24 de novembro de 2005
O testamento presidencial
Por Vital Moreira
Seria estranho que o texto de Jorge Sampaio publicado no Expresso de sábado passado - que reproduz o prefácio do próximo volume das suas intervenções políticas, abrangendo o "ano quente" de 2004 - não suscitasse a atenção e a reflexão que merece, quer pela sua oportunidade, quer pelo seu conteúdo. Apresentando-se explicitamente como um balanço pessoal sobre a sua própria contribuição para a definição e "densificação" do cargo presidencial, e estando em curso o processo de eleição de um novo Presidente, onde inesperadamente a questão das funções presidenciais voltou à agenda política, a reflexão de Sampaio não podia ser mais oportuna.
O Presidente da República não se limita a apresentar o seu ponto de vista sobre os dois principais sucessos políticos do ano passado - a nomeação de Santana Lopes e a convocação de eleições antecipadas -, aproveitando a oportunidade para tirar ilações dessas intervenções para a definição do sentido e do papel do Presidente no nosso sistema "semipresidencial", como ele continua a designá-lo. Sampaio reivindica tanto a legitimidade como a bondade das decisões que tomou, sustentando também que elas se inscrevem com toda a coerência no entendimento "consolidado" das funções presidenciais.
O mais interessante nas duas referidas decisões presidenciais - a nomeação de um segundo governo da coligação PSD/CDS depois da saída de Durão Barroso e, mais tarde, a dissolução da Assembleia da República contra a mesma maioria parlamentar - foi a oposição que elas suscitaram em alguns sectores, não somente em termos políticos, o que é normal, mas também quanto à sua legitimidade. Da primeira vez, Sampaio foi acusado, à esquerda, de ter "parlamentarizado" o regime, ao aceitar um novo primeiro-ministro que não tinha sido sujeito a sufrágio; houve mesmo quem falasse em esvaziamento inconstitucional dos poderes presidenciais. Na segunda ocasião, foi acusado, à direita, de ter "presidencializado" o regime, ao dissolver um Parlamento onde existia uma maioria de governo, criando desse modo um precedente quanto ao exercício desse poder presidencial no futuro; houve mesmo quem falasse em "golpe de Estado" (sic!).
Neste texto, o Presidente expõe concludentemente as suas razões. Quanto à primeira, é evidente que, mesmo que houvesse motivos para convocar eleições, na sequência da saída de Durão Barroso, entre elas não poderia estar a de que seria ilegítimo nomear alguém que não se tivesse submetido a sufrágio como candidato a primeiro-ministro. Sampaio argumenta, e bem, que "de outro modo estar-se-ia a dar mais um passo, e talvez irreversível, para a primo-ministerialização do nosso sistema".
No entanto, sendo isso assim, só não se compreende a demora em decidir nesse sentido, sem a qual, aliás, a crise não teria assumido as dimensões apaixonadas que assumiu. O Presidente informa que tentou conseguir que o PSD lhe propusesse outro nome em vez de Santana Lopes. Mas parece evidente que essa alternativa só poderia ter tido êxito no momento inicial, quando da saída de Durão, que o Presidente poderia aceite sob condição de escolha simultânea de outro primeiro-ministro que não Santana Lopes. Tudo indica que (e isto é uma "provocação" a um ulterior esclarecimento) Sampaio perdeu esse "momento decisivo", tendo depois gasto várias semanas a adiar ingloriamente uma solução cada vez mais difícil.
No caso da convocação de eleições, a posição de Sampaio é igualmente convincente, tanto em termos políticos como em termos constitucionais. Politicamente, era evidente a extrema degradação do Governo e da situação política e financeira do país, bem como o total esgotamento da coligação governativa; constitucionalmente, o poder de dissolução parlamentar é indiscutível, sendo que nas circunstâncias em que foi exercido era tudo menos descabido ou arbitrário.
