12 de janeiro de 2006
Três equívocos
Por Vital Moreira
Em alguns círculos da opinião pública "ilustrada" e do comentarismo político, as actuais eleições presidenciais têm sido relativamente desvalorizadas e desconsideradas, com base em três ideias aparentemente pacíficas, a saber: primeiro, que o presidente da República não tem grandes poderes e que por isso pouco conta afinal; segundo, que está excluída a hipótese de abuso de poderes por parte de quem quer que seja o titular do cargo; terceiro, que, havendo um governo de maioria parlamentar, a possibilidade de um presidente adverso o pôr em causa é simplesmente de descartar. Sucede que nenhuma destas ideias tem pés para andar. Vejamos.
Só quem desconhece o estatuto constitucional do Presidente da República e os seus poderes é que pode sustentar que se trata de um cargo fundamentalmente irrelevante. Não há justificação para tamanha leviandade. Mesmo para quem, como eu, sempre defende uma leitura moderada dos poderes presidenciais, recusando-lhe interferência na actividade governativa e rejeitando mesmo a designação de "semipresidencialismo" (por causa justamente da sua conotação governamentalista), é de todo insustentável uma desvalorização da função presidencial.
O presidente da República não pode obviamente governar nem substituir-se ao governo, e não deve apresentar soluções legislativas nem propor medidas concretas para os problemas políticos ou administrativos. Mas se ele não pode governar, pode seguramente criar grandes dificuldades ao Governo, vetando leis, não convocando os referendos propostos pelo governo ou pela maioria parlamentar, recusando a nomeação dos titulares de cargos públicos que o governo lhe proponha (chefias militares, procurador-geral da República, embaixadores, etc.), demarcando-se ou criticando publicamente as políticas governamentais, apoiando a contestação de forças sociais ao governo, etc.
Isto sem falar nos seus poderes próprios, autónomos (nomeação dos representantes do Estado nas regiões autónomas, declaração do estado de excepção constitucional, comando supremo das forças armadas), e em especial nos dois poderes extremos que o presidente tem para despedir o governo, que são a convocação antecipada de eleições parlamentares e a exoneração directa do primeiro-ministro, quando tal se justifique em "nome do regular funcionamento das instituições".
Igualmente cândida é a ideia de que está excluída, à partida, a hipótese de o presidente da República abusar dos seus poderes. Todavia, a verdade é que, se a generalidade dos poderes presidenciais são virtuosos, quando usados com parcimónia e moderação, já são devastadores, quando utilizados de forma excessiva ou abusiva. Ora, não existe nenhum meio de impedir o abuso dos poderes presidenciais, se isso fizer parte da agenda presidencial. Os actos do presidente, mesmo se inconstitucionais, não estão sequer sujeitos a escrutínio do Tribunal Constitucional.
Independentemente dos poderes presidenciais para se desfazer directamente de um governo, são quase ilimitados os meios para forçar um governo à demissão, bastando para isso cortar-lhe os instrumentos governativos, nomeadamente mediante o abuso do veto legislativo ou da recusa de nomeação de cargos políticos ou o alinhamento recorrente do presidente com as oposições. A consequente incapacidade do governo para levar a cabo as suas políticas e o seu programa político acabaria por gerar um clima de desmotivação e de degradação da sua base de apoio eleitoral.
Como se sabe, o veto legislativo do presidente é absoluto no caso dos decretos-leis - que constituem a maior parte do exercício do poder legislativo -, não havendo nenhum modo de superar a recusa presidencial, salvo mediante a transformação do diploma chumbado em iniciativa legislativa parlamentar, dado que em caso de novo veto presidencial já este poderia ser superado pela confirmação parlamentar do diploma. Mas é evidente que, para além da demora e do desgaste político desta escapatória, a repetição deste recurso só poderia gerar num deletério clima de conflito institucional e de afrontamento entre Belém e São Bento.
No caso dos poderes extremos relativos à dissolução parlamentar e à demissão do governo, é natural que, fora de uma situação de crise governamental (autodemissão do governo, moção de censura, etc.), um presidente prudente só deva recorrer à convocação antecipada de eleições se estiver convencido de que os resultados eleitorais proporcionarão uma diferente solução governativa; de outro modo, uma dissolução parlamentar hostil que confirme a maioria parlamentar dissolvida pode virar o feitiço contra o feiticeiro (imagine-se a posição de Sampaio, se Santana Lopes tivesse ganho as eleições de há um ano...). Porém, para além dos meios que um presidente tem para desestabilizar um governo e fazê-lo perder apoios eleitorais, é inevitável que os governos que queiram efectuar reformas politicamente difíceis passam sempre por um período de desafeição eleitoral, que pode ser oportunamente aproveitado por um presidente apostado em despedi-lo.
É também certo que a demissão directa do governo não pode ser um acto injustificado e gratuito; mas o conceito de "regular funcionamento das instituições", por mais exigente que seja, é relativamente indeterminado, já tendo havido nesta campanha eleitoral quem tenha sustentado, por exemplo, que a crise por que passa a justiça poderia ser um motivo válido para demitir o governo! Sem escrúpulos constitucionais, qualquer pretexto serve.
