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5 de janeiro de 2006

O Presidente-treinador 

Por Vital Moreira

Há metáforas que valem todo um programa. Na sua muito discutida entrevista ao Jornal de Notícias, Cavaco Silva utilizou a imagem desportiva do "treinador" para se referir ao papel do Presidente da República. "Às vezes" - disse ele -, "a equipa não é má, mas precisa de um novo treinador." No caso, evidentemente, a "equipa" é o Governo e o novo "treinador" seria o próprio entrevistado. Contradizendo todos os seus anteriores protestos retóricos de não interferência na esfera governativa, o candidato da direita fixou com essa sugestiva imagem o seu entendimento inequivocamente intervencionista da função presidencial.
Até agora, a referência consensual do papel presidencial entre nós era a de "árbitro" - também ela oriunda do foro desportivo -, sendo essa uma excelente representação do "poder moderador" do Presidente no nosso sistema constitucional. Neste contexto, a substituição da imagem do árbitro pela de treinador só pode ter o propósito deliberado de marcar uma substancial diferença de concepção do sentido e âmbito da intervenção presidencial. O árbitro é necessariamente exterior ao desempenho dos agentes do "jogo político", competindo-lhe designadamente regular de forma imparcial, super partes, as relações entre eles (designadamente a maioria e as oposições) e sancionar os seus excessos. O treinador é quem forma a equipa, quem a orienta, quem define a sua estratégia e dispõe sobre a sua táctica em cada momento. Nada mais diferente do que esses dois papéis. A principal diferença é que o árbitro não joga nem toma partido. Provavelmente para ilustrar o conceito, foi na mesma entrevista que o referido candidato "sugeriu" a criação de um pelouro governamental dedicado a acompanhar as empresas estrangeiras a operar em Portugal. Confere perfeitamente: a primeira tarefa do "treinador" é efectivamente a composição da equipa...
Com esta inovação metafórica, Cavaco Silva introduziu nas eleições presidenciais um facto adicional de imprevisibilidade política e de insegurança institucional. Doravante, não são lícitas dúvidas sérias sobre os seus propósitos intervencionistas em relação ao Governo. Depois de ter mandado silenciar as muitas vozes presidencialistas entre os seus apoiantes, o candidato vem, ele próprio, sufragar dessa forma enviesada, mas rotunda, a agenda do "activismo presidencial" na área governativa.
Fica por esclarecer qual é a substância de tal protagonismo presidencial. O que porém fica claro é que na metáfora do "treinador" cabe tudo e mais alguma coisa. E, por menos exuberante que seja o treinador, a sua vocação natural é mandar na "equipa", ou seja, no Governo. O facto de tal concepção não ter o mínimo apoio constitucional (pelo contrário) não parece apoquentar os defensores dessa tese. Pretendendo legitimar esse entendimento extremista dos poderes presidenciais, os seus autores atacam a posição dos que supostamente defendem que o Presidente "nada pode fazer", num maniqueísmo que tem tanto de errado como de demagógico e populista, jogando subliminarmente com o suposto "senso comum" de que o Presidente tem de "mandar alguma coisa".
Nunca é demais sublinhar que, no nosso sistema constitucional, o Presidente da República é o único cargo que pressupõe à partida um inquestionável sentido de equilíbrio, moderação, previsibilidade e responsabilidade. Por um lado, o Presidente não responde politicamente perante ninguém. Não pode ser demitido antes do fim do seu mandato; a própria responsabilidade penal está sujeita a requisitos que a tornam difícil de efectivar. Por outro lado, as suas decisões, mesmo quando inconstitucionais, não estão sujeitas ao escrutínio do Tribunal Constitucional. Se o Presidente, por exemplo, demitir o Governo fora das condições constitucionais ou exercer o "veto de gaveta" em relação a qualquer diploma, não há meio de impedir ou revogar tais situações. O cargo presidencial radica por isso num pressuposto de confiança política e pessoal quanto à sua sensatez e quanto à sua fidelidade constitucional. No dia em que o cargo fosse ocupado por um lunático ou por um inimigo da Constituição (o que não é o caso, bem entendido...), o destino da República estaria em sério risco.
Num do seus escritos sobre a Constituição de Weimar de 1919 - a primeira Constituição a prever um sistema bi-representativo não presidencialista, com um Presidente directamente eleito mas desprovido de funções executivas - um autor da época (Carl Schmitt) atribuiu ao Presidente o papel de "guardião da Constituição". Não se tratava somente de velar pela conformidade constitucional das decisões do Parlamento e dos governos, mas também de cuidar pelo regular funcionamento das instituições e impedir a subversão do sistema constitucional (para o que o Presidente detinha poderes excepcionais em situação de crise). Com as devidas adaptações - desde logo, pela existência de um Tribunal Constitucional, a quem cabe a fiscalização da constitucionalidade das normas jurídicas -, a imagem do guardião da Constituição, no sentido de garante do regular funcionamento das instituições e do sistema de governo, é aplicável à função presidencial no nosso sistema constitucional. Entre outras coisas, o Presidente goza do poder de desencadear junto do Tribunal Constitucional todos os mecanismos de controlo da constitucionalidade (a começar pelo controlo preventivo dos diplomas que lhe compete promulgar), bem como do poder de demitir directamente o Governo, independentemente de qualquer censura parlamentar - o que é um poder "anormal" num sistema de tipo parlamentar como o nosso -, quanto estiver em causa o "regular funcionamento das instituições". Nessa linha entra também o poder presidencial de declarar o estado de excepção constitucional (estado de emergência e estado de sítio), sob proposta do Governo e ratificação parlamentar.
Ora a principal dificuldade da figura do "guardião da Constituição" ou de Presidente-garante-das-instituições está na questão de saber quem guarda o guarda, ou seja, como é que se assegura que o Presidente não é, ele mesmo, um factor disruptor do sistema constitucional. No sistema de Weimar, a solução desta dificuldade encontrava-se na possibilidade de destituição do Presidente por voto popular, uma modalidade de revogação de mandatos electivos (recall), segundo a lógica da "democracia semidirecta", de que o mesmo povo que elege e confere mandatos electivos também pode "deseleger" e retirar os mandatos atribuídos.
Contudo, na falta ou perante a ineficácia de tal, qual é a salvaguarda contra um Presidente que seja um problema em vez de ser a solução, um desestabilizador em vez de ser um moderador, um incendiário em vez de ser um bombeiro? É evidente que a única solução é de carácter preventivo, não elegendo ninguém que à partida não ofereça garantias de maturidade, sensatez, fidelidade constitucional, adequação ao perfil constitucional do Presidente. Porque, depois de eleito, nada mais há a fazer do que confiar que tudo corra bem no quinquénio seguinte. O requisito constitucional da idade mínima de 35 anos (não é por caso que a Constituição não estabelece limite de idade máxima...) só garante, quando muito, a maturidade intelectual e alguma experiência de vida; mas não assegura nenhum dos demais requisitos da função. Esses ficam para a avisada apreciação e decisão dos cidadãos eleitores.
É por isso que a figura do Presidente assenta essencialmente na confiança que o eleito possa inspirar quanto ao respeito pelas normas e pelos princípios que regem a função presidencial, onde não cabe de modo algum a figura do "Presidente-treinador". Do que se precisa em Belém é de um Presidente-garante e não de um Presidente-governante.
(Público, Terça-feira, 3 de Janeiro de 2006)

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