6 de outubro de 2005
Feudalismo de Estado
por Vital Moreira
Depois dos militares e forças de segurança, o próximo teste da autoridade política do Governo na luta contra os privilégios das corporações profissionais do sector público é obviamente a contestação dos juízes e demais operadores judiciários. Trata-se de uma via sem recuo, que não admite concessões nem tergiversações.
A designação de "feudalismo" não pode ser mais apropriada para descrever a situação a que se chegou, em que uns tantos segmentos do Estado se constituíram em "corpos especiais", dotados de estatutos particulares, caracterizados por várias benesses e regalias face ao regime geral do sector público e ainda mais face ao sector privado. Entre essas vantagens contam-se, isolada ou cumulativamente, regimes mais favoráveis de aposentação e de pensões de reforma, subsistemas próprios de cuidados de saúde, regalias remuneratórias e uma miríade de fringe benefits da mais variada espécie.
Duas características são comuns a todos esses regimes especiais: a criação de privilégios sectoriais sem nenhuma justificação e os pesados custos para as finanças públicas. Na verdade, trata-se de formas de captura do Estado e de apropriação de vantagens económicas e sociais de grupo à custa da colectividade. Para só referir um exemplo, os subsistemas de saúde privativos dos militares, das forças de segurança e da área da justiça custam muitas dezenas milhões de euros ao erário público por ano. Ora, havendo um subsistema de saúde geral da função pública (o regime da ADSE), que já de si constitui uma vantagem face ao sector privado, não existe a mínima razão para essa prerrogativa específica daqueles sectores profissionais. Uma tal violação do princípio constitucional da igualdade de tratamento só pode ser superada pela eliminação das vantagens sectoriais indevidas, face à absoluta impossibilidade de estender a todos o regime mais favorável.
Ninguém gosta de perder privilégios, desde logo por que quem goza deles nunca os reconhece como tal. Para os seus beneficiários, os privilégios são sempre justíssimas compensações para a sua situação especial. Um dos traços verdadeiramente "feudais" dessas situações consiste na consideração dessas regalias como parte do "estatuto próprio" dos respectivos corpos. Na verdade, foi em nome da "dignidade" e da "especificidade" do "estatuto" de cada sector profissional que foram justificadas as acções de resistência à eliminação dos regimes especiais, como se o prestígio e autoridade das respectivas profissões dependessem não da sua natureza e importância intrínseca, mas sim das benesses materiais diferenciadas em relação a outros sectores. Ora, o que é o "estatuto próprio" dos "corpos especiais" senão uma tentativa de compartimentação do Estado de acordo com os interesses de grupo e a sobreposição destes ao interesse geral, que cabe ao Estado defender? Tal como no "antigo regime", também agora cada sector beneficia de um estatuto jurídico distintivo, não tanto caracterizado pela diferença de deveres, mas sim pela mais-valia de regalias.
O "feudalismo funcional" em que se fragmentou o Estado tem raízes profundas na sobrevivência de quadros mentais pré-modernos, na valorização de formas exteriores de reconhecimento do status (com reflexo inclusive nas formas de tratamento social), na prevalência da "condição" sobre o desempenho, no papel de certas profissões ou ocupações públicas (juiz, militar, professor, etc.) como veículos de ascensão social, na resistência ao nivelamento de tratamento jurídico e ao desaparecimento de estatutos pessoais privativos, que é próprio da organização moderna do Estado. Mas esta serôdia sobrevivência dos quadros mentais tradicionais não teria sido possível sem a contribuição de formas de organização e de acção governamental que fomentam a segmentação sectorial do Governo e favorecem a cumplicidade entre os ministros e as corporações profissionais do respectivo sector. A "captura" do Estado pelos corpos profissionais de elite do sector público é resultado, antes de tudo, da fraqueza daquele.
