20 de outubro de 2005
Deriva presidencialista
Por Vital Moreira
Com o aproximar das eleições presidenciais, e com a perspectiva de ver eleito pela primeira vez o seu candidato como Presidente da República, é indesmentível uma pulsão presidencialista no campo da direita. Vão-se multiplicando as opiniões favoráveis a um reforço da componente presidencial da nossa forma de governo. Vale a pena analisar duas recentes expressões dessa tendência.
Num artigo no Diário de Notícias, Rui Machete, antigo dirigente e governante do PSD, vem propor "modificações nos actuais poderes do Presidente da República". No seu entender, deve-se inverter o pendor cada vez mais parlamentar do nosso sistema presidencial e dar mais poderes ao Presidente da República. Para isso deve fazer-se uma revisão constitucional que altere dois aspectos fundamentais do actual regime: por um lado, facilitar a demissão do Governo pelo Presidente da República, por outro lado, prever que este possa presidir ao Conselho de Ministros, quando este tiver por objecto determinadas matérias particularmente importantes.
Não é evidentemente pouca coisa. A serem feitas, estas alterações implicariam uma alteração substancial da forma de governo. Através da presidência do Conselho de Ministros, o Presidente da República tornar-se-ia protagonista da acção governamental, pelo que o poder executivo passaria a ter uma expressão dualista, como em França. Através da possibilidade de demissão do governo, sem ter de dissolver a Assembleia da República, o Presidente da República passaria a ter uma extraordinária alavanca para forçar o primeiro-ministro a vergar-se às orientações presidenciais, sob pena de demissão, e, em última análise, para seleccionar o governo de acordo com as suas preferências.
Note-se que estas propostas vão muito além dos poderes presidenciais anteriores à revisão constitucional de 1982, que retirou ao Presidente da República o poder de demitir livremente o governo. Na verdade, no que respeita à presidência do Conselho de Ministros, trata-se de uma verdadeira inovação, visto que o regime constitucional nessa matéria - segundo o qual o Presidente da República só pode presidir ao conselho de ministros quando o primeiro-ministro lho solicitar - vem desde a versão original da Constituição, em 1976. Conjugadas as duas alterações, teríamos uma transformação da nossa forma de governo no sentido do semipresidencialismo francês, em que o Presidente da República se tornou o primeiro protagonista do poder governativo.
Se Rui Machete, como constitucionalista que também é, sabe bem que tais mudanças precisariam de uma revisão constitucional, cuja viabilidade é nula, dada a mais que previsível oposição do PS, o facto de ele as ter defendido só pode ser interpretado no sentido de legitimar pelo menos uma leitura mais presidencialista do actual texto constitucional, mesmo sem revisão. E o facto de tais propostas serem publicadas neste momento não pode deixar de ser associado à ideia de influenciar a proposta política do candidato presidencial da direita.
Os pruridos constitucionais de Rui Machete não precisam de ser salvaguardados na entrevista de Morais Sarmento ao Diário Económico, na semana passada, também ele ex-dirigente e ex-governante do PSD, mas muito mais recente, visto que pertenceu aos governos de Durão Barroso e de Santana Lopes.
Referindo-se especificamente à candidatura de Cavaco Silva, Sarmento defende que ele se deve apresentar com um programa de reformas políticas, económicas e sociais. Inquirido sobre se desse modo o Presidente da República não entraria na esfera do Governo, o entrevistado respondeu com a brutalidade a que nos habituou como governante: "Apresentando-se desta forma ao país [ou seja, com um programa de reformas], o Presidente deixa de estar às quintas-feiras a receber o primeiro-ministro para comentar a situação do país e passa a (...) a receber o primeiro-ministro para julgar em que medida o Governo está ou não a cumprir as directrizes. Enquanto estes pontos forem respeitados na livre decisão do Governo [sic], tudo bem. Quando qualquer destes pontos for tocado, o Governo terminou nesse dia. Com ou sem maioria."
À pergunta sobre se as tais ideias não configuram "quase um golpe de Estado ao actual sistema...", o fogoso Sarmento explica sem hesitação: "Há um programa presidencial que se deve sobrepor à acção dos governos, balizando-o. E é pelo respeito por essas balizas que o Presidente da República passa a avaliar o desempenho de qualquer governo. (...) E a única maneira deste processo ser possível é legitimá-lo na eleição presidencial. Os portugueses têm de legitimar este projecto e este modelo de funções presidenciais."
Ao contrário de Machete, Sarmento não se dá ao cuidado sequer de ressalvar que um tal programa de mudança política carece de uma revisão constitucional. É evidente que para ele isso nada importa.
