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13 de novembro de 2005

Com Arafat, perdendo Rabin 

Há precisamente dez anos por esta hora eu estava em Gaza. Quando a notícia fulminou: «Dispararam sobre Rabin. E ele foi atingido!».
«Um banho de sangue. Isto vai ser um banho de sangue!» - pensei eu e pensou toda a gente, a entrar para a antiga residência dos governadores britânicos da Palestina, então o único sítio com condições minímas para alojar um Chefe de Estado visitante.
Mário Soares era (foi) o primeiro Chefe de Estado a visitar Israel e a Palestina mal a Autoridade Palestina se instalou e Arafat pôde voltar.
De manhã, pelas 10 horas, tinhamo-nos perfilado para apertar as mãos, despedindo-nos, do Presidente e do Primeiro Ministro, na residência presidencial israelita , depois de visitarmos, ao terceiro dia, o impressionante Yad Vashem, o monumento-túmulo em memória das vítimas do Holocausto. Rabin impressionava - pela dureza, determinação e pela autenticidade. E, desta vez, pela convicção de que a paz era indispensável, não podia haver recuos (eu já o tinha encontrado em 92 em Telavive, dois meses antes de ele ser eleito Primeiro Ministro). Sentia-se a tensão no ar - sabia-se que à noite Rabin participaria num comício na principal praça de Telavive, para desarmar os opositores ao processo de paz com uma grande manifestação de respaldo às difíceis mas inadiáveis decisões que a Paz exigia.
Tomámos a auto-estrada para Jerusalém, passamos a «linha verde» e entramos na parte Oriental. Já acompanhados por representantes palestinos visitamos a fabulosa Al Aqsa - incrível pensar que metros abaixo estão centenas daquelas criaturas barbudas aos caracolinhos a arrepelar-se contra o Muro das Lamentações. Passamos o resto da manhã a calcorrear as fascinantes ruelas do bairro árabe, onde se misturam os cheiros das especiarias. De tarde visitamos Belém (curva-te para entrar na pequena porta da Igreja da Natividade) e Hebron (os putos de kippa na cabeça e Uzi na mão, ocupantes de uma casa perto do túmulo de Abraão, em jeito mole e desafiador calcorreiam a rua, dificultando o passo a palestinos apressados para as orações na mesquita).
Não me lembro onde almoçamos, mas não implicou «trabalho» - o essencial tinha tido lugar na véspera, na visita que o Secretário de Estado para os Assuntos Europeus Seixas da Costa fizera à «Orient House» (com especial empenho, depois de termos resistido a indecorosas pressões dos israelitas para que lá não fossemos). Eu estava ali por ser chefe de gabinete do Xico (ia lá perder uma visita de Estado a Israel e à Palestina, de onde tinha tão marcantes recordações, da equipa da presidência portuguesa em 92, no inicio do Processo de Paz, brilhantemente chefiada por Leonardo Mathias).
Chegamos a Gaza depois de uma espera na fronteira, dentro dos carros, no meio de «nowhere» (agora já há sala de espera), enquanto os miúdos do exército israelita examinavam a papelada. Não esperamos muito, a passagem fora protocolarmente acertada, no lado de lá estava Arafat à espera do seu amigo Mário, a excitação de acolher um primeiro Chefe de Estado na sua terra. Passamos o que é hoje Jabalia, em direcção ao escritório da UNRWA na «Beach» (é estonteante o que as construções proliferaram, pensei eu lá, no ano passado). Mais tarde levam-nos ao hotel onde o grosso da comitiva ia ficar - um hotel só com dois andares operacionais (ainda cheirava a tinta e cola das alcatifas), de decoração baratucha e duvidosa (era o que tinham), com mais cinco pisos por cima ainda no tosco. É aí que vai ter lugar o banquete oficial que o Presidente Arafat oferece ao Presidente Soares e comitiva. Danças e cantares palestinos. Alegria e excitação. Comida abundante e bem-cheirosa. Discursos. Arafat acompanha Soares à casa onde vai pernoitar. O Presidente insiste que o sigamos, quer cavaqueira, são para aí umas 10 da noite, ainda é cedo...
È no caminho que se percebe de repente grande agitação nos motoristas, escutam na rádio que o comício foi interrompido, tiros disparados, parece-que aconteceu qualquer coisa a Rabin.
