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3 de novembro de 2005

Mau caminho 

Por Vital Moreira

O Diário Económico noticiou que o Governo se prepara para "esvaziar" a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) dos seus principais poderes regulamentares, que passariam para a competência do Governo. A notícia não foi desmentida e parece credível. Porém, a ser concretizada, trata-se de uma decisão errada em si mesma e perturbadora acerca das intenções governamentais em relação à regulação da economia.
A restrição dos poderes reguladores da ERSE não está de acordo com a orientação geral constante do programa do Governo em favor da regulação económica por entidades reguladoras independentes. Põe em causa uma entidade reguladora criada há uma década e que passou por vários governos e ministros da Economia, de muito diversas orientações, sem que tivessem sido diminuídos os seus poderes originários. Significa uma governamentalização da actividade reguladora, no momento em que se completa a abertura ao mercado e à concorrência no sector energético, em especial no caso da electricidade. E sobretudo vai ao arrepio da orientação prevalecente desde o início do processo de desintervenção económica do Estado, que é a de desgovernamentalizar a função de regulação, de modo a despolitizar essa função e conferir estabilidade ao quadro regulatório, independentemente dos ciclos políticos.
A anunciada proposta dá satisfação a várias tentativas feitas no passado para recuperar para o Governo e para a Direcção-Geral de Energia as funções regulamentares em algumas áreas fundamentais para a regulação do sector, como são o regime de acesso às redes, as relações comerciais entre os operadores e o regime tarifário dos segmentos fora do mercado, incluindo a tarifa de utilização da rede de transporte. E é evidente que a expropriação da entidade reguladora independente e a governamentalização dessa tarefa se traduz em abrir espaço à pressão dos grandes operadores, sobretudo da EDP, sobre essas matérias. Isso faz parte da experiência e da natureza das coisas. A regulação independente existe justamente para imunizar as tarefas regulatórias em relação às pressões dos operadores e para evitar a "captura" da regulação pelos regulados.
Desde a sua criação, a ERSE tem estado sob o fogo da EDP e dos seus accionistas privados, especialmente desde que, logo no início da sua actividade, ela ousou proceder a uma sensível baixa de tarifas, que irritou especialmente os interesses afectados. Sucessivos governos e ministros da Economia foram pressionados para cortar nas atribuições e poderes da entidade reguladora ou para limitar a sua independência. Alguns tentaram, mas nenhum deles conseguiu os seus intentos, mesmo quando a pasta foi, efemeramente, ocupada por um ex-presidente da administração da poderosa empresa eléctrica, ou quando foi ocupada, no governo de Durão Barroso, por um ministro que não escondia a sua hostilidade contra a regulação independente da energia. É por isso intrigante ver agora triunfar a tese da governamentalização, num governo apostado em completar a liberalização do sector. Os interesses particulares, mesmo quando travestidos de públicos, que durante muito tempo se mantiveram controlados, podem triunfar quando menos se espera. Contudo, os interesses da EDP não são necessariamente o melhor critério para medir os interesses do país.
Aparentemente, invoca-se o modelo espanhol para legitimar as medidas, agora propostas, de transferir para o Governo a função de regulamentação nas matérias referidas, especialmente o regulamento tarifário. Contudo, os maus exemplos não devem ser seguidos. O modelo de regulação espanhol sempre foi criticado pela sua excessiva governamentalização, tendo por consequência a instrumentalização política da regulação, em função dos objectivos conjunturais de cada governo. No entanto, a filosofia da regulação independente visa precisamente separar a esfera do Governo e a da regulação da economia, convertendo esta numa função essencialmente neutra, determinada por critérios técnicos, dentro da margem de discricionariedade deixada pela lei. A ideia da regulação independente é especialmente válida no caso dos antigos sectores de monopólio público que passam por processos de liberalização, em que coabitam os operadores públicos tradicionais - os chamados operadores incumbentes do antigo "serviço público" - e os novos operadores resultantes da abertura ao mercado e à concorrência. Nessas circunstâncias, é essencial uma separação orgânica e funcional entre o "Estado operador" (proprietário da empresa pública em causa) e o "Estado regulador". É para isso que servem as entidades reguladoras independentes.
Não procede o argumento de que, mesmo sem poderes regulamentares, a ERSE continuará a deter relevantes poderes regulatórios. Assim é de facto, porém com duas qualificações decisivas. Por um lado, uma coisa é não ter certos poderes porque nunca se dispôs deles, outra coisa é ser expropriado deles, após muitos anos a exercê-los, sem razões convincentes para essa perda; por outro lado, se pode haver entidades reguladoras sem poderes regulamentares - limitadas a poderes de supervisão e sancionatórios -, a verdade é que os poderes regulamentares são uma das características mais importantes das entidades reguladoras. A ideia básica da regulação independente é a de que ela só está sujeita à lei e às orientações estratégicas do poder político, cabendo-lhe depois toda a "fileira regulatória", nomeadamente a emissão de normas regulamentares, a sua implementação e a punição das respectivas infracções. O que não faz muito sentido na lógica da regulação independente é que entre a lei e as entidades reguladoras se interponham regulamentos governamentais.
Nem se diga que o Estado não pode alhear-se integralmente da regulação de um sector tão estratégico como a energia, que tem um impacto determinante sobre toda a economia. Isso pode ser verdade, embora o Governo hoje tenha pouco ou nada que ver com a regulação de outros sectores tanto ou mais influentes do que a energia, como é o caso da moeda e dos mercados financeiros, cuja regulação pertence a entidades tanto ou mais independentes e com atribuições e poderes tanto ou mais amplos do que a ERSE. Em todo o caso, na medida em que o Governo queira enquadrar ou condicionar a regulação da energia, o meio para o fazer não deve passar pela expropriação dos poderes regulamentares da entidade reguladora independente e pela governamentalização dos mesmos, mas sim pelo estabelecimento legislativo de um quadro normativo que vincule o regulador ou pela adopção de orientações estratégicas para o sector, que igualmente o vinculam. É o que está expressamente previsto na lei da própria entidade reguladora.
Há uma outra razão de preocupação nesta inesperada iniciativa governamental. Se o Governo ousa atingir a ERSE, que é uma das entidades reguladoras mais antigas e mais prestigiadas, o que é que impede que venha posteriormente a restringir também os poderes de outras entidades reguladoras independentes noutros sectores (mercados financeiros, comunicações, etc.)? Num momento em que o actual Governo já é acusado, mesmo que nem sempre com razão, de excessiva governamentalização da administração pública e do sector empresarial do Estado, será que se justifica dar o flanco desnecessariamente à acusação fácil de que agora nem sequer respeita a jurisdição das entidades reguladoras independentes desde há muito consolidadas?
Não se ignoram as reservas e objecções contra as entidades administrativas independentes, em nome da legitimidade democrática e da responsabilidade governamental pela política económica. A verdade, porém, é que elas são expressamente consentidas pela nossa Constituição e fazem parte, por todo o lado, do paradigma da nova economia de mercado, nascida dos processos de desintervenção do Estado do último quarto de século.
(Público, Terça-feira, 1 de Novembro de 2005)

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