5 de novembro de 2005
Noutro Planeta
Por Ana Gomes
A segurança e a guerra estão hoje dependentes da tecnologia de satélite - para guiar mísseis, comunicar entre unidades e detectar alvos. E nenhum país ancorou tanto doutrina e prática militares na tecnologia espacial como os EUA. A superioridade americana é esmagadora: Washington gasta 15 mil milhões de Euros por ano em tecnologia militar espacial (a Europa 550 milhões de Euros), isto é 90% do total global. A USAir Force e o Pentágono há anos que investem em projectos que potenciam colocar armas no espaço. E agora admitem vir a concretizá-lo - invocando fins não apenas defensivos. Ouvi-o confirmado numa audição com parlamentares de todo o mundo no Congresso americano, Setembro último, por responsáveis da Força Aérea, peritos e congressistas como Curt Weldon, Vice-Presidente da Comissão de Forças Armadas. E é por isso que a Subcomissão de Defesa e Segurança do PE, de que sou membro, vai também começar a discutir este tema.
Porque o espaço pertence-nos a todos. O Tratado do Espaço, de 1967, é explicito na proibição da colocação de ADMs no espaço (embora seja omisso quanto a muitos passos que a possibilitam) e consagra que "a exploração e uso do espaço... devem ser levados a cabo para o bem e no interesse de todas as nações, independentemente do seu nível de desenvolvimento económico e científico; o espaço pertence a toda a humanidade."
Para o espaço nos EUA preparam-se defesas contra mísseis intercontinentais, estruturas capazes de lançar barras de tungsténio e titânio sobre a Terra (como pequenas bombas nucleares) e satélites armados de lasers para atacar satélites "inimigos". Serão projectos só concretizáveis a médio ou longo prazo, dependentes de avanços tecnológicos e dotações orçamentais astronómicas - e neste ponto reside uma principal razão para a relutância de muitos no Congresso e noutros ramos das Forças Armadas americanas (adivinhando o sacrifício dos seus orçamentos).
Mas uma directiva da Casa Branca que viesse agora declarar o espaço livre para uma corrida ao armamento abriria um novo capítulo na história: doravante não haveria esfera da presença humana que não estivesse submetida à lógica implacável da escalada militar.
A Europa, a Rússia e a China têm reiterado apoio ao status quo, estabelecido na Guerra-Fria, que exclui o espaço de disputas militares. Não cuidam apenas de respeitar o direito internacional: é a posição que melhor corresponde aos seus interesses e aos interesses de todos. Trata-se, acima de tudo, de evitar que a militarização do espaço ponha em perigo os satélites tão importantes para o funcionamento das sociedades modernas.
Que país é então visto hoje nos EUA como potencial ameaça, maior do que a extinta União Soviética? É preciso reconhecer que os recentes sucessos espaciais de Pequim e o aumento exponencial e a opacidade do orçamento militar chinês não são de molde a tranquilizar ninguém - e dão assim pretextos àqueles que pretendem "armar" o espaço.
Os EUA temem a China. Cabe à UE sacudir o torpor que lhe tem tolhido a acção neste debate e insistir com Pequim na importância de mais transparência nos seus contactos militares com os EUA e com a Europa. Ao mesmo a UE deve, em colaboração com os sectores mais cépticos do Congresso americano, empreender uma campanha internacional salientando as consequências (estratégicas, financeiras e geo-políticas) nefastas de uma eventual militarização do espaço.
A submissão a imperativos tecnológicos e a obsessão de manter superioridade inigualável em todos os domínios militares esmagam quaisquer abordagens políticas, legais e multilaterais aos desafios estratégicos deste princípio de milénio. Numa era em que actores não estatais, conflitos assimétricos e, acima de tudo, a proliferação de ADMs representam graves ameaças à segurança global, a colocação de armas no espaço revela obsessão anacrónica pela competição entre Estados e imperdoável menorização dos seus efeitos perversos. Que todos neste planeta pagaremos caro.
