29 de setembro de 2005
A globalização dos direitos humanos
por Vital Moreira
No seu relatório In larger freedom, de Março deste ano, o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, incluiu a garantia dos direitos humanos e a promoção da democracia entre os grandes objectivos da ONU, a par da segurança internacional e do desenvolvimento. Apesar de as principais reformas propostas noutras áreas não terem sido acolhidas na recente cimeira das Nações Unidas (desde logo a reforma do Conselho de Segurança), já houve alguns passos positivos no caso dos direitos humanos.
As Nações Unidas estão incindivelmente ligadas à história dos direitos humanos, na medida em que a sua instituição em 1945 marca decididamente a internacionalização daqueles. Com a Carta de São Francisco os direitos humanos deixaram de ser uma questão interna para se transformarem em preocupação e objecto de protecção internacional. O preâmbulo da Carta das Nações Unidas referia explicitamente a protecção internacional dos direitos humanos. Não surpreende por isso que logo em 1946 tenha sido criada no âmbito da ONU uma Comissão dos Direitos Humanos (CDH), com sede em Genebra, como fórum de monitorização e de discussão da matéria.
Foi também no âmbito das Nações Unidas que foi aprovada em 1948 a histórica Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual, embora despida de força vinculativa, veio a afirmar-se como a base do código internacional dos direitos humanos que a partir delas viria desenvolver-se. Desse código fazem parte, entre outras, as duas convenções fundamentais de 1966, respectivamente o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais, ambos aprovados igualmente sob a égide da ONU.
As credenciais das Nações Unidas como sistema internacional de protecção dos direitos humanos estão portanto estabelecidas desde o princípio, não somente como plataforma de mundialização dos seus instrumentos normativos, mas também como instância de protecção, através dos meios acolhidos em cada uma daquelas convenções e em muitas outras. A face mais visível das Nações Unidas nesta frente é o alto-comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, bem como a referida Comissão dos Direitos Humanos, composta por 53 países, eleitos pela Assembleia Geral, tendo em conta um critério de repartição geográfica, que se reúne em Genebra, durante seis semanas, em Março/Abril de cada ano. Nela participam também as organizações não-governamentais, fazendo da comissão um grande fórum de discussão global sobre a situação e as violações dos direitos humanos. Não pode negar-se o grande papel da CDH na denúncia das violações de direitos humanos e na aprovação de padrões para a sua defesa. Entre as questões mais frequentemente analisadas constam o direito à autodeterminação, o racismo, a tortura e as execuções sumárias, a intolerância religiosa, os direitos das mulheres e das crianças, bem como dos indígenas, dos imigrantes e das minorias, etc., etc.
Sucede, porém, que os referidos mecanismos se revelaram insuficientes, incluindo por défice de meios, ou vieram a mostrar-se viciados pela sua instrumentalização por interesses alheios, se não hostis, aos direitos humanos. Tal é o caso particularmente da CDH, cujo papel foi parcialmente desacreditado pela designação de países com um péssimo currículo de violação dos direitos mais básicos, como a Líbia e o Sudão, levando ao bloqueio do agendamento de muitas situações de violação dos direitos humanos. Não admira por isso que K. Annan tenha proposto um reforço dos meios do Alto-Comissariado para os Direitos Humanos, bem como a substituição da CDH por um novo Conselho de Direitos Humanos, com regras de eleição e de funcionamento que permitiriam evitar os defeitos actuais. Entre as mudanças propostas constava a eleição desse novo órgão por maioria de 2/3 - para impedir ou dificultar a eleição daqueles países -, bem como o seu funcionamento permanente - ao contrário do que hoje sucede com a CDH, que tem uma sessão de algumas semanas -, de modo a conferir-lhe maior visibilidade e capacidade de actuação. A nova forma de eleição dos membros, levando em conta o desempenho dos países candidatos em matéria de direitos humanos, é essencial para reforçar a autoridade e a credibilidade internacional do conselho; por sua vez, o funcionamento permanente evita desde logo o sucessivo protelamento de questões de um ano para o outro, como hoje sucede muitas vezes.
A criação de um novo Conselho dos Direitos Humanos, que teve a sua origem numa proposta suíça, colheu o apoio da generalidade dos países membros da ONU, com algumas conspícuas excepções, onde avultam a Bielorrússia, Cuba, Venezuela, Birmânia, Vietname, Síria, Paquistão, etc. Um grupo pouco recomendável, como se vê.
