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11 de dezembro de 2005

A escola e a religião 

Por Vital Moreira

Em 1936, no auge da afirmação autoritária, nacionalista e reaccionária do Estado Novo, Salazar fez aprovar uma lei, que, invocando a "inspiração cristã" que o ensino deveria revestir, ordenava a exibição de crucifixos em todas as escolas. Estava-se nas vésperas da Concordata de 1940, mas a ditadura encarregava-se de mostrar serviço antecipado e de proclamar a aliança entre o Estado Novo e o catolicismo como base política e ideológica do regime. A escola pública tornava-se um lugar de proselitismo ideológico, à luz da "doutrina e da moral cristãs", do qual a disciplina de religião era somente um aspecto. A própria Constituição seria depois modificada para acomodar a posteriori o novo confessionalismo de Estado.
Quando, depois da revolução democrática de 1974, a Constituição de 1976 veio restabelecer a princípio da separação entre o Estado e as igrejas e explicitar a não-confessionalidade da escola pública, não poderiam restar dúvidas acerca da recuperação dos princípios do Estado laico e da neutralidade religiosa da escola pública, com a consequente caducidade dos preceitos da Concordata e da legislação do Estado Novo que consubstanciavam a orientação e preferência religiosa do Estado e do ensino público. Voltava-se, assim, ao paradigma republicano originário de uma escola universalista e sem identificação religiosa, como condição mesma da igualdade e de não discriminação do seus utentes e do seu papel essencial na socialização e na coesão cívica.
De resto, a recuperada laicidade da escola pública não implicou a expulsão da religião da escola. Manteve-se a disciplina da religião, mas agora como disciplina facultativa e aberta a todas as religiões e sob responsabilidade pedagógica das próprias confissões, e não do Estado. Apesar de alguns aspectos censuráveis do regime vigente - nomeadamente a equiparação dos agentes do ensino religioso a funcionários públicos e a sua remuneração pelo Estado -, ele testemunha o empenho do novo regime democrático na abertura da escola à intervenção das diversas igrejas, em espaços lectivos próprios, de acordo com a vontade dos interessados.
Mas é evidente que a laicidade da escola não é compatível com a sua identificação com determinada religião, através da exibição de símbolos religiosos - sejam os crucifixos, sejam os de qualquer outra religião - no âmbito escolar, designadamente nas salas de aula, como se verifica numa parte das nossas escolas (o mesmo sucede, aliás, noutras instituições públicas, como estabelecimentos de saúde, prisões, etc.). Uma tal situação tem de ser considerada como violação qualificada da neutralidade religiosa da escola, por menos exigente que se seja acerca das implicações deste princípio. É isso o que se mostra com toda a clareza no relatório do provedor de Justiça de há alguns anos, ao recomendar a retirada dos símbolos religiosos das escolas públicas. A escola pública é uma instituição com que todos têm o direito de se identificar, bastando isso para que não possa ostentar símbolos religiosos, por mais maioritária que seja a religião em causa.
Ao contrário do que argumentam, sem nenhum respeito pela evidência, os partidários da manutenção dos crucifixos nas escolas, não é verdade que os que defendem a sua retirada preconizem a eliminação da religião da esfera pública. Ninguém defende tal coisa. A liberdade de culto público, a abertura de igrejas e lugares de culto, o porte pessoal de vestes e de símbolos religiosos, as manifestações religiosas de massas, tudo isso faz parte integrante da liberdade de religião, como tal garantido na Constituição e no património democrático do país. Como se viu, a religião nem sequer está proscrita da escola. Ao contrário da França, poucos defendem entre nós a interdição de vestuário ou o uso de símbolos religiosos por parte de alunos nas escolas públicas (de resto, dificilmente uma tal interdição seria compatível com a Constituição).
O que o carácter laico do Estado impõe não é, manifestamente, a desaparição de símbolos religiosos do espaço público, mas sim da esfera da actividade do Estado e do poder público, em geral, e da escola pública, em especial. E é evidente que a inadmissibilidade de crucifixos nas escolas públicas, enquanto tais, nada tem a ver com a sua presença na arquitectura de alguns edifícios escolares, e outros edifícios públicos, outrora com funções religiosas. Relacionar as duas coisas é um puro sofisma, indigno de qualquer argumentação decente. O mesmo se diga, de resto, da invocação dos feriados religiosos, oficialmente reconhecidos, que na sua origem não são mais do que dispensa de obrigações públicas para que os crentes possam cumprir as suas obrigações religiosas. Na medida em que não implicam nenhum compromisso religioso do Estado, nem nenhuma ingerência deste na religião, os feriados religiosos não constituem em si mesmos uma infracção do princípio da laicidade (a não ser na sua vertente da igualdade das confissões, dado que não existem feriados relativos às demais religiões com presença significativa em Portugal).
Nestas questões, a táctica dos meios confessionalistas é sempre a mesma, ou seja, fazerem o mal e a caramunha. Primeiro, montam um enorme aranzel a propósito de tudo o que ponha em causa os privilégios da Igreja Católica, mesmo os mais incompreensíveis e injustificáveis à luz do Estado laico e da escola laica, como é o caso. Depois acusam os defensores dos princípios laicos - que acontece serem os princípios constitucionais - dos mais nefandos propósitos, nomeadamente o de quererem provocar uma "guerra religiosa", agitando freneticamente, e em coro, o espantalho do "laicismo anticatólico". Com isso vão inibindo os governos e as maiorias parlamentares e adiando as correcções que a Constituição e os princípios republicanos impõem, nalguns resquícios do Estado Novo nesta matéria. Para verificar o seu sucesso, basta ver o que se passa, por exemplo, com a subsistência das "capelanias" oficiais em vários serviços públicos, das cerimónias religiosas em actos oficiais do Estado (inaugurações, etc.) e da presença de dignitários da Igreja Católica em lugar especial nas cerimónias públicas.
O princípio da separação entre o Estado e as igrejas está no cerne da própria ideia de República entre nós, tendo associado desde a origem a ideia da laicidade da escola pública. Ambas as noções são condição essencial da cidadania republicana, da liberdade religiosa, da igualdade de tratamento das confissões religiosas, da não identificação confessional do Estado e do ensino público. Não é por acaso que nem a historiografia dominante nem o conceito popular contam o Estado Novo como uma "segunda república", entre a primeira (a de 1910-1926) e a actual, iniciada em 1974. Pelo contrário, apesar de a ditadura ter conservado formalmente o regime republicano, ela é considerada como um longo interregno entre a I República e a actual República democrática. A razão tem que ver fundamentalmente com a contradição essencial entre a "República corporativa", como a si mesma se baptizou a ditadura salazarista, e os princípios fundamentais da própria ideia republicana, entre os quais se contam não somente as liberdades e a democracia, mas também a ideia do Estado laico e da escola laica.
Para serem património de todos, o Estado e a escola pública não podem ter religião. Logo, não podem identificar-se com símbolos religiosos. A polémica sobre os crucifixos nas escolas públicas só revela a subsistência entre nós de um militantismo católico integrista que não aceita os mais elementares requisitos do princípio constitucional da separação entre o Estado e as igrejas e da laicidade da escola pública, não abdicando de instrumentalizar as instituições públicas ao serviço de discriminações e privilégios religiosos.

(Público, Terça-feira, 6 de Dezembro de 2005)

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