28 de novembro de 2005
Afeganistão - largado a meio...
por Ana Gomes
A perda da vida do Sargento Roma Pereira e de tantos outros militares europeus, americanos e de outras nacionalidades em serviço no Afeganistão deve levar a reflectir sobre um trabalho de construção, pacificação e democratização largado a meio, inacabado: um caso sério de negligência estratégica.
Foram feitos progressos, é certo. Em Outubro de 2004, houve eleições presidenciais que contaram com a participação de 70% dos eleitores registados. Seguiram-se a 18 de Setembro de 2005 eleições legislativas, cujos resultados foram aceites pelas maiores forças políticas afegãs que estão agora representadas no parlamento em Kabul. Para além disso, foram desmobilizados cerca de 63.000 milícias e recolhida a quase totalidade de armas pesadas, anteriormente nas mãos dos senhores da guerra; o novo exército afegão já conta com 30.000 efectivos e é considerado de boa qualidade.
Mas as boas notícias acabam aqui. Nos seis meses antes das eleições de Setembro último, mais de 1.000 pessoas, incluindo 7 candidatos, foram mortas numa orgia de violência que não se via desde a queda dos Taliban. O presidente Karzai é apelidado de 'Presidente da Câmara de Kabul', já que o seu poder não se estende muito além da província da capital; calcula-se em 100.000 o número de membros de grupos armados que vivem do narcotráfico, da heroína - a verdadeira arma de destruição maciça que continua assestada... à Europa. Culturas de substituição, transporte, mercados não foram disponibilizados aos camponeses, que continuam assim a cultivar papoilas para sobreviver.
As razões que explicam este triste balanço são conhecidas de todos. Em 2003, os EUA decidiram deixar a meio uma tarefa ciclópica - reconstruir e estabilizar o Afeganistão - para se lançar noutra aventura: transformar o Iraque numa democracia-modelo para o Médio Oriente. O resultado está à vista de todos: nem o Afeganistão entrou no caminho irreversível para a paz e o desenvolvimento sustentado, nem o Iraque dá quaisquer sinais de se estar a transformar na Suiça da Mesopotâmia. Enquanto a super-potência investiu, de 2002 até agora, uns míseros $1.3 mil milhões de dólares no Afeganistão, desde 2003 foram gastos $9 mil milhões de dólares em projectos de reconstrução no Iraque. Para nem falar dos recursos militares que foram enterrados no Iraque e tanta falta fazem no Afeganistão.
A NATO está a fazer um esforço para assumir responsabilidades no sul do Afeganistão, onde a missão, para além de manter a paz, assumirá os contornos mais perigosos de uma operação de contra-insurgência. O Canadá, o Reino Unido e a Holanda preparam-se para entrar em províncias como Kandahar, onde os Taliban se infiltram sistematicamente. A Alemanha compensa a timidez operacional com um aumento em 750 homens do seu contingente no norte do Afeganistão. Isto significa que a NATO aumenta de 9.000 para 15.000 a presença no Afeganistão. Enquanto isto, os EUA preparam-se para retirar 4.000 dos seus soldados no princípio de 2006 - certamente para render alguns dos que se encontram atolados no inferno iraquiano.
Não serve de consolo o facto de algumas vozes (e entre elas me conto) terem avisado em 2003 que, depois de ganhar a guerra no Afeganistão, era imperioso ganhar a paz, sob pena de deixar inacabado o trabalho de combate ao terrorismo da Al Qaeda e dos Talibans e ao cancro da heroína. Em vez disso, a aventura iraquiana estendeu a linha da frente do terrorismo internacional às margens do Eufrates. Tamanho disparate estratégico criou no Iraque um verdadeiro campo de treino para terroristas, só comparável ao ... Afeganistão dos anos 80. Resta a esperança de que o descontentamento crescente nos EUA em relação à guerra no Iraque não tenha também consequências para o envolvimento americano no Afeganistão. É que Osama bin Laden espera pacientemente nas regiões fronteiriças com o Paquistão. Pela fadiga do Ocidente...