(Artigo publicado no COURRIER INTERNACIONAL em 28.10.05)
A segurança e a guerra estão hoje dependentes da tecnologia de satélite - para guiar mísseis, comunicar entre unidades e detectar alvos. E nenhum país ancorou tanto doutrina e prática militares na tecnologia espacial como os EUA. A superioridade americana é esmagadora: Washington gasta 15 mil milhões de Euros por ano em tecnologia militar espacial (a Europa 550 milhões de Euros), isto é 90% do total global. A USAir Force e o Pentágono há anos que investem em projectos que potenciam colocar armas no espaço. E agora admitem vir a concretizá-lo - invocando fins não apenas defensivos. Ouvi-o confirmado numa audição com parlamentares de todo o mundo no Congresso americano, Setembro último, por responsáveis da Força Aérea, peritos e congressistas como Curt Weldon, Vice-Presidente da Comissão de Forças Armadas. E é por isso que a Subcomissão de Defesa e Segurança do PE, de que sou membro, vai também começar a discutir este tema.
Porque o espaço pertence-nos a todos. O Tratado do Espaço, de 1967, é explicito na proibição da colocação de ADMs no espaço (embora seja omisso quanto a muitos passos que a possibilitam) e consagra que "a exploração e uso do espaço... devem ser levados a cabo para o bem e no interesse de todas as nações, independentemente do seu nível de desenvolvimento económico e científico; o espaço pertence a toda a humanidade."
Para o espaço nos EUA preparam-se defesas contra mísseis intercontinentais, estruturas capazes de lançar barras de tungsténio e titânio sobre a Terra (como pequenas bombas nucleares) e satélites armados de lasers para atacar satélites "inimigos". Serão projectos só concretizáveis a médio ou longo prazo, dependentes de avanços tecnológicos e dotações orçamentais astronómicas - e neste ponto reside uma principal razão para a relutância de muitos no Congresso e noutros ramos das Forças Armadas americanas (adivinhando o sacrifício dos seus orçamentos).
Mas uma directiva da Casa Branca que viesse agora declarar o espaço livre para uma corrida ao armamento abriria um novo capítulo na história: doravante não haveria esfera da presença humana que não estivesse submetida à lógica implacável da escalada militar.
A Europa, a Rússia e a China têm reiterado apoio ao status quo, estabelecido na Guerra-Fria, que exclui o espaço de disputas militares. Não cuidam apenas de respeitar o direito internacional: é a posição que melhor corresponde aos seus interesses e aos interesses de todos. Trata-se, acima de tudo, de evitar que a militarização do espaço ponha em perigo os satélites tão importantes para o funcionamento das sociedades modernas.
Que país é então visto hoje nos EUA como potencial ameaça, maior do que a extinta União Soviética? É preciso reconhecer que os recentes sucessos espaciais de Pequim e o aumento exponencial e a opacidade do orçamento militar chinês não são de molde a tranquilizar ninguém - e dão assim pretextos àqueles que pretendem "armar" o espaço.
Os EUA temem a China. Cabe à UE sacudir o torpor que lhe tem tolhido a acção neste debate e insistir com Pequim na importância de mais transparência nos seus contactos militares com os EUA e com a Europa. Ao mesmo a UE deve, em colaboração com os sectores mais cépticos do Congresso americano, empreender uma campanha internacional salientando as consequências (estratégicas, financeiras e geo-políticas) nefastas de uma eventual militarização do espaço.
A submissão a imperativos tecnológicos e a obsessão de manter superioridade inigualável em todos os domínios militares esmagam quaisquer abordagens políticas, legais e multilaterais aos desafios estratégicos deste princípio de milénio. Numa era em que actores não estatais, conflitos assimétricos e, acima de tudo, a proliferação de ADMs representam graves ameaças à segurança global, a colocação de armas no espaço revela obsessão anacrónica pela competição entre Estados e imperdoável menorização dos seus efeitos perversos. Que todos neste planeta pagaremos caro.
(Artigo publicado no COURRIER INTERNACIONAL em 28.10.05)