Curiosamente, a reivindicação de estatutos privilegiados privativos é acompanhada da mais latitudinária utilização dos instrumentos sindicais dos trabalhadores comuns, incluindo a manifestação e a greve, mesmo quando o seu estatuto público é manifestamente incompatível com eles, como sucede com os militares e os juízes, os primeiros porque a natureza das suas funções o não pode consentir, os segundos porque nem sequer são funcionários ou trabalhadores, mas sim titulares de cargos públicos, a quem não se podem estender de plano os direitos próprios dos trabalhadores. O caso dos juízes e magistrados do Ministério Público é especialmente elucidativo, visto que, se existe algo contraditório com o "estatuto" diferenciado que eles reivindicam, é justamente a ideia de greve como instrumento de luta laboral. Independentemente da sua licitude, a greve dos juízes é sobretudo uma questão de incongruência com a natureza das suas funções e com a imagem que os juízes reivindicam para si mesmos, que não é propriamente uma imagem "laboral" ou "proletária".
Infelizmente, a apropriação do Estado para sustentar privilégios profissionais não se limita aos corpos especiais do sector público. Nos últimos tempos vieram a lume situações intoleráveis de parasitação do Estado por alguns sectores profissionais privados, como os advogados e os jornalistas. Os primeiros beneficiam de uma generosa contribuição de dinheiros públicos (taxa de justiça) para o seu sistema privativo de assistência na saúde e de segurança social; os segundos beneficiam de um regime privativo de cuidados de saúde financeiramente suportado pelo Estado, muito mais favorável do que o do SNS. São situações insustentáveis, que importa revogar imediatamente, sob pena de perda de autoridade do Governo para eliminar as benesses indevidas dos próprios corpos do Estado. Se os advogados e jornalistas querem ter subsistemas privativos de saúde e/ou de segurança social, por cima do SNS e do regime geral de segurança social, devem proporcionar eles mesmos os necessários meios financeiros.
Em meio ano de funções, o Governo de Sócrates já tem a seu crédito uma das mais importantes reformas que se propôs efectuar, a saber, o ataque global ao "feudalismo de Estado" em que se enredava a organização do poder público em geral e a administração pública em particular. Essa obra de equidade social e de saneamento financeiro não pode ficar incompleta, sob pena de alienar a apoio que ela suscita entre os cidadãos comuns, que não gozam de tais privilégios corporativos e que os têm de pagar como contribuintes.
(Público, Terça-feira, 4 de Outubro de 2005)
Depois dos militares e forças de segurança, o próximo teste da autoridade política do Governo na luta contra os privilégios das corporações profissionais do sector público é obviamente a contestação dos juízes e demais operadores judiciários. Trata-se de uma via sem recuo, que não admite concessões nem tergiversações.
A designação de "feudalismo" não pode ser mais apropriada para descrever a situação a que se chegou, em que uns tantos segmentos do Estado se constituíram em "corpos especiais", dotados de estatutos particulares, caracterizados por várias benesses e regalias face ao regime geral do sector público e ainda mais face ao sector privado. Entre essas vantagens contam-se, isolada ou cumulativamente, regimes mais favoráveis de aposentação e de pensões de reforma, subsistemas próprios de cuidados de saúde, regalias remuneratórias e uma miríade de fringe benefits da mais variada espécie.
Duas características são comuns a todos esses regimes especiais: a criação de privilégios sectoriais sem nenhuma justificação e os pesados custos para as finanças públicas. Na verdade, trata-se de formas de captura do Estado e de apropriação de vantagens económicas e sociais de grupo à custa da colectividade. Para só referir um exemplo, os subsistemas de saúde privativos dos militares, das forças de segurança e da área da justiça custam muitas dezenas milhões de euros ao erário público por ano. Ora, havendo um subsistema de saúde geral da função pública (o regime da ADSE), que já de si constitui uma vantagem face ao sector privado, não existe a mínima razão para essa prerrogativa específica daqueles sectores profissionais. Uma tal violação do princípio constitucional da igualdade de tratamento só pode ser superada pela eliminação das vantagens sectoriais indevidas, face à absoluta impossibilidade de estender a todos o regime mais favorável.