Infelizmente, como se sabe, a cimeira foi em grande parte um insucesso, não tendo havido possibilidade de levar por diante as ousadas propostas de K. Annan, desde logo no que respeita à composição do Conselho de Segurança (com os Estados Unidos à frente da oposição). No entanto, no que respeita aos direitos humanos, a resolução que veio a ser aprovada sempre inclui a criação do novo Conselho de Direitos Humanos, ainda que remetendo a sua configuração para futura resolução da Assembleia Geral. Magra conquista, tendo em conta a proposta inicial. Mas não deixa de ser um passo em frente, que pode dar às Nações Unidas novos instrumentos de actuação na defesa dos direitos humanos.
Outra das ideias-chave do documento de Annan era a afirmação da responsabilidade dos Estados pela protecção dos civis em relação a actos de genocídio, crimes de guerra, "limpeza étnica" e crimes contra a humanidade. Trata-se de um "passo histórico" (como considerou a Human Rights Watch, uma das mais conhecidas ONG para os direitos humanos), que colhe as lições terríveis do Ruanda, da Bósnia-Herzegovina, de Timor-Leste ou do Darfur. Não é preciso sublinhar a importância desta ideia. No caso de falha dos Estados em assegurar essa protecção, fica aberto o caminho para a intervenção da comunidade internacional através das Nações Unidas.
À defesa dos direitos humanos, a proposta do secretário-geral das Nações Unidas associava a promoção da democracia, embora aí as suas propostas fossem menos ousadas, limitando-se quase somente a secundar a proposta de George Bush para a criação de um "fundo para a democracia", alimentado por contribuições voluntárias dos Estados-membros. Trata-se de institucionalizar uma solução para apoiar financeiramente países em processo de transição democrática ameaçados por graves carências de meios materiais e financeiros. Resta saber qual vai ser a resposta que os países ricos vão dar a esse desafio.
Por mais modestas que pareçam ser as medidas aprovadas, elas anunciam, porém, se vierem a ser implementadas, um importante progresso na missão das Nações Unidas em relação aos direitos humanos. Considerando o descrédito em que caiu a actual Comissão dos Direitos Humanos e as dificuldades até agora experimentadas para enfrentar as situações de violação maciça de direitos humanos, as Nações Unidas bem precisavam desta reforma. E Portugal, que apoiou essas propostas, não deve deixar de alinhar decididamente nos esforços para as pôr em prática.
(Público, Terça-Feira, 27 de Setembro de 2005)
No seu relatório In larger freedom, de Março deste ano, o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, incluiu a garantia dos direitos humanos e a promoção da democracia entre os grandes objectivos da ONU, a par da segurança internacional e do desenvolvimento. Apesar de as principais reformas propostas noutras áreas não terem sido acolhidas na recente cimeira das Nações Unidas (desde logo a reforma do Conselho de Segurança), já houve alguns passos positivos no caso dos direitos humanos.
As Nações Unidas estão incindivelmente ligadas à história dos direitos humanos, na medida em que a sua instituição em 1945 marca decididamente a internacionalização daqueles. Com a Carta de São Francisco os direitos humanos deixaram de ser uma questão interna para se transformarem em preocupação e objecto de protecção internacional. O preâmbulo da Carta das Nações Unidas referia explicitamente a protecção internacional dos direitos humanos. Não surpreende por isso que logo em 1946 tenha sido criada no âmbito da ONU uma Comissão dos Direitos Humanos (CDH), com sede em Genebra, como fórum de monitorização e de discussão da matéria.
Foi também no âmbito das Nações Unidas que foi aprovada em 1948 a histórica Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual, embora despida de força vinculativa, veio a afirmar-se como a base do código internacional dos direitos humanos que a partir delas viria desenvolver-se. Desse código fazem parte, entre outras, as duas convenções fundamentais de 1966, respectivamente o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais, ambos aprovados igualmente sob a égide da ONU.
As credenciais das Nações Unidas como sistema internacional de protecção dos direitos humanos estão portanto estabelecidas desde o princípio, não somente como plataforma de mundialização dos seus instrumentos normativos, mas também como instância de protecção, através dos meios acolhidos em cada uma daquelas convenções e em muitas outras. A face mais visível das Nações Unidas nesta frente é o alto-comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, bem como a referida Comissão dos Direitos Humanos, composta por 53 países, eleitos pela Assembleia Geral, tendo em conta um critério de repartição geográfica, que se reúne em Genebra, durante seis semanas, em Março/Abril de cada ano. Nela participam também as organizações não-governamentais, fazendo da comissão um grande fórum de discussão global sobre a situação e as violações dos direitos humanos. Não pode negar-se o grande papel da CDH na denúncia das violações de direitos humanos e na aprovação de padrões para a sua defesa. Entre as questões mais frequentemente analisadas constam o direito à autodeterminação, o racismo, a tortura e as execuções sumárias, a intolerância religiosa, os direitos das mulheres e das crianças, bem como dos indígenas, dos imigrantes e das minorias, etc., etc.