Não é a primeira vez, depois da aprovação da actual Constituição, que em Portugal se passa por uma tentação presidencialista. No final dos anos 70 houve um movimento pró-presidencialista, associado ao então Presidente da República Ramalho Eanes. O ambiente em que se desenvolveu esse movimento era caracterizado pelo falhanço do dois primeiros governos constitucionais - ambos do PS, o primeiro, minoritário, e o segundo de coligação com o CDS - e pelos obstáculos para encontrar solução para as dificuldades económicas nessa altura vividas e de dar conta dos problemas políticos relacionados com a normalização e consolidação democrática pós-revolucionária. Já então o modelo inspirador era o da V República francesa, não faltando quem quisesse fazer do então inquilino de Belém uma réplica gaullista lusitana, que capitaneasse uma revisão referendária da Constituição e assumisse decididamente o comando das rédeas do poder político, se necessário por cima dos partidos existentes.
Por essa altura, o líder do PSD Sá Carneiro publicava um projecto de revisão constitucional que dava guarida às principais ideias dessa orientação. Todavia, consumado o conflito com o presidente Eanes, gorado o projecto de eleger o seu candidato a Presidente da República (o esquecido general Soares Carneiro) e desaparecido o próprio Sá Carneiro, o PSD viria a partilhar com o PS a revisão constitucional de 1982, que reformulou o sistema de governo constitucional em sentido inverso, limitando os poderes de intervenção presidencial na área do governo e restringindo drasticamente o poder de demissão do governo pelo Presidente.
As condições actuais são manifestamente diferentes. É certo que temos novamente uma situação de crise das finanças públicas associada a um longo período de estagnação económica ou de fraco crescimento. Mas as condições políticas são francamente distintas. Agora há um governo de maioria parlamentar, com um programa claramente reformista, apostado em sanear as finanças públicas e em resolver, pela primeira vez, velhos bloqueios do Estado, em geral, e da administração pública, em especial. Não é pela debilidade do Governo ou pela instabilidade governativa, como no final dos anos 70, que se pode explicar a brotoeja presidencialista na área da direita. Pelo contrário, as propostas de reforço do poder presidencial não visam suprir um défice de autoridade e de capacidade de acção do Governo, mas antes limitar e condicionar a actuação do Governo.
Evidentemente, Cavaco Silva não é responsável pelas propostas políticas dos seus apoiantes. Mas, face ao número e peso dos que esperam dele uma refundação do nosso sistema constitucional em "chave presidencialista", há duas coisas que vai ter provavelmente de fazer: primeiro, demarcar-se inequivocamente de tais ideias; segundo, explicar como é que vai resistir à pressão dos seus apoiantes, caso venha a ser eleito. Em qualquer caso, Cavaco Silva tem um problema de concepção da sua candidatura, e não é pequeno.
(Público, 3ª-feira, 18 de Outubro de 2005)
Com o aproximar das eleições presidenciais, e com a perspectiva de ver eleito pela primeira vez o seu candidato como Presidente da República, é indesmentível uma pulsão presidencialista no campo da direita. Vão-se multiplicando as opiniões favoráveis a um reforço da componente presidencial da nossa forma de governo. Vale a pena analisar duas recentes expressões dessa tendência.
Num artigo no Diário de Notícias, Rui Machete, antigo dirigente e governante do PSD, vem propor "modificações nos actuais poderes do Presidente da República". No seu entender, deve-se inverter o pendor cada vez mais parlamentar do nosso sistema presidencial e dar mais poderes ao Presidente da República. Para isso deve fazer-se uma revisão constitucional que altere dois aspectos fundamentais do actual regime: por um lado, facilitar a demissão do Governo pelo Presidente da República, por outro lado, prever que este possa presidir ao Conselho de Ministros, quando este tiver por objecto determinadas matérias particularmente importantes.
Não é evidentemente pouca coisa. A serem feitas, estas alterações implicariam uma alteração substancial da forma de governo. Através da presidência do Conselho de Ministros, o Presidente da República tornar-se-ia protagonista da acção governamental, pelo que o poder executivo passaria a ter uma expressão dualista, como em França. Através da possibilidade de demissão do governo, sem ter de dissolver a Assembleia da República, o Presidente da República passaria a ter uma extraordinária alavanca para forçar o primeiro-ministro a vergar-se às orientações presidenciais, sob pena de demissão, e, em última análise, para seleccionar o governo de acordo com as suas preferências.
Note-se que estas propostas vão muito além dos poderes presidenciais anteriores à revisão constitucional de 1982, que retirou ao Presidente da República o poder de demitir livremente o governo. Na verdade, no que respeita à presidência do Conselho de Ministros, trata-se de uma verdadeira inovação, visto que o regime constitucional nessa matéria - segundo o qual o Presidente da República só pode presidir ao conselho de ministros quando o primeiro-ministro lho solicitar - vem desde a versão original da Constituição, em 1976. Conjugadas as duas alterações, teríamos uma transformação da nossa forma de governo no sentido do semipresidencialismo francês, em que o Presidente da República se tornou o primeiro protagonista do poder governativo.