À chegada à casa, Arafat está lívido, abana a cabeça incredulamente, pede desculpa ao Presidente e precipita-se para um quarto ao lado da sala onde ficamos. Vai telefonara ao Shimon, à Lea. Ouvimo-lo. Entra e sai gente, assessores, seguranças. Espreito e vejo um PBX. Os guarda-costas há muito que estão de mármore.
O Dr. Soares diz o que todos nós pensamos: «Bem, preparemo-nos para o pior. Isto vai ser muito complicado». A Suha Arafat desapareceu no PBX: tenho de falar à Leah. A Sra. D. Maria de Jesus também quer falar à Leah, pobre Leah, será que também foi atingida? O Presidente ordena: «Liguem a Lisboa! Temos de prevenir». Prevenir o quê? pergunta alguém, vamos já imediatamente partir para El Arish?! «Sabemos lá, sabemos lá se há condições, os israelitas não nos deixam passar a fronteira, querem lá saber se o Senhor é Presidente, a esta hora estão de cabeça perdida», lembra o Jorge Torres Pereira. «Bom liguem na mesma, temos de avisar que estamos todos bem e ouvir o que o Primeiro-Ministro pensa sobre o que fazer?. Começamos a ligar, do PBX ao lado (ainda não havia telefones móveis). Ligamos a CNN também.
Arafat sai do quarto PBX. Olhos húmidos, mais húmidos que de costume: «Ele foi atingido! Ele está mal! Não sabem se escapa!?. Vê-nos consternados, alvoroçados. Acrescenta então baixinho «ao menos, parece que não foi nenhum nosso. O Shimon diz que prenderam um judeu, um extremista»..... Respiramos todos de alívio, alguns dão graças a Deus convictamente.
A CNN confirma-o e mostra imagens confusas, entrevista gente a soluçar, ainda no local. Concentramos atenções sobre o televisor. Eu vou interpretando a conversa lacónica entre Arafat e o Presidente, ambos abalados (o intérprete palestino desaparera na confusão). Especulam sobre o que poderá passar-se. Entreabre-se a porta do quarto, chamam Arafat, ele corre para o telefone, «é o Shimon!». A sala fica suspensa, só se ouve a CNN. Ele volta daí a segundos: cabisbaixo, olhos chorosos, ainda mais lívido, lábios tremelicantes: «ele morreu!». Aperta a cabeça entre as mãos. A mulher ampara-o, limpa as lágrimas com um lenço. «Era um amigo», repetem.
O choque, a tristeza, o embaraço, a apreensão fazem-nos fixar olhares na CNN, que continua a passar imagens de gente soluçante em «breaking news», intercalando-as com as da entrada das traseiras do hospital para onde Rabin foi levado. Pouco depois anunciam a morte e aparece Shimon Peres a confirmar.
Durante mais umas duas horas ficamos presos à CNN, Arafat e Suha connosco a conjecturar cenários. Entretanto consolam Leah Rabin, pelo telefone. Comentam «como é forte, esta mulher». De Lisboa telefona António Guterres alarmado, vai já mandar outro Falcon, o que for preciso, e vai já falar ao Shimon Peres para facilitar a nossa saída. O Presidente tranquiliza-o. Já discutira com Arafat - nem pensar partir de noite. De manhã atravessaremos a fronteira de Raffah, como estava previsto para o fim da tarde, depois do resto da visita que afinal não faremos. Iremos para El Arish, no Egipto, onde o Falcon espera. Só que em vez de rumar a Lisboa, vai levar o Presidente e Senhora, mais o Secretário de Estado, de volta a Israel. Para o funeral. O resto do pessoal, de carro, atravessará o Sinai até ao Cairo.
Voltamos ao hotel já de madrugada. Calma em Gaza, ruas desertas. No dia seguinte, Arafat e Suha acompanham o Presidente e Mulher à fronteira. Os míudos-soldados estão enervados, arrogantes, vociferantes. Obrigam toda a gente a sair dos carros. O sol escalda e os passaportes que eles levaram, tardam a voltar. Discutimos com um que insiste em fazer os Presidentes e Senhoras também sairem dos carros e ficarem ali à torreira. Uma referência a Arafat e o soldado rosna. Aproximam-se oficiais, de cara de pau, com um gesto deixam cair. Quase uma hora depois, devolvem os passaportes.
Despedimo-nos de Arafat. Ele também contava ir à tarde ao funeral. Do amigo e parceiro de paz. Mas não sabia se o deixariam passar.

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