1 de outubro de 2005
Prevenir a pandemia
por Ana Gomes
Há dias estive em Washington e Nova Iorque em missão parlamentar da NATO sobre preparação da segurança civil em caso de ataque terrorista. A oportunidade foi instrutiva: a nação americana estava dorida com o falhanço da protecção civil que o furacão Katrina expusera e zangada com a incompetência da Administração. Os especialistas em segurança estavam sobretudo assustados com a impreparação face a um desastre anunciado, fazendo temer o pior em caso de traiçoeiro ataque terrorista.
As ameaças que os peritos americanos consideram mais prováveis podem provir de ataque bio-terrorista ou de uma "dirty bomb" (explosivos ordinários contendo material radioactivo) feita entrar por contentor marítimo. O potencial devastador atingiria redes logísticas de transporte e energia, alimentares, financeiras, informativas etc. que suportam o poderio e o "way of life" americano. O elenco de potenciais alvos - sempre difíceis de proteger, mas na maior parte dos casos totalmente desprotegidos - é inesgotável e irresistível para a lógica terrorista. E o terrorismo, como sublinhou o académico do "Council on Foreign Relations" Steven Flynn, veio para ficar e ataca em todo o lado - é o modo de guerra da era da globalização, quaisquer que sejam os pretextos e as causas, o que contraria a versão errónea e simplista de Bush e Cheney de que é preciso "levar o combate ao inimigo" (o Iraque e no Afeganistão) "para não termos que o defrontar aqui em casa".
Logo após o 11 de Setembro, a crise do antrax, de origem nunca clarificada, fez criar mecanismos de vigilância, controlo estatístico e detecção que envolvem redes hospitalares públicas e privadas e profissionais de saúde treinados e interligados. Mas hoje os especialistas temem sobretudo uma pandemia de gripe aviária. Como vem alertando a OMS - Organização Mundial da Saúde, basta que o virus que até aqui tem feito vítimas no Extremo-Oriente adquira capacidade de transmissão entre seres humanos e enfrentaremos a pandemia mais desvastadora de sempre. Quarentenas, fechos de aeroportos, portos e fronteiras implicarão a ruptura do comércio e viagens, da actividade económica à escala planetária e afectarão também a segurança global nas capacidades das forças armadas e policiais, operações de paz, etc. Só os EUA podem vir a ter entre 200.000 a 16 milhões de mortos; neste "worst case scenario", se falhar a produção a tempo de uma vacina eficaz.
Esse falhanço não é hipótese académica. Porque nem a Administração Bush, nem nenhum governo, disponibilizam recursos financeiros suficientes para produzir vacinas e apetrechar as infra-estruturas de saúde para uma pandemia (no ano passado, foram o Canadá e a Alemanha quem valeu aos EUA para fornecimento de uma normal vacina anti-gripe). Produzir uma vacina é díficil, caro e leva tempo - pelo menos seis meses. E mesmo que se produzissem vacinas a tempo para a Europa, América do Norte e Japão, milhões de pessoas em países em desenvolvimento ficariam por vacinar. Uma corrida a vacinas implicaria uma terrível triagem em cada país e global: que critérios determinariam quem seria vacinável?
A vulnerabilidade dos EUA (e geral) contra o bio-terrorismo está ilustrada num caso relatado em "The next Pandemic?" de Laurie Garrett (revista "Foreign Affairs" Julho/Agosto 2005) - uma amostra de micróbios preparada por um laboratório privado foi enviada por correio pelo Colégio Americano de Patologistas a cerca de 5.000 laboratórios em 18 países para recertificação. Incluia o virus de uma gripe que matou milhões de pessoas em 1957 e para o qual não há imunização geral. Mas só seis meses depois foi dado o alerta e ninguém ainda sabe porque não foram tidos os cuidados de processamento prescritos para um virus tão letal, porque estava ele na posse de um laboratório privado e porque tudo só foi detectado seis meses depois.
Cada governo bem pode planear para os piores cenários. Mas uma pandemia só se combate eficazmente através de mecanismos globais e multilaterais como o que a OMS (agência da ONU), reforçando-lhe os meios e a autoridade. E a Administração Bush tem sido virulenta contra o multilateralismo e a ONU.
Um especialista em saúde pública americano em 1971 considerava que "tal como furacões, as pandemias podem ser identificadas e o seu curso provável projectado, para que os alertas possam ser emitidos". O problema não está na previsão dos furacões ou das pandemias, como o Katrina , o Rita e a OMS demonstram. Mas sim na capacidade dos responsáveis políticos não traírem a confiança dos seus con-cidadãos, ignorando os alertas e desviando meios do combate.
(Publicado no COURRIER INTERNACIONAL, 30.9.05)
Há dias estive em Washington e Nova Iorque em missão parlamentar da NATO sobre preparação da segurança civil em caso de ataque terrorista. A oportunidade foi instrutiva: a nação americana estava dorida com o falhanço da protecção civil que o furacão Katrina expusera e zangada com a incompetência da Administração. Os especialistas em segurança estavam sobretudo assustados com a impreparação face a um desastre anunciado, fazendo temer o pior em caso de traiçoeiro ataque terrorista.
As ameaças que os peritos americanos consideram mais prováveis podem provir de ataque bio-terrorista ou de uma "dirty bomb" (explosivos ordinários contendo material radioactivo) feita entrar por contentor marítimo. O potencial devastador atingiria redes logísticas de transporte e energia, alimentares, financeiras, informativas etc. que suportam o poderio e o "way of life" americano. O elenco de potenciais alvos - sempre difíceis de proteger, mas na maior parte dos casos totalmente desprotegidos - é inesgotável e irresistível para a lógica terrorista. E o terrorismo, como sublinhou o académico do "Council on Foreign Relations" Steven Flynn, veio para ficar e ataca em todo o lado - é o modo de guerra da era da globalização, quaisquer que sejam os pretextos e as causas, o que contraria a versão errónea e simplista de Bush e Cheney de que é preciso "levar o combate ao inimigo" (o Iraque e no Afeganistão) "para não termos que o defrontar aqui em casa".
Logo após o 11 de Setembro, a crise do antrax, de origem nunca clarificada, fez criar mecanismos de vigilância, controlo estatístico e detecção que envolvem redes hospitalares públicas e privadas e profissionais de saúde treinados e interligados. Mas hoje os especialistas temem sobretudo uma pandemia de gripe aviária. Como vem alertando a OMS - Organização Mundial da Saúde, basta que o virus que até aqui tem feito vítimas no Extremo-Oriente adquira capacidade de transmissão entre seres humanos e enfrentaremos a pandemia mais desvastadora de sempre. Quarentenas, fechos de aeroportos, portos e fronteiras implicarão a ruptura do comércio e viagens, da actividade económica à escala planetária e afectarão também a segurança global nas capacidades das forças armadas e policiais, operações de paz, etc. Só os EUA podem vir a ter entre 200.000 a 16 milhões de mortos; neste "worst case scenario", se falhar a produção a tempo de uma vacina eficaz.
Esse falhanço não é hipótese académica. Porque nem a Administração Bush, nem nenhum governo, disponibilizam recursos financeiros suficientes para produzir vacinas e apetrechar as infra-estruturas de saúde para uma pandemia (no ano passado, foram o Canadá e a Alemanha quem valeu aos EUA para fornecimento de uma normal vacina anti-gripe). Produzir uma vacina é díficil, caro e leva tempo - pelo menos seis meses. E mesmo que se produzissem vacinas a tempo para a Europa, América do Norte e Japão, milhões de pessoas em países em desenvolvimento ficariam por vacinar. Uma corrida a vacinas implicaria uma terrível triagem em cada país e global: que critérios determinariam quem seria vacinável?
A vulnerabilidade dos EUA (e geral) contra o bio-terrorismo está ilustrada num caso relatado em "The next Pandemic?" de Laurie Garrett (revista "Foreign Affairs" Julho/Agosto 2005) - uma amostra de micróbios preparada por um laboratório privado foi enviada por correio pelo Colégio Americano de Patologistas a cerca de 5.000 laboratórios em 18 países para recertificação. Incluia o virus de uma gripe que matou milhões de pessoas em 1957 e para o qual não há imunização geral. Mas só seis meses depois foi dado o alerta e ninguém ainda sabe porque não foram tidos os cuidados de processamento prescritos para um virus tão letal, porque estava ele na posse de um laboratório privado e porque tudo só foi detectado seis meses depois.
Cada governo bem pode planear para os piores cenários. Mas uma pandemia só se combate eficazmente através de mecanismos globais e multilaterais como o que a OMS (agência da ONU), reforçando-lhe os meios e a autoridade. E a Administração Bush tem sido virulenta contra o multilateralismo e a ONU.
Um especialista em saúde pública americano em 1971 considerava que "tal como furacões, as pandemias podem ser identificadas e o seu curso provável projectado, para que os alertas possam ser emitidos". O problema não está na previsão dos furacões ou das pandemias, como o Katrina , o Rita e a OMS demonstram. Mas sim na capacidade dos responsáveis políticos não traírem a confiança dos seus con-cidadãos, ignorando os alertas e desviando meios do combate.
(Publicado no COURRIER INTERNACIONAL, 30.9.05)