É certo que não havia nenhum precedente idêntico no passado, visto que em 1983 e 1987 - cuja "jurisprudência" Sampaio invoca - a dissolução ocorrera no quadro de uma crise governativa aberta com a demissão do Governo (por demissão do primeiro-ministro no primeiro caso, por moção de censura parlamentar no segundo caso), coisa que não se verificou em 2004. Mas o paralelismo subsiste no ponto em que também no passado se verificou a convocação de eleições antecipadas pelo Presidente, quando havia uma maioria parlamentar disposta a governar. Em todo o caso, o facto de não haver um precedente perfeito não retira pertinência nem legitimidade à decisão presidencial.
Jorge Sampaio assinala certeiramente que - para além de uma justificação política forte, como era o caso - o verdadeiro teste de uma dissolução parlamentar decidida contra a maioria está nos resultados das eleições decorrentes da dissolução. Se os resultados confirmam a mesma maioria que o Presidente pretendeu "castigar" ou afastar, então quem sai derrotado é ele, desautorizado pelo voto popular. Ou seja, em condições normais, as eleições parlamentares resultantes de uma dissolução "hostil" a uma maioria existente constituem um referendo sobre a própria decisão presidencial.
Sampaio acrescenta: "(...) O Presidente da República joga ele próprio a sua posição no sistema político quando recorre a esse poder nas circunstâncias em que [ele o fez]. Tivesse o povo português dado razão à maioria parlamentar [pré-existente], e a posição do PR cujo acto de dissolução se revela afinal inútil, e prejudicial ao interesse comum, ficaria extraordinariamente enfraquecida. (...) O PR tem de ter plena consciência das consequências do acto de dissolução e responsabilizar-se por elas." E mais não é preciso dizer, sobre o modelo de assumir essa responsabilidade.
De resto, o texto de Sampaio é um verdadeiro manifesto no sentido da estabilidade das funções presidenciais e do sistema de governo, tal como está definido na Constituição e tal como resulta da "densificação" que dele foi sendo feita pelos sucessivos Presidentes, ao longo de três décadas, sobretudo desde a clarificação constitucional de 1982. Nas suas próprias palavras, "os últimos 30 anos da democracia portuguesa permitiram o desenvolvimento estabilizado do que deve ser a função presidencial, entendimento esse que foi sendo sistematicamente sufragado e legitimado nas sucessivas eleições presidenciais".
(Público, terça-feira, 22 de Novembro de 2005)
Seria estranho que o texto de Jorge Sampaio publicado no Expresso de sábado passado - que reproduz o prefácio do próximo volume das suas intervenções políticas, abrangendo o "ano quente" de 2004 - não suscitasse a atenção e a reflexão que merece, quer pela sua oportunidade, quer pelo seu conteúdo. Apresentando-se explicitamente como um balanço pessoal sobre a sua própria contribuição para a definição e "densificação" do cargo presidencial, e estando em curso o processo de eleição de um novo Presidente, onde inesperadamente a questão das funções presidenciais voltou à agenda política, a reflexão de Sampaio não podia ser mais oportuna.
O Presidente da República não se limita a apresentar o seu ponto de vista sobre os dois principais sucessos políticos do ano passado - a nomeação de Santana Lopes e a convocação de eleições antecipadas -, aproveitando a oportunidade para tirar ilações dessas intervenções para a definição do sentido e do papel do Presidente no nosso sistema "semipresidencial", como ele continua a designá-lo. Sampaio reivindica tanto a legitimidade como a bondade das decisões que tomou, sustentando também que elas se inscrevem com toda a coerência no entendimento "consolidado" das funções presidenciais.
O mais interessante nas duas referidas decisões presidenciais - a nomeação de um segundo governo da coligação PSD/CDS depois da saída de Durão Barroso e, mais tarde, a dissolução da Assembleia da República contra a mesma maioria parlamentar - foi a oposição que elas suscitaram em alguns sectores, não somente em termos políticos, o que é normal, mas também quanto à sua legitimidade. Da primeira vez, Sampaio foi acusado, à esquerda, de ter "parlamentarizado" o regime, ao aceitar um novo primeiro-ministro que não tinha sido sujeito a sufrágio; houve mesmo quem falasse em esvaziamento inconstitucional dos poderes presidenciais. Na segunda ocasião, foi acusado, à direita, de ter "presidencializado" o regime, ao dissolver um Parlamento onde existia uma maioria de governo, criando desse modo um precedente quanto ao exercício desse poder presidencial no futuro; houve mesmo quem falasse em "golpe de Estado" (sic!).
