27 de outubro de 2005
Quem governa?
Por Vital Moreira
Mais do que a estabilidade governativa, a grande prova da consolidação dos regimes políticos é continuidade do consenso sobre as regras do seu funcionamento. É disso que temos gozado desde 1982, quando a primeira revisão constitucional encerrou o período "experimental" do novo sistema constitucional e ultimou a transição democrática em Portugal.
É essa estabilidade que pode estar em risco, se se adensarem os abundantes sinais de gestação de um "neopresidencialismo" entre nós, como quase sempre protagonizado por sectores da direita política, entusiasmados com a perspectiva de eleição, pela primeira vez no actual regime democrático, de um Presidente da República oriundo das suas fileiras. De forma mais ou menos explícita, há uma multiplicação de opiniões nessa área tendentes a levar o chefe do Estado a invadir as fronteiras que definem a esfera própria do Governo.
Na verdade, é a Constituição política que está em causa, não somente quando se defende que o Presidente da República possa presidir ao Conselho de Ministros ou demitir livremente o governo, mas também quando se preconiza um papel activo na definição das orientações governativas, na definição de "balizas" ao governo, ou num "entendimento estratégico" entre o Presidente da República e o governo na resolução dos grandes problemas nacionais. Em qualquer caso, estando a responsabilidade pela definição e condução das políticas públicas constitucionalmente confiada ao governo, saído das eleições parlamentares - cabendo ao Presidente um papel de monitorização, de fiscalização, de "tutela" e, em caso de necessidade, de solução das crises políticas -, a questão fundamental é a de saber se tal divisão de poderes e de responsabilidades deve ser alterada mediante um maior protagonismo presidencial.
Só por caricatura é que se pode dizer que entre nós o Presidente da República não tem poderes relevantes. Tem muitos, e fortes. Cabe-lhe desde logo nomear o primeiro-ministro, embora se trate aqui de um poder relativamente fraco, sobretudo quando as eleições parlamentares se foram transformando crescentemente em eleição do primeiro-ministro. Pode vetar os nomes propostos para o governo pelo primeiro-ministro, bem como para todos os demais cargos de nomeação presidencial (e não são poucos, desde os representantes da República nas regiões autónomas até aos embaixadores, passando pelo procurador-geral da República e pelas chefias militares, entre vários outros). Pode enviar as leis para fiscalização preventiva (ou sucessiva) do Tribunal Constitucional; e também pode vetá-las politicamente, oposição que pode ser insuperável mesmo no caso de maioria absoluta na AR, no caso de matérias cujo veto só possa ser ultrapassado por maioria de 2/3. Pode enviar mensagens à Assembleia da República e tomar posições públicas relativamente aos grandes problemas nacionais, embora não possa impor os seus pontos de vista ao governo, nem censurá-lo por este não lhes dar seguimento. Nos domínios da defesa e das relações externas, os seus poderes de acompanhamento e de fiscalização são ainda mais intensos, dada a sua qualidade constitucional de comandante supremo das forças armadas e de representante supremo da República (enquanto chefe do Estado), embora sem poder invadir a competência governamental nessas áreas. E, por último, entre os seus "poderes fortes", conta-se o de antecipar eleições mediante a dissolução da AR, de modo a obter uma mudança de governo por via de mudança de maioria parlamentar (mas tendo de arcar com a responsabilidade política, caso as eleições subsequentes não produzam esse resultado...).
Não é, portanto, a falta de poderes que caracteriza o cargo de Presidente da República entre nós. O que o caracteriza é, simplesmente, o facto de eles serem poderes de controlo externo sobre a actividade governativa e não de participação interna nessa actividade. São em geral poderes "negativos" (poderes de veto, de recusa), e não "poderes positivos". Por exemplo, o Presidente da República pode vetar leis, mas não pode propor alterações; pode recusar os nomes que o governo lhe proponha, mas não pode indicar outros nomes. Pode recusar a convocação de um referendo, mas não pode convocá-lo sozinho nem impô-lo à AR ou ao governo. Pode recusar a declaração do estado de sítio, mas não pode declará-lo autonomamente.
Em suma, o Presidente tem poderes de "tutela" sobre o governo, na medida em que certas decisões políticas e legislativas carecem do seu assentimento, aprovação ou autorização. Mas não tem poderes de direcção nem de "superintendência" do governo, visto que não pode dar-lhe ordens nem instruções, nem sequer directivas ou orientações; muito menos goza de "tutela substitutiva", ou seja, o poder de se substituir ao governo no exercício das competências deste. Em última instância, o Presidente pode tentar mudar de governo mediante a convocação antecipada de eleições parlamentares, mas não pode sobrepor-se, nem substituir-se, ao governo em funções.
Entre nós, o Presidente da República não compartilha do poder executivo com o governo (como sucede em França), sendo antes um "quarto poder", de natureza moderadora. Por isso, o que está em causa não é somente uma questão de separação de poderes, em si mesma essencial numa democracia liberal, baseada que é na limitação e no contrapeso dos poderes. É também, e sobretudo, uma questão de responsabilização política. Se o Presidente da República se imiscuir nas questões do governo e se este puder argumentar com razão que não cumpriu o seu programa por causa daquele, nas eleições parlamentares seguintes quem é que vai ser responsabilizado politicamente: o governo ou o Presidente da República?