Por último, não é menos infundada a ideia de que, havendo um governo de maioria parlamentar monopartidária, torna-se inverosímil a possibilidade de Belém abusar dos seus poderes com êxito contra ele. É verdade que um governo de maioria monopartidária goza de algumas vantagens no confronto com um presidente inamistoso. Desde logo, estando imune a ser derrotado na Assembleia da República, ele não dá pretextos ao presidente para invocar a fragilidade governamental para fazer valer os seus pontos de vista; segundo, a maioria parlamentar dá ao governo a possibilidade de superar os vetos legislativos presidenciais, para o que basta em geral a maioria absoluta. Fora isso, porém, um governo de maioria parlamentar não deixa de ser vulnerável perante um presidente que esteja disposto a abusar das suas funções, incluindo a impossibilidade de superação do veto nos muitos casos em que isso exige maioria de 2/3.
Entre as razões para o visível sucesso da candidatura de Cavaco Silva estão seguramente estas três: primeiro, ter silenciado as vozes que entre os seus apoiantes defendem um inequívoco intervencionismo presidencial, claramente à margem da Constituição; segundo, ter conseguido desviar as atenções dos poderes "negativos" do presidente, que são os mais importantes, sublinhando os alegados poderes "positivos", que são assaz "soft"; terceiro, ter logrado convencer meia dúzia de influentes comentadores "independentes" de que a sua eleição até pode ser um bem para Sócrates. Um verdadeiro prodígio!
Sem embargo, não será evidente que o surpreendente silenciamento da nutrida facção presidencialista do cavaquismo pode bem ser apenas parte de uma bem resguardada "hidden agenda" realmente intervencionista? E não é estranho que o candidato se afadigue a sublinhar os "poderes positivos" do presidente (que são pouco menos que irrelevantes) sem nunca ter esclarecido, porém, os critérios para uso dos "poderes negativos", que são bem fortes, como o poder de veto ou de dissolução parlamentar? E alguém pode acreditar que o candidato apoiado pelo PSD e pelo CDS, em sendo eleito, venha a ter, afinal, como principal preocupação facilitar a vida ao governo do PS e permitir a Sócrates chegar a 2009 e ganhar de novo as eleições legislativas desse ano contra os partidos que agora apoiam aquele?
Decididamente, em Portugal a política pode oferecer inesperadas surpresas!
[Público, 3ª feira, 10 de Janeiro de 2006]
Em alguns círculos da opinião pública "ilustrada" e do comentarismo político, as actuais eleições presidenciais têm sido relativamente desvalorizadas e desconsideradas, com base em três ideias aparentemente pacíficas, a saber: primeiro, que o presidente da República não tem grandes poderes e que por isso pouco conta afinal; segundo, que está excluída a hipótese de abuso de poderes por parte de quem quer que seja o titular do cargo; terceiro, que, havendo um governo de maioria parlamentar, a possibilidade de um presidente adverso o pôr em causa é simplesmente de descartar. Sucede que nenhuma destas ideias tem pés para andar. Vejamos.
Só quem desconhece o estatuto constitucional do Presidente da República e os seus poderes é que pode sustentar que se trata de um cargo fundamentalmente irrelevante. Não há justificação para tamanha leviandade. Mesmo para quem, como eu, sempre defende uma leitura moderada dos poderes presidenciais, recusando-lhe interferência na actividade governativa e rejeitando mesmo a designação de "semipresidencialismo" (por causa justamente da sua conotação governamentalista), é de todo insustentável uma desvalorização da função presidencial.
O presidente da República não pode obviamente governar nem substituir-se ao governo, e não deve apresentar soluções legislativas nem propor medidas concretas para os problemas políticos ou administrativos. Mas se ele não pode governar, pode seguramente criar grandes dificuldades ao Governo, vetando leis, não convocando os referendos propostos pelo governo ou pela maioria parlamentar, recusando a nomeação dos titulares de cargos públicos que o governo lhe proponha (chefias militares, procurador-geral da República, embaixadores, etc.), demarcando-se ou criticando publicamente as políticas governamentais, apoiando a contestação de forças sociais ao governo, etc.
Isto sem falar nos seus poderes próprios, autónomos (nomeação dos representantes do Estado nas regiões autónomas, declaração do estado de excepção constitucional, comando supremo das forças armadas), e em especial nos dois poderes extremos que o presidente tem para despedir o governo, que são a convocação antecipada de eleições parlamentares e a exoneração directa do primeiro-ministro, quando tal se justifique em "nome do regular funcionamento das instituições".
Igualmente cândida é a ideia de que está excluída, à partida, a hipótese de o presidente da República abusar dos seus poderes. Todavia, a verdade é que, se a generalidade dos poderes presidenciais são virtuosos, quando usados com parcimónia e moderação, já são devastadores, quando utilizados de forma excessiva ou abusiva. Ora, não existe nenhum meio de impedir o abuso dos poderes presidenciais, se isso fizer parte da agenda presidencial. Os actos do presidente, mesmo se inconstitucionais, não estão sequer sujeitos a escrutínio do Tribunal Constitucional.
