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30 de dezembro de 2005

Responsabilidade presidencial 

Por Vital Moreira

Um dos temas mais complexos dos sistemas bi-representivos (ou seja, aqueles onde, além do Parlamento, também o Presidente da República é eleito pelo voto popular) onde o sistema de governo obedece à lógica parlamentar, como o nosso, tem a ver com o papel e a responsabilidade presidencial. Se o Presidente da República não governa, qual é a sua função no sistema de governo e qual é a sua responsabilidade política?
No nosso sistema de governo, tal como resulta da Constituição, especialmente desde a revisão constitucional de 1982, o Presidente não compartilha da função governamental, que pertence ao primeiro-ministro e ao seu governo, com base na sua maioria parlamentar. Das duas eleições, as parlamentares e as presidenciais, são as primeiras que servem para escolher os governos e as políticas. As eleições presidenciais não servem nem para substituir o governo nem para alterar ou rever as políticas do executivo em funções. Diferentemente do que sucede em França, onde a eleição de um presidente oriundo da oposição acarreta normalmente uma mudança de governo, mediante a convocação imediata de eleições parlamentares que costumam trazer uma maioria parlamentar condizente com a "maioria presidencial", entre nós existe uma clara separação entre a função das duas eleições. As eleições presidenciais não criam nenhuma maioria presidencial alternativa à maioria parlamentar existente, nem afectam a subsistência desta nem a do Governo. Em Portugal, o primeiro-ministro pode sempre dizer, com inteira razão, que o desfecho das eleições presidenciais não afecta nem o programa do governo nem a sua orientação.
Ainda ao contrário do que sucede em França, o Presidente da República não pode provocar a demissão do primeiro-ministro por razões de perda de confiança política, visto que o primeiro-ministro só depende da confiança política da Assembleia da República. Também não preside ao Conselho de Ministros nem pode dar ordens nem instruções, nem sequer fazer recomendações ao primeiro-ministro. Os tão propalados (por um dos candidatos presidenciais) "poderes positivos" do inquilino de Belém não passam do poder genérico de sugestão ou de aconselhamento sem nenhuma natureza vinculativa ou impositiva, não podendo adiantar soluções concretas, pois os poderes presidenciais não incluem uma faculdade de definição de soluções de governo. A ideia de o Presidente fazer sugestões de legislação, como propõe um dos candidatos, é totalmente descabida e abusiva, se com isso se quer dizer mais do que chamar a atenção para algum problema que careça de solução legislativa e se queira significar mesmo a apresentação de concretas soluções legislativas. A função legislativa não cabe ao Presidente. Ele pode vetar leis (seu principal poder "negativo" de controlo), mas não pode fazê-las, nem propô-las, nem sequer recomendar ou sugerir concretas propostas de lei.
Não quer isto dizer que seja despiciendo o papel do Presidente da República. Para além da sua importante função representativa, como chefe do Estado, símbolo da colectividade nacional e da identidade nacional perante os próprios cidadãos e perante o exterior, cabem ao Presidente mais duas importantes tarefas. A primeira consiste em defender e promover os valores constitucionais, que por definição são suprapartidários e compartilhados pelo governo e pelas oposições, nomeadamente a paz internacional, a unidade e independência nacionais, a coesão social e territorial, a descentralização e a desconcentração da administração, a língua portuguesa, a igualdade social e em especial entre homens e mulheres, o ambiente e o património cultural, a integração europeia, etc. A terceira tarefa consiste no poder regulador, moderador e arbitral do sistema, impedindo os excessos da maioria governamental (sobretudo com o poder de veto legislativo), garantindo os direitos da oposição, dando voz a todos os grupos e minorias relevantes e, enfim, recorrendo a medidas mais críticas, como a convocação de eleições antecipadas, com eventual mudança de governo, quando as circunstâncias o justifiquem.
Só quem desconhece de todo o sistema constitucional é que pode dizer que isto seria fazer do Presidente um "corta-fitas". Tanto Mário Soares como Jorge Sampaio, em quatro mandatos sucessivos, mostraram à saciedade como se pode ser Presidente activo sem sair fora dos poderes constitucionais e sem interferências descabidas nas funções governamentais. Quem se proponha sair deste esquema, e enfatizar um poder presidencial de se envolver na definição de orientações ou prioridades estratégicas da governação ou de influenciar as políticas públicas, em especial da política económica, não está somente a seguir uma receita para desrespeitar a separação de poderes e a ingerir-se indevidamente na função parlamentar e governativa, mas também a esquecer e a tornar dificilmente exequíveis as genuínas tarefas presidenciais, acima indicadas. Como pode ser regulador e árbitro quem se envolve directamente como agente ou protagonista das políticas governativas? Tal como sucede noutros domínios, também aqui mais significa menos; e o pretendido activismo presidencial lá onde o Presidente é impotente só serve para esconder a incapacidade e a passividade no que respeita às funções onde o Presidente é insubstituível.
Tudo isto em a ver com uma questão essencial dos sistemas de governo, que é a responsabilidade política. Um das dificuldades dos sistemas de governo bicéfalo, à francesa, está em que o primeiro-ministro e o Governo são responsáveis perante o Parlamento pelas políticas prosseguidas, mas quem define as prioridades e orientações políticas é o Presidente da República, que não só não assume essa responsabilidade como ainda pode forçar a demissão do primeiro-ministro e dissolver o Parlamento. Responsabilidade sem poder correspondente (no caso do primeiro-ministro) e poder sem a devida responsabilidade (no caso do Presidente da República), eis a contradição maior dos sistemas propriamente "semipresidencialistas", onde o Presidente compartilha da função governativa e onde, na prática, o governo depende simultaneamente da confiança política do Parlamento e do Presidente da República.
Nada disso sucede nem pode suceder entre nós. O Presidente da República não pode envolver-se na actividade governativa, pela simples razão de que não pode responder por ela, nem perante o Parlamento nem perante os eleitores. O Governo pode ser demitido e substituído; o Presidente, não. No dia em que o primeiro-ministro pudesse desculpar-se pelo seu insucesso governativo com a interferência presidencial, ou no dia em que um Presidente da República pudesse reclamar para si o êxito das políticas governamentais, nesse momento estaria inteiramente subvertido o quadro constitucional. Ao julgar o Governo, o Parlamento e os eleitores teriam de julgar também o Presidente. Desta confusão de responsabilidades nada sairia ileso.
Em momentos de crise económica, como é o caso, é tentador para um candidato presidencial pintar a situação a traço negro e insinuar que pode dar uma contribuição decisiva para a superação da mesma crise, sobretudo quando sabe que já estão criadas perspectivas positivas para isso, nomeadamente as corajosas medidas governamentais para sanear as finanças públicas, os grandes investimentos públicos já desencadeados, o feliz desfecho das perspectivas financeiras da UE para o período 2007-13 e a anunciada melhoria da situação económica europeia nos próximos anos. Não há salvadores mais bem sucedidos - nem mais oportunistas - do que os que anunciam o sucesso que sabem que virá sem ou apesar deles.
[Público, Terça-feira, 27 de Dezembro de 2005]

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