É manifesto, porém, que no exercício dos seus amplos poderes constitucionais existe uma ampla margem para a diversidade de actuação dos inquilinos de Belém, quer quanto à intensidade e frequência do seu uso, quer quanto ao sentido com que os utilizam. Assim se poderão distinguir presidentes mais ou menos activistas, e presidentes mais à esquerda ou mais à direita. Por exemplo, no poder de veto político vai uma distância enorme entre abdicar dele (visto que não é obrigatório usá-lo) e recorrer a ele com alguma frequência (salvo correndo o risco de ser acusado de obstar à realização do programa do governo). E o mesmo se diga quanto ao seu conteúdo, pois uma coisa é vetar, por exemplo, uma lei que amplie a atribuição de nacionalidade portuguesa aos imigrantes, outra é vetar uma lei que restrinja a imigração.
Por conseguinte, para se diferenciarem uns dos outros, os candidatos a ocupar o Palácio de Belém não têm de se distinguir pelo respeito, ou não, da Constituição política e das regras que definem o seu mandato constitucional. Basta que cumpram o que se espera deles, ou seja, que expliquem como vão exercer os seus poderes constitucionais, com que intensidade e com que sentido. É isso o que pode marcar as diferenças entre eles e é isso que os eleitores esperam deles. O que seguramente não está nas suas mãos é actuarem ultra vires (isto é, para além dos poderes que lhes cabem) ou proporem-se substituir o primeiro-ministro e o governo na esfera de competências que são as suas.
Os candidatos presidenciais também não estão proibidos de ter e de expor um "desígnio" para o país - uma "visão", como se diz agora em "portinglês" -, sendo mesmo de esperar que a tenham. Mas essa perspectiva global de futuro para a colectividade nacional só pode ter o sentido de presidir e articular coerentemente o exercício dos poderes presidenciais e não de funcionar como uma visão alternativa à dos governos em funções em cada momento. Seria perfeitamente estulto pensar que as questões da economia ou das finanças, da saúde ou da segurança social, do emprego ou da cultura podem depender do Presidente da República. Não dependem; são matérias do foro do governo. E, se um candidato presidencial defender ou der a entender que dependem, está a enganar os eleitores.
(Público, Terça-feira, 25 de Outubro de 2005 )
Mais do que a estabilidade governativa, a grande prova da consolidação dos regimes políticos é continuidade do consenso sobre as regras do seu funcionamento. É disso que temos gozado desde 1982, quando a primeira revisão constitucional encerrou o período "experimental" do novo sistema constitucional e ultimou a transição democrática em Portugal.
É essa estabilidade que pode estar em risco, se se adensarem os abundantes sinais de gestação de um "neopresidencialismo" entre nós, como quase sempre protagonizado por sectores da direita política, entusiasmados com a perspectiva de eleição, pela primeira vez no actual regime democrático, de um Presidente da República oriundo das suas fileiras. De forma mais ou menos explícita, há uma multiplicação de opiniões nessa área tendentes a levar o chefe do Estado a invadir as fronteiras que definem a esfera própria do Governo.
Na verdade, é a Constituição política que está em causa, não somente quando se defende que o Presidente da República possa presidir ao Conselho de Ministros ou demitir livremente o governo, mas também quando se preconiza um papel activo na definição das orientações governativas, na definição de "balizas" ao governo, ou num "entendimento estratégico" entre o Presidente da República e o governo na resolução dos grandes problemas nacionais. Em qualquer caso, estando a responsabilidade pela definição e condução das políticas públicas constitucionalmente confiada ao governo, saído das eleições parlamentares - cabendo ao Presidente um papel de monitorização, de fiscalização, de "tutela" e, em caso de necessidade, de solução das crises políticas -, a questão fundamental é a de saber se tal divisão de poderes e de responsabilidades deve ser alterada mediante um maior protagonismo presidencial.
Só por caricatura é que se pode dizer que entre nós o Presidente da República não tem poderes relevantes. Tem muitos, e fortes. Cabe-lhe desde logo nomear o primeiro-ministro, embora se trate aqui de um poder relativamente fraco, sobretudo quando as eleições parlamentares se foram transformando crescentemente em eleição do primeiro-ministro. Pode vetar os nomes propostos para o governo pelo primeiro-ministro, bem como para todos os demais cargos de nomeação presidencial (e não são poucos, desde os representantes da República nas regiões autónomas até aos embaixadores, passando pelo procurador-geral da República e pelas chefias militares, entre vários outros). Pode enviar as leis para fiscalização preventiva (ou sucessiva) do Tribunal Constitucional; e também pode vetá-las politicamente, oposição que pode ser insuperável mesmo no caso de maioria absoluta na AR, no caso de matérias cujo veto só possa ser ultrapassado por maioria de 2/3. Pode enviar mensagens à Assembleia da República e tomar posições públicas relativamente aos grandes problemas nacionais, embora não possa impor os seus pontos de vista ao governo, nem censurá-lo por este não lhes dar seguimento. Nos domínios da defesa e das relações externas, os seus poderes de acompanhamento e de fiscalização são ainda mais intensos, dada a sua qualidade constitucional de comandante supremo das forças armadas e de representante supremo da República (enquanto chefe do Estado), embora sem poder invadir a competência governamental nessas áreas. E, por último, entre os seus "poderes fortes", conta-se o de antecipar eleições mediante a dissolução da AR, de modo a obter uma mudança de governo por via de mudança de maioria parlamentar (mas tendo de arcar com a responsabilidade política, caso as eleições subsequentes não produzam esse resultado...).
