaza. A construção do muro de separação - cuja edificação avançou, apesar da sua patente ilegalidade, como foi reconhecido pelo Tribunal Internacional de Justiça, na Haia - pretendeu dar ares de carácter definitivo a uma nova fronteira rasgada bem dentro dos territórios ocupados, colocando "do lado de Israel" uma parte considerável da Cisjordânia, incluindo seguramente as suas melhores terras.
É bom de ver que, nos projectos israelitas, a política de retirada de Gaza não é em nada contraditória com a intensificação da colonização na Cisjordânia. Pelo contrário, é instrumental. Do que se trata é de trocar objectivos revelados impossíveis - a anexação e colonização integral da Palestina - por um objectivo menos ambicioso, mas, julga Sharon, com melhores possibilidades de ser realizado. Mas é esse plano viável?
Só o seria, se os palestinianos o aceitassem sem resistência como facto consumado. Contudo, estas quatro décadas de ocupação violenta deveriam já ter convencido toda a gente de que tal não é possível. Por maior que seja o poderio militar dos ocupantes, o certo é que nas condições da Palestina, onde à humilhação da ocupação e da opressão se juntam as divisões éticas e religiosas dos dois povos, não faz sentido esperar a rendição e a aceitação do Diktat israelita. Nenhuma potência ocupante tem direito a esperar a aceitação da ocupação, seja na Palestina, no Iraque ou em Timor. A força pode conter ou mesmo eliminar transitoriamente a resistência. Mas basta um pequeno rastilho para que a insurreição retome a sua dinâmica própria.
Por este motivo, são tão irrealistas as exigências israelitas de fim da resistência palestiniana, como a intenção de levar a cabo pela força o projecto de anexação territorial, o qual só pode prometer a continuação indefinida do conflito, até que, como sucedeu agora com Gaza, Telavive se convença de que a paz só pode ser alcançada mediante a troca do reconhecimento do Estado palestiniano, nas fronteiras dos territórios ocupados (incluindo Jerusalém Oriental), com a segurança das fronteiras internacionalmente reconhecidas do próprio Estado de Israel. A frustração do projecto de colonização judaica e de anexação definitiva de todos os territórios ocupados -, eis porventura a grande consequência da manifesta impossibilidade de subjugar a resistência palestiniana ao longo de todos estes anos de política de ocupação e opressão nos territórios ocupados. O problema está em que Israel não admitiu até agora nunca trocar a paz pelo regresso às fronteiras territoriais de 1967. O mais próximo que esteve foi nas frustradas negociações de Camp David, onde, contudo, ficou aquém de ceder na questão da divisão de Jerusalém, questão inegociável para os palestinianos e que ditou (juntamente com a questão dos refugiados) o lamentável fracasso dessa cimeira, realizada sob os auspícios do presidente Clinton.
Enquanto houver em Israel quem pense em anexar definitivamente uma parte da Palestina ocupada, estarão legitimados também os sectores extremistas palestinianos que se recusam a aceitar a própria existência de Israel e não discriminam nos meios para o revelar. A referida troca - que, aliás, é a única solução conforme com o direito internacional e com as resoluções das Nações Unidas sobre a questão - juntamente com um compromisso equitativo na questão dos refugiados - abdicando os palestinianos do direito de regresso, a troco de adequada compensação pelos suas terras e haveres deixados em Israel (não vai pagar o Governo israelita generosíssimas compensações aos colonos forçados a abandonar a faixa de Gaza?) - são as únicas bases realistas em que pode assentar uma solução justa para o problema palestiniano.
Independentemente da retirada de Gaza, é legítimo e devido exigir à Autoridade Palestiniana que combata as acções terroristas e as facções extremistas que as praticam. Mas a renúncia ao terrorismo não pode significar pedir aos palestinos em geral, nem à Autoridade Palestiniana em especial, que abdiquem de todas as formas de luta contra a ocupação israelita. É evidente que, se o fizessem, estariam a aceitar irremediavelmente a anexação em curso. As potências ocupantes e coloniais tendem sempre a generalizar o conceito de terrorismo, para designar todas as acções de luta contra elas (recorde-se o que sucedeu entre nós com a guerra colonial, onde as forças nacionalistas eram geralmente apodadas de "terroristas", sem distinção da natureza das suas acções). Ora, nem tudo na resistência palestiniana é terrorismo, noção que tem a ver necessariamente com o ataque a civis. Não é terrorismo, porém, a desobediência civil, a Intifada das pedras, o ataque, mesmo armado, a objectivos militares ou das forças de segurança, ou a estabelecimentos, equipamentos e infra-estruturas do ocupante, etc. Tal como Israel recorre à violência para tentar consumar a sua anexação dos territórios ocupados, é mais do que legítimo ripostar com idênticos meios para repelir a ocupação. Estender o conceito de terrorismo a todas as formas de resistência é uma operação intelectualmente pouco honesta e politicamente inconsequente.
Parece evidente, em qualquer caso, que a intensificação da colonização israelita constitui no actual contexto uma qualificada e arrogante "provocação", que não pode esperar a passividade do lado palestiniano. Por isso, para além de Gaza resta todo o conflito para resolver, sem fim à vista.
(Público, Terça-feira, 30 de Agosto de 2005)