Se Rui Machete, como constitucionalista que também é, sabe bem que tais mudanças precisariam de uma revisão constitucional, cuja viabilidade é nula, dada a mais que previsível oposição do PS, o facto de ele as ter defendido só pode ser interpretado no sentido de legitimar pelo menos uma leitura mais presidencialista do actual texto constitucional, mesmo sem revisão. E o facto de tais propostas serem publicadas neste momento não pode deixar de ser associado à ideia de influenciar a proposta política do candidato presidencial da direita.
Os pruridos constitucionais de Rui Machete não precisam de ser salvaguardados na entrevista de Morais Sarmento ao Diário Económico, na semana passada, também ele ex-dirigente e ex-governante do PSD, mas muito mais recente, visto que pertenceu aos governos de Durão Barroso e de Santana Lopes.
Referindo-se especificamente à candidatura de Cavaco Silva, Sarmento defende que ele se deve apresentar com um programa de reformas políticas, económicas e sociais. Inquirido sobre se desse modo o Presidente da República não entraria na esfera do Governo, o entrevistado respondeu com a brutalidade a que nos habituou como governante: "Apresentando-se desta forma ao país [ou seja, com um programa de reformas], o Presidente deixa de estar às quintas-feiras a receber o primeiro-ministro para comentar a situação do país e passa a (...) a receber o primeiro-ministro para julgar em que medida o Governo está ou não a cumprir as directrizes. Enquanto estes pontos forem respeitados na livre decisão do Governo [sic], tudo bem. Quando qualquer destes pontos for tocado, o Governo terminou nesse dia. Com ou sem maioria."
À pergunta sobre se as tais ideias não configuram "quase um golpe de Estado ao actual sistema...", o fogoso Sarmento explica sem hesitação: "Há um programa presidencial que se deve sobrepor à acção dos governos, balizando-o. E é pelo respeito por essas balizas que o Presidente da República passa a avaliar o desempenho de qualquer governo. (...) E a única maneira deste processo ser possível é legitimá-lo na eleição presidencial. Os portugueses têm de legitimar este projecto e este modelo de funções presidenciais."
Ao contrário de Machete, Sarmento não se dá ao cuidado sequer de ressalvar que um tal programa de mudança política carece de uma revisão constitucional. É evidente que para ele isso nada importa.
Não é a primeira vez, depois da aprovação da actual Constituição, que em Portugal se passa por uma tentação presidencialista. No final dos anos 70 houve um movimento pró-presidencialista, associado ao então Presidente da República Ramalho Eanes. O ambiente em que se desenvolveu esse movimento era caracterizado pelo falhanço do dois primeiros governos constitucionais - ambos do PS, o primeiro, minoritário, e o segundo de coligação com o CDS - e pelos obstáculos para encontrar solução para as dificuldades económicas nessa altura vividas e de dar conta dos problemas políticos relacionados com a normalização e consolidação democrática pós-revolucionária. Já então o modelo inspirador era o da V República francesa, não faltando quem quisesse fazer do então inquilino de Belém uma réplica gaullista lusitana, que capitaneasse uma revisão referendária da Constituição e assumisse decididamente o comando das rédeas do poder político, se necessário por cima dos partidos existentes.
Por essa altura, o líder do PSD Sá Carneiro publicava um projecto de revisão constitucional que dava guarida às principais ideias dessa orientação. Todavia, consumado o conflito com o presidente Eanes, gorado o projecto de eleger o seu candidato a Presidente da República (o esquecido general Soares Carneiro) e desaparecido o próprio Sá Carneiro, o PSD viria a partilhar com o PS a revisão constitucional de 1982, que reformulou o sistema de governo constitucional em sentido inverso, limitando os poderes de intervenção presidencial na área do governo e restringindo drasticamente o poder de demissão do governo pelo Presidente.
As condições actuais são manifestamente diferentes. É certo que temos novamente uma situação de crise das finanças públicas associada a um longo período de estagnação económica ou de fraco crescimento. Mas as condições políticas são francamente distintas. Agora há um governo de maioria parlamentar, com um programa claramente reformista, apostado em sanear as finanças públicas e em resolver, pela primeira vez, velhos bloqueios do Estado, em geral, e da administração pública, em especial. Não é pela debilidade do Governo ou pela instabilidade governativa, como no final dos anos 70, que se pode explicar a brotoeja presidencialista na área da direita. Pelo contrário, as propostas de reforço do poder presidencial não visam suprir um défice de autoridade e de capacidade de acção do Governo, mas antes limitar e condicionar a actuação do Governo.
Evidentemente, Cavaco Silva não é responsável pelas propostas políticas dos seus apoiantes. Mas, face ao número e peso dos que esperam dele uma refundação do nosso sistema constitucional em "chave presidencialista", há duas coisas que vai ter provavelmente de fazer: primeiro, demarcar-se inequivocamente de tais ideias; segundo, explicar como é que vai resistir à pressão dos seus apoiantes, caso venha a ser eleito. Em qualquer caso, Cavaco Silva tem um problema de concepção da sua candidatura, e não é pequeno.
(Público, 3ª-feira, 18 de Outubro de 2005)