(publicado em 25.11.05 no COURRIER INTERNACIONAL)
A perda da vida do Sargento Roma Pereira e de tantos outros militares europeus, americanos e de outras nacionalidades em serviço no Afeganistão deve levar a reflectir sobre um trabalho de construção, pacificação e democratização largado a meio, inacabado: um caso sério de negligência estratégica.
Foram feitos progressos, é certo. Em Outubro de 2004, houve eleições presidenciais que contaram com a participação de 70% dos eleitores registados. Seguiram-se a 18 de Setembro de 2005 eleições legislativas, cujos resultados foram aceites pelas maiores forças políticas afegãs que estão agora representadas no parlamento em Kabul. Para além disso, foram desmobilizados cerca de 63.000 milícias e recolhida a quase totalidade de armas pesadas, anteriormente nas mãos dos senhores da guerra; o novo exército afegão já conta com 30.000 efectivos e é considerado de boa qualidade.
Mas as boas notícias acabam aqui. Nos seis meses antes das eleições de Setembro último, mais de 1.000 pessoas, incluindo 7 candidatos, foram mortas numa orgia de violência que não se via desde a queda dos Taliban. O presidente Karzai é apelidado de 'Presidente da Câmara de Kabul', já que o seu poder não se estende muito além da província da capital; calcula-se em 100.000 o número de membros de grupos armados que vivem do narcotráfico, da heroína - a verdadeira arma de destruição maciça que continua assestada... à Europa. Culturas de substituição, transporte, mercados não foram disponibilizados aos camponeses, que continuam assim a cultivar papoilas para sobreviver.
As razões que explicam este triste balanço são conhecidas de todos. Em 2003, os EUA decidiram deixar a meio uma tarefa ciclópica - reconstruir e estabilizar o Afeganistão - para se lançar noutra aventura: transformar o Iraque numa democracia-modelo para o Médio Oriente. O resultado está à vista de todos: nem o Afeganistão entrou no caminho irreversível para a paz e o desenvolvimento sustentado, nem o Iraque dá quaisquer sinais de se estar a transformar na Suiça da Mesopotâmia. Enquanto a super-potência investiu, de 2002 até agora, uns míseros $1.3 mil milhões de dólares no Afeganistão, desde 2003 foram gastos $9 mil milhões de dólares em projectos de reconstrução no Iraque. Para nem falar dos recursos militares que foram enterrados no Iraque e tanta falta fazem no Afeganistão.
A NATO está a fazer um esforço para assumir responsabilidades no sul do Afeganistão, onde a missão, para além de manter a paz, assumirá os contornos mais perigosos de uma operação de contra-insurgência. O Canadá, o Reino Unido e a Holanda preparam-se para entrar em províncias como Kandahar, onde os Taliban se infiltram sistematicamente. A Alemanha compensa a timidez operacional com um aumento em 750 homens do seu contingente no norte do Afeganistão. Isto significa que a NATO aumenta de 9.000 para 15.000 a presença no Afeganistão. Enquanto isto, os EUA preparam-se para retirar 4.000 dos seus soldados no princípio de 2006 - certamente para render alguns dos que se encontram atolados no inferno iraquiano.
Não serve de consolo o facto de algumas vozes (e entre elas me conto) terem avisado em 2003 que, depois de ganhar a guerra no Afeganistão, era imperioso ganhar a paz, sob pena de deixar inacabado o trabalho de combate ao terrorismo da Al Qaeda e dos Talibans e ao cancro da heroína. Em vez disso, a aventura iraquiana estendeu a linha da frente do terrorismo internacional às margens do Eufrates. Tamanho disparate estratégico criou no Iraque um verdadeiro campo de treino para terroristas, só comparável ao ... Afeganistão dos anos 80. Resta a esperança de que o descontentamento crescente nos EUA em relação à guerra no Iraque não tenha também consequências para o envolvimento americano no Afeganistão. É que Osama bin Laden espera pacientemente nas regiões fronteiriças com o Paquistão. Pela fadiga do Ocidente...
(publicado em 25.11.05 no COURRIER INTERNACIONAL)