Independentemente dos poderes presidenciais para se desfazer directamente de um governo, são quase ilimitados os meios para forçar um governo à demissão, bastando para isso cortar-lhe os instrumentos governativos, nomeadamente mediante o abuso do veto legislativo ou da recusa de nomeação de cargos políticos ou o alinhamento recorrente do presidente com as oposições. A consequente incapacidade do governo para levar a cabo as suas políticas e o seu programa político acabaria por gerar um clima de desmotivação e de degradação da sua base de apoio eleitoral.
Como se sabe, o veto legislativo do presidente é absoluto no caso dos decretos-leis - que constituem a maior parte do exercício do poder legislativo -, não havendo nenhum modo de superar a recusa presidencial, salvo mediante a transformação do diploma chumbado em iniciativa legislativa parlamentar, dado que em caso de novo veto presidencial já este poderia ser superado pela confirmação parlamentar do diploma. Mas é evidente que, para além da demora e do desgaste político desta escapatória, a repetição deste recurso só poderia gerar num deletério clima de conflito institucional e de afrontamento entre Belém e São Bento.
No caso dos poderes extremos relativos à dissolução parlamentar e à demissão do governo, é natural que, fora de uma situação de crise governamental (autodemissão do governo, moção de censura, etc.), um presidente prudente só deva recorrer à convocação antecipada de eleições se estiver convencido de que os resultados eleitorais proporcionarão uma diferente solução governativa; de outro modo, uma dissolução parlamentar hostil que confirme a maioria parlamentar dissolvida pode virar o feitiço contra o feiticeiro (imagine-se a posição de Sampaio, se Santana Lopes tivesse ganho as eleições de há um ano...). Porém, para além dos meios que um presidente tem para desestabilizar um governo e fazê-lo perder apoios eleitorais, é inevitável que os governos que queiram efectuar reformas politicamente difíceis passam sempre por um período de desafeição eleitoral, que pode ser oportunamente aproveitado por um presidente apostado em despedi-lo.
É também certo que a demissão directa do governo não pode ser um acto injustificado e gratuito; mas o conceito de "regular funcionamento das instituições", por mais exigente que seja, é relativamente indeterminado, já tendo havido nesta campanha eleitoral quem tenha sustentado, por exemplo, que a crise por que passa a justiça poderia ser um motivo válido para demitir o governo! Sem escrúpulos constitucionais, qualquer pretexto serve.
Por último, não é menos infundada a ideia de que, havendo um governo de maioria parlamentar monopartidária, torna-se inverosímil a possibilidade de Belém abusar dos seus poderes com êxito contra ele. É verdade que um governo de maioria monopartidária goza de algumas vantagens no confronto com um presidente inamistoso. Desde logo, estando imune a ser derrotado na Assembleia da República, ele não dá pretextos ao presidente para invocar a fragilidade governamental para fazer valer os seus pontos de vista; segundo, a maioria parlamentar dá ao governo a possibilidade de superar os vetos legislativos presidenciais, para o que basta em geral a maioria absoluta. Fora isso, porém, um governo de maioria parlamentar não deixa de ser vulnerável perante um presidente que esteja disposto a abusar das suas funções, incluindo a impossibilidade de superação do veto nos muitos casos em que isso exige maioria de 2/3.
Entre as razões para o visível sucesso da candidatura de Cavaco Silva estão seguramente estas três: primeiro, ter silenciado as vozes que entre os seus apoiantes defendem um inequívoco intervencionismo presidencial, claramente à margem da Constituição; segundo, ter conseguido desviar as atenções dos poderes "negativos" do presidente, que são os mais importantes, sublinhando os alegados poderes "positivos", que são assaz "soft"; terceiro, ter logrado convencer meia dúzia de influentes comentadores "independentes" de que a sua eleição até pode ser um bem para Sócrates. Um verdadeiro prodígio!
Sem embargo, não será evidente que o surpreendente silenciamento da nutrida facção presidencialista do cavaquismo pode bem ser apenas parte de uma bem resguardada "hidden agenda" realmente intervencionista? E não é estranho que o candidato se afadigue a sublinhar os "poderes positivos" do presidente (que são pouco menos que irrelevantes) sem nunca ter esclarecido, porém, os critérios para uso dos "poderes negativos", que são bem fortes, como o poder de veto ou de dissolução parlamentar? E alguém pode acreditar que o candidato apoiado pelo PSD e pelo CDS, em sendo eleito, venha a ter, afinal, como principal preocupação facilitar a vida ao governo do PS e permitir a Sócrates chegar a 2009 e ganhar de novo as eleições legislativas desse ano contra os partidos que agora apoiam aquele?
Decididamente, em Portugal a política pode oferecer inesperadas surpresas!
[Público, 3ª feira, 10 de Janeiro de 2006]