Ninguém gosta de perder privilégios, desde logo por que quem goza deles nunca os reconhece como tal. Para os seus beneficiários, os privilégios são sempre justíssimas compensações para a sua situação especial. Um dos traços verdadeiramente "feudais" dessas situações consiste na consideração dessas regalias como parte do "estatuto próprio" dos respectivos corpos. Na verdade, foi em nome da "dignidade" e da "especificidade" do "estatuto" de cada sector profissional que foram justificadas as acções de resistência à eliminação dos regimes especiais, como se o prestígio e autoridade das respectivas profissões dependessem não da sua natureza e importância intrínseca, mas sim das benesses materiais diferenciadas em relação a outros sectores. Ora, o que é o "estatuto próprio" dos "corpos especiais" senão uma tentativa de compartimentação do Estado de acordo com os interesses de grupo e a sobreposição destes ao interesse geral, que cabe ao Estado defender? Tal como no "antigo regime", também agora cada sector beneficia de um estatuto jurídico distintivo, não tanto caracterizado pela diferença de deveres, mas sim pela mais-valia de regalias.
O "feudalismo funcional" em que se fragmentou o Estado tem raízes profundas na sobrevivência de quadros mentais pré-modernos, na valorização de formas exteriores de reconhecimento do status (com reflexo inclusive nas formas de tratamento social), na prevalência da "condição" sobre o desempenho, no papel de certas profissões ou ocupações públicas (juiz, militar, professor, etc.) como veículos de ascensão social, na resistência ao nivelamento de tratamento jurídico e ao desaparecimento de estatutos pessoais privativos, que é próprio da organização moderna do Estado. Mas esta serôdia sobrevivência dos quadros mentais tradicionais não teria sido possível sem a contribuição de formas de organização e de acção governamental que fomentam a segmentação sectorial do Governo e favorecem a cumplicidade entre os ministros e as corporações profissionais do respectivo sector. A "captura" do Estado pelos corpos profissionais de elite do sector público é resultado, antes de tudo, da fraqueza daquele.
Curiosamente, a reivindicação de estatutos privilegiados privativos é acompanhada da mais latitudinária utilização dos instrumentos sindicais dos trabalhadores comuns, incluindo a manifestação e a greve, mesmo quando o seu estatuto público é manifestamente incompatível com eles, como sucede com os militares e os juízes, os primeiros porque a natureza das suas funções o não pode consentir, os segundos porque nem sequer são funcionários ou trabalhadores, mas sim titulares de cargos públicos, a quem não se podem estender de plano os direitos próprios dos trabalhadores. O caso dos juízes e magistrados do Ministério Público é especialmente elucidativo, visto que, se existe algo contraditório com o "estatuto" diferenciado que eles reivindicam, é justamente a ideia de greve como instrumento de luta laboral. Independentemente da sua licitude, a greve dos juízes é sobretudo uma questão de incongruência com a natureza das suas funções e com a imagem que os juízes reivindicam para si mesmos, que não é propriamente uma imagem "laboral" ou "proletária".
Infelizmente, a apropriação do Estado para sustentar privilégios profissionais não se limita aos corpos especiais do sector público. Nos últimos tempos vieram a lume situações intoleráveis de parasitação do Estado por alguns sectores profissionais privados, como os advogados e os jornalistas. Os primeiros beneficiam de uma generosa contribuição de dinheiros públicos (taxa de justiça) para o seu sistema privativo de assistência na saúde e de segurança social; os segundos beneficiam de um regime privativo de cuidados de saúde financeiramente suportado pelo Estado, muito mais favorável do que o do SNS. São situações insustentáveis, que importa revogar imediatamente, sob pena de perda de autoridade do Governo para eliminar as benesses indevidas dos próprios corpos do Estado. Se os advogados e jornalistas querem ter subsistemas privativos de saúde e/ou de segurança social, por cima do SNS e do regime geral de segurança social, devem proporcionar eles mesmos os necessários meios financeiros.
Em meio ano de funções, o Governo de Sócrates já tem a seu crédito uma das mais importantes reformas que se propôs efectuar, a saber, o ataque global ao "feudalismo de Estado" em que se enredava a organização do poder público em geral e a administração pública em particular. Essa obra de equidade social e de saneamento financeiro não pode ficar incompleta, sob pena de alienar a apoio que ela suscita entre os cidadãos comuns, que não gozam de tais privilégios corporativos e que os têm de pagar como contribuintes.
(Público, Terça-feira, 4 de Outubro de 2005)