Sucede, porém, que os referidos mecanismos se revelaram insuficientes, incluindo por défice de meios, ou vieram a mostrar-se viciados pela sua instrumentalização por interesses alheios, se não hostis, aos direitos humanos. Tal é o caso particularmente da CDH, cujo papel foi parcialmente desacreditado pela designação de países com um péssimo currículo de violação dos direitos mais básicos, como a Líbia e o Sudão, levando ao bloqueio do agendamento de muitas situações de violação dos direitos humanos. Não admira por isso que K. Annan tenha proposto um reforço dos meios do Alto-Comissariado para os Direitos Humanos, bem como a substituição da CDH por um novo Conselho de Direitos Humanos, com regras de eleição e de funcionamento que permitiriam evitar os defeitos actuais. Entre as mudanças propostas constava a eleição desse novo órgão por maioria de 2/3 - para impedir ou dificultar a eleição daqueles países -, bem como o seu funcionamento permanente - ao contrário do que hoje sucede com a CDH, que tem uma sessão de algumas semanas -, de modo a conferir-lhe maior visibilidade e capacidade de actuação. A nova forma de eleição dos membros, levando em conta o desempenho dos países candidatos em matéria de direitos humanos, é essencial para reforçar a autoridade e a credibilidade internacional do conselho; por sua vez, o funcionamento permanente evita desde logo o sucessivo protelamento de questões de um ano para o outro, como hoje sucede muitas vezes.
A criação de um novo Conselho dos Direitos Humanos, que teve a sua origem numa proposta suíça, colheu o apoio da generalidade dos países membros da ONU, com algumas conspícuas excepções, onde avultam a Bielorrússia, Cuba, Venezuela, Birmânia, Vietname, Síria, Paquistão, etc. Um grupo pouco recomendável, como se vê.
Infelizmente, como se sabe, a cimeira foi em grande parte um insucesso, não tendo havido possibilidade de levar por diante as ousadas propostas de K. Annan, desde logo no que respeita à composição do Conselho de Segurança (com os Estados Unidos à frente da oposição). No entanto, no que respeita aos direitos humanos, a resolução que veio a ser aprovada sempre inclui a criação do novo Conselho de Direitos Humanos, ainda que remetendo a sua configuração para futura resolução da Assembleia Geral. Magra conquista, tendo em conta a proposta inicial. Mas não deixa de ser um passo em frente, que pode dar às Nações Unidas novos instrumentos de actuação na defesa dos direitos humanos.
Outra das ideias-chave do documento de Annan era a afirmação da responsabilidade dos Estados pela protecção dos civis em relação a actos de genocídio, crimes de guerra, "limpeza étnica" e crimes contra a humanidade. Trata-se de um "passo histórico" (como considerou a Human Rights Watch, uma das mais conhecidas ONG para os direitos humanos), que colhe as lições terríveis do Ruanda, da Bósnia-Herzegovina, de Timor-Leste ou do Darfur. Não é preciso sublinhar a importância desta ideia. No caso de falha dos Estados em assegurar essa protecção, fica aberto o caminho para a intervenção da comunidade internacional através das Nações Unidas.
À defesa dos direitos humanos, a proposta do secretário-geral das Nações Unidas associava a promoção da democracia, embora aí as suas propostas fossem menos ousadas, limitando-se quase somente a secundar a proposta de George Bush para a criação de um "fundo para a democracia", alimentado por contribuições voluntárias dos Estados-membros. Trata-se de institucionalizar uma solução para apoiar financeiramente países em processo de transição democrática ameaçados por graves carências de meios materiais e financeiros. Resta saber qual vai ser a resposta que os países ricos vão dar a esse desafio.
Por mais modestas que pareçam ser as medidas aprovadas, elas anunciam, porém, se vierem a ser implementadas, um importante progresso na missão das Nações Unidas em relação aos direitos humanos. Considerando o descrédito em que caiu a actual Comissão dos Direitos Humanos e as dificuldades até agora experimentadas para enfrentar as situações de violação maciça de direitos humanos, as Nações Unidas bem precisavam desta reforma. E Portugal, que apoiou essas propostas, não deve deixar de alinhar decididamente nos esforços para as pôr em prática.
(Público, Terça-Feira, 27 de Setembro de 2005)