Neste texto, o Presidente expõe concludentemente as suas razões. Quanto à primeira, é evidente que, mesmo que houvesse motivos para convocar eleições, na sequência da saída de Durão Barroso, entre elas não poderia estar a de que seria ilegítimo nomear alguém que não se tivesse submetido a sufrágio como candidato a primeiro-ministro. Sampaio argumenta, e bem, que "de outro modo estar-se-ia a dar mais um passo, e talvez irreversível, para a primo-ministerialização do nosso sistema".
No entanto, sendo isso assim, só não se compreende a demora em decidir nesse sentido, sem a qual, aliás, a crise não teria assumido as dimensões apaixonadas que assumiu. O Presidente informa que tentou conseguir que o PSD lhe propusesse outro nome em vez de Santana Lopes. Mas parece evidente que essa alternativa só poderia ter tido êxito no momento inicial, quando da saída de Durão, que o Presidente poderia aceite sob condição de escolha simultânea de outro primeiro-ministro que não Santana Lopes. Tudo indica que (e isto é uma "provocação" a um ulterior esclarecimento) Sampaio perdeu esse "momento decisivo", tendo depois gasto várias semanas a adiar ingloriamente uma solução cada vez mais difícil.
No caso da convocação de eleições, a posição de Sampaio é igualmente convincente, tanto em termos políticos como em termos constitucionais. Politicamente, era evidente a extrema degradação do Governo e da situação política e financeira do país, bem como o total esgotamento da coligação governativa; constitucionalmente, o poder de dissolução parlamentar é indiscutível, sendo que nas circunstâncias em que foi exercido era tudo menos descabido ou arbitrário.
É certo que não havia nenhum precedente idêntico no passado, visto que em 1983 e 1987 - cuja "jurisprudência" Sampaio invoca - a dissolução ocorrera no quadro de uma crise governativa aberta com a demissão do Governo (por demissão do primeiro-ministro no primeiro caso, por moção de censura parlamentar no segundo caso), coisa que não se verificou em 2004. Mas o paralelismo subsiste no ponto em que também no passado se verificou a convocação de eleições antecipadas pelo Presidente, quando havia uma maioria parlamentar disposta a governar. Em todo o caso, o facto de não haver um precedente perfeito não retira pertinência nem legitimidade à decisão presidencial.
Jorge Sampaio assinala certeiramente que - para além de uma justificação política forte, como era o caso - o verdadeiro teste de uma dissolução parlamentar decidida contra a maioria está nos resultados das eleições decorrentes da dissolução. Se os resultados confirmam a mesma maioria que o Presidente pretendeu "castigar" ou afastar, então quem sai derrotado é ele, desautorizado pelo voto popular. Ou seja, em condições normais, as eleições parlamentares resultantes de uma dissolução "hostil" a uma maioria existente constituem um referendo sobre a própria decisão presidencial.
Sampaio acrescenta: "(...) O Presidente da República joga ele próprio a sua posição no sistema político quando recorre a esse poder nas circunstâncias em que [ele o fez]. Tivesse o povo português dado razão à maioria parlamentar [pré-existente], e a posição do PR cujo acto de dissolução se revela afinal inútil, e prejudicial ao interesse comum, ficaria extraordinariamente enfraquecida. (...) O PR tem de ter plena consciência das consequências do acto de dissolução e responsabilizar-se por elas." E mais não é preciso dizer, sobre o modelo de assumir essa responsabilidade.
De resto, o texto de Sampaio é um verdadeiro manifesto no sentido da estabilidade das funções presidenciais e do sistema de governo, tal como está definido na Constituição e tal como resulta da "densificação" que dele foi sendo feita pelos sucessivos Presidentes, ao longo de três décadas, sobretudo desde a clarificação constitucional de 1982. Nas suas próprias palavras, "os últimos 30 anos da democracia portuguesa permitiram o desenvolvimento estabilizado do que deve ser a função presidencial, entendimento esse que foi sendo sistematicamente sufragado e legitimado nas sucessivas eleições presidenciais".
(Público, terça-feira, 22 de Novembro de 2005)