Não é, portanto, a falta de poderes que caracteriza o cargo de Presidente da República entre nós. O que o caracteriza é, simplesmente, o facto de eles serem poderes de controlo externo sobre a actividade governativa e não de participação interna nessa actividade. São em geral poderes "negativos" (poderes de veto, de recusa), e não "poderes positivos". Por exemplo, o Presidente da República pode vetar leis, mas não pode propor alterações; pode recusar os nomes que o governo lhe proponha, mas não pode indicar outros nomes. Pode recusar a convocação de um referendo, mas não pode convocá-lo sozinho nem impô-lo à AR ou ao governo. Pode recusar a declaração do estado de sítio, mas não pode declará-lo autonomamente.
Em suma, o Presidente tem poderes de "tutela" sobre o governo, na medida em que certas decisões políticas e legislativas carecem do seu assentimento, aprovação ou autorização. Mas não tem poderes de direcção nem de "superintendência" do governo, visto que não pode dar-lhe ordens nem instruções, nem sequer directivas ou orientações; muito menos goza de "tutela substitutiva", ou seja, o poder de se substituir ao governo no exercício das competências deste. Em última instância, o Presidente pode tentar mudar de governo mediante a convocação antecipada de eleições parlamentares, mas não pode sobrepor-se, nem substituir-se, ao governo em funções.
Entre nós, o Presidente da República não compartilha do poder executivo com o governo (como sucede em França), sendo antes um "quarto poder", de natureza moderadora. Por isso, o que está em causa não é somente uma questão de separação de poderes, em si mesma essencial numa democracia liberal, baseada que é na limitação e no contrapeso dos poderes. É também, e sobretudo, uma questão de responsabilização política. Se o Presidente da República se imiscuir nas questões do governo e se este puder argumentar com razão que não cumpriu o seu programa por causa daquele, nas eleições parlamentares seguintes quem é que vai ser responsabilizado politicamente: o governo ou o Presidente da República?
É manifesto, porém, que no exercício dos seus amplos poderes constitucionais existe uma ampla margem para a diversidade de actuação dos inquilinos de Belém, quer quanto à intensidade e frequência do seu uso, quer quanto ao sentido com que os utilizam. Assim se poderão distinguir presidentes mais ou menos activistas, e presidentes mais à esquerda ou mais à direita. Por exemplo, no poder de veto político vai uma distância enorme entre abdicar dele (visto que não é obrigatório usá-lo) e recorrer a ele com alguma frequência (salvo correndo o risco de ser acusado de obstar à realização do programa do governo). E o mesmo se diga quanto ao seu conteúdo, pois uma coisa é vetar, por exemplo, uma lei que amplie a atribuição de nacionalidade portuguesa aos imigrantes, outra é vetar uma lei que restrinja a imigração.
Por conseguinte, para se diferenciarem uns dos outros, os candidatos a ocupar o Palácio de Belém não têm de se distinguir pelo respeito, ou não, da Constituição política e das regras que definem o seu mandato constitucional. Basta que cumpram o que se espera deles, ou seja, que expliquem como vão exercer os seus poderes constitucionais, com que intensidade e com que sentido. É isso o que pode marcar as diferenças entre eles e é isso que os eleitores esperam deles. O que seguramente não está nas suas mãos é actuarem ultra vires (isto é, para além dos poderes que lhes cabem) ou proporem-se substituir o primeiro-ministro e o governo na esfera de competências que são as suas.
Os candidatos presidenciais também não estão proibidos de ter e de expor um "desígnio" para o país - uma "visão", como se diz agora em "portinglês" -, sendo mesmo de esperar que a tenham. Mas essa perspectiva global de futuro para a colectividade nacional só pode ter o sentido de presidir e articular coerentemente o exercício dos poderes presidenciais e não de funcionar como uma visão alternativa à dos governos em funções em cada momento. Seria perfeitamente estulto pensar que as questões da economia ou das finanças, da saúde ou da segurança social, do emprego ou da cultura podem depender do Presidente da República. Não dependem; são matérias do foro do governo. E, se um candidato presidencial defender ou der a entender que dependem, está a enganar os eleitores.
(Público, Terça-feira, 25 de